O diabo a voar nos F-16
Com o diabo definitivamente instalado nas rotinas do debate político, vale a pena lembrar que, muitas vezes, ele aparece nos detalhes.
1. Quando os partidos que sustentam o Governo pegam nos dados do crescimento do PIB no terceiro trimestre para provar que, afinal, o mafarrico decidiu jogar contra a profecia de Pedro Passos Coelho e desertou para parte incerta, nada há a obstar em princípio. Afinal o mundo não acabou, a solução parlamentar funciona, os mercados andam nervosos, mas isso não é propriamente uma novidade, a economia produz, as instituições rolam, o povo é sereno, o Governo governa e o Presidente reina. O problema é que há quem no Governo decida entrar nos detalhes para fazer prova da ausência do diabo e acabe por confirmar que o espírito do mal continua por aí à espreita. Quem havia de ser? João Galamba, claro está.
Não é que o deputado decidiu entrar na onda criada pelos dados do PIB, que colocam Portugal no primeiro lugar do crescimento na União Europeia para a destruir com mais eficácia de que um molhe? É que se Carlos César, o líder parlamentar do PS, recorreu aos números para dizer que Passos Coelho “parece tomado pelo diabo” depois de tomar conhecimento de um tão surpreendente desempenho da economia, João Galamba não poupou na imaginação para resumir tudo a um banal resultado extraordinário. Disse João Galamba com ar triunfal: o Instituto Nacional de Estatística “fez uma dupla maldade que ver com a procura interna” – ou seja, o INE tinha deixado no ar uma dupla boa notícia (a dimensão do crescimento e a sua causa, um aumento das exportações) e essa notícia não era afinal assim tão boa.
Porquê? João Galamba explica que em causa está um efeito “meramente estatístico” relacionado com a venda em segunda mão de caças F-16 à Roménia. Com esse negócio, as exportações são “empoladas” e, se tirarmos as contas essa receita extraordinária, o que se constata é que “a procura interna contribui mais para este aumento do PIB” – ou seja, no trimestre em curso e nos outros que aí hão-de vir, ou o Governo tem carradas de F-16 para vender, ou a taxa de crescimento vai regressar à mediania dos trimestres passados. Afinal, o que está em causa não é tanto um registo impressionante da actividade económica, mas um negócio de ocasião. O que influenciou o melhor resultado da Europa não foi um aumento da competitividade ou a conquista de quotas externas pelas empresas nacionais, mas apenas uma operação de venda de aviões a meio caminho da sucata. O resultado glorioso que atestava em definitivo a morte do diabo explica-se pois com um “efeito meramente estatístico”. Que fosse a oposição a usar este argumento (como, aliás, usou), ainda se percebia; agora um deputado do PS?
O episódio é importante e não apenas por nos provar que, afinal, o diabo se esconde em detalhes destes. É importante, porque nos prova que muita gente responsável que orbita em torno do Governo continua a acreditar que uma ilusão mil vezes repetida se transforma em realidade. Até agora, o crescimento baseado no aumento da procura interna supostamente alicerçada no aumento da distribuição de rendimentos limitou-se a uma modéstia confrangedora. Seria pior se os salários da função pública não tivessem sido devolvidos e as pensões aumentadas? Sem dúvida. Mas o modelo seguido até agora pelo Governo deu provas mais do que suficientes de que é insuficiente para as necessidades das finanças públicas, do serviço de dívida, da criação de emprego e do desenvolvimento do país. Não é uma opção ideológica, é uma mera constatação estatística. Apesar desta evidência, um deputado com o peso político como João Galamba insiste em contorcer a realidade. O que interessa é impor a ilusão de um certo PS à verdade que economistas nacionais ou organizações internacionais não se cansam de propalar.
É preocupante que João Galamba seja tão intransigente na defesa de um tabu do programa económico do PS que até nem se importe de arrasar um belo momento de propaganda para o Governo – e para o enterro do diabo protagonizado por Passos Coelho. O que ele afinal nos disse é que é mais importante provar a ortodoxia de uma doutrina sustentada na devolução de rendimentos do que celebrar uma taxa de crescimento excepcional, embora irrepetível. O que nos lembrou é que é melhor ficarmos conformados à mediocridade do crescimento dos últimos trimestres do que acreditarmos na possibilidade de andar mais depressa através do efeito de arrastamento das exportações. Se o diabo diz que é na procura externa que está a virtude, toca então a negar essa evidência, mostrando que um excelente dado para a imagem do Governo não passava, afinal, de um “empolamento” estatístico.
Sim, o PSD e o CDS andam perdidos, sem saber como mudar uma linha de acção política baseada na crença de que o Governo seria uma catástrofe para o país, que o FMI estava já de malas feitas para aterrar na Portela, que os mercados, a Europa e o mundo jamais aceitariam um desafio às suas ortodoxias ultraliberais. Como nada disto aconteceu, como o país lá vai andando com a cabeça entre as orelhas, nem Passos nem Assunção Cristas sabem bem o que dizer ou fazer. É nos interstícios desta impotência que nasce uma outra ortodoxia tão perigosa como a que trouxe o país para onde está depois dos anos da troika: a ortodoxia de que o Governo descobriu uma fórmula infalível para devolver a felicidade aos portugueses. A aposta no consumo interno deu no que deu – no falhanço de todas as previsões de crescimento –, mas não há forma de a alterar porque se o Governo o fizesse estava a dar razão ao PSD.
Defender com convicção uma ideia ou uma fórmula só fica bem aos políticos. Insistir nessa ideia ou fórmula quando não funciona é cegueira. Mas recusar até notícias boas para o Governo porque elas se sustentam na bondade da fórmula usada pela oposição é muito mais do que isso. É uma estupidez.
2. A primeira má notícia do caso do cidadão marroquino que vivia em Portugal e que foi preso em França por suspeitas de envolvimento na preparação de um atentado terrorista é que conseguiu obter o estatuto de refugiado enganando as autoridades. A segunda má notícia desta história é que Portugal, como se suspeitava, não está imune à criação ou infiltração de redes terroristas, mesmo as que se dispõem a usar o país como base tranquila para atacar em outras geografias. Mas nem tudo são más notícias. O facto de o cidadão marroquino ter merecido a atenção e a vigilância da Polícia Judiciária e do SIS mostra que o aparelho de segurança está operacional e produz resultados. Num tempo de tantas incertezas sobre o rumo da nossa segurança, esta é sem dúvida uma notícia reconfortante.