“A Europa não tem ouvidos para esta guerra”

O Estado turco impõe-se pela força militar no Curdistão, sem distinguir civis de combatentes. A pretexto da luta contra o terrorismo, foi desencadeada uma verdadeira guerra contra os civis no Sudeste do país, desde meados de 2015.

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Há um ar pesado, um cheiro a fumo e uma poeira que se infiltra na garganta, nos pulmões. Estamos em Nusaybin, território curdo, no limite sudeste da Turquia. A guerra da Síria está a dois passos. É ali que começa a fronteira: Al-Qamishli, na Síria, é a um passeio dali, embora passando uma terra de ninguém com 600 mil minas prontas a explodir. Mas é um engano dizer as coisas assim; na verdade, a guerra já mora ali.

Raqia Tovan tem um rosto jovem, mas triste, carregado, coberto por um lenço escuro, com flores azuis e vermelhas, atado sob o queixo. As memórias do último ano são amargas. O Exército turco lançou uma brutal ofensiva contra os curdos, após as legislativas de 7 de Junho, quando o Partido Democrático do Povo (HDP), pró-curdo, entrou para o Parlamento em Ancara. Dessa forma, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), no poder, não teve maioria suficiente para governar.

Várias zonas do Sudeste da Turquia transformaram-se em cenários de guerra: a operação militar do Estado contra os seus cidadãos curdos é um compêndio de violações dos direitos humanos. Para Raqia Tovan, o seu mundo desmoronou-se.

“Quando começou o recolher obrigatório, no primeiro dia, decidimos deixar a cidade. Mas o meu filho mais velho não se quis vir embora. Soubemos pelos media, dois meses depois, que tinha sido morto”, contou. “Há um sítio, na cidade de Urfa, onde se pode ir reclamar o cadáver. Mas só achámos partes do corpo do meu filho. Não só o mataram a tiro como o destruíram, desmembraram-no”, diz Raqia Tovan, que vai franzindo o sobrolho à medida que desenrola o novelo da sua história, que veio contar aos visitantes de Nusaybin. “Nem sequer pelos testes de ADN era possível saber se era mesmo ele. Havia muitos corpos destruídos.”

O Governo justificou a operação militar como uma necessidade para lutar contra o terrorismo – não do grupo Estado Islâmico, que controla território na Síria e no Iraque, e tem feito atentados na Turquia, mas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão. O PKK é uma guerrilha que a Turquia considera terrorista e que começou a lutar pelas armas em 1984 pela independência desta nação sem Estado espalhada por vários países (Turquia, Iraque, Síria e Irão).

“Ainda não sei onde está o meu filho. Tudo isto é muito desumano. O Estado matou e destruiu tudo, as famílias, as casas, os homens também. Não consigo dormir. A União Europeia devia saber disto”, diz Raqia Tovan, que quis contar a tragédia em que se transformou a sua vida aos europeus que vieram a Nusaybin, numa missão organizada pelo Movimento Europeu Anti-Racismo (EGAM) e pela Rede de Parlamentares Elie Wiesel.

“O nosso maior problema é a etiqueta ‘grupo terrorista’ que foi colada ao PKK. O Governo pode sempre dizer que está a matar terroristas”, diz Hatip Dicle, co-líder do Congresso da Sociedade Democrática, uma plataforma de movimentos curdos que proclamou a autogovernacão no Curdistão turco no Verão de 2015. “Veja-se o exemplo do apartheid: o mundo isolou o Governo racista da África do Sul, enquanto não fez a paz. Se o Governo turco não tiver o mesmo tratamento, não haverá paz.”

Negação de identidade

Em Diyarbakir, a capital económica e cultual do Curdistão, o exército e a polícia actuaram de forma igualmente brutal. “Se conseguirmos, vamos levar os nossos casos até ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Mas parece-nos que a UE não tem ouvidos para esta guerra”, diz Mustafa Çukur, pai de Rozerin Çukur, uma adolescente de 16 anos que foi morta a tiro pela polícia turca em Sur, o centro histórico da cidade, e cujo cadáver só pôde recuperar ao fim de seis meses. “A bala entrou pelo topo do crânio e saiu pelo lado da cara”, explica o pai, com uma calma perturbante.

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O que outrora já foram prédios em Cizre: O Exército turco lançou uma brutal ofensiva contra os curdos, após as legislativas de 7 de Junho

“Destruíram as nossas cidades, queimaram as nossas terras e ninguém faz nada. Agora é porque a UE está a comprar à Turquia uma solução para os refugiados”, acusa Mustafa Çukur. “Fizeram de nós refugiados no nosso próprio país.” Pelo menos um milhão de pessoas foi afectada por esta campanha militar. Só em Sur, 23 mil pessoas viviam nas zonas de intervenção. Agora, vivem em bairros de lata.

Foram impostos longos períodos de recolher obrigatório — em alguns casos, duraram meses, sem interrupção —, durante os quais foram bombardeados. Sur, um núcleo urbano com mais de 7000 anos, com centenas de monumentos históricos, alguns classificados como património da Humanidade, ou bairros de cidades como Nusaybin, Cizre, Silvan e outras. Como se de uma verdadeira guerra se tratasse.

“A Constituição nega o reconhecimento de outras identidades para além da dos turcos da seita sunita, apesar de existirem várias outras no país”, explica Raci Bilici, responsável pela delegação de Diyarbarkir da Associação de Direitos Humanos da Turquia. “Esta luta existe por causa da negação de identidade. O problema da Turquia é ter uma democracia fraca.”

A tragédia podia surgir de uma forma banal: a família de Kemin, uma mulher jovem, toda vestida de negro, lenço negro e olhos afundados, decidiu ficar em Nusaybin. O marido era funcionário municipal. “Depois de 21 dias fechados em casa, decidiu ir à rua, para comprar cigarros”, conta. “Foi atingido a tiro ao sair.”

Hoje ainda há vastas áreas de Sur ou Nusaybin onde é proibido entrar. Vedações ou enormes blocos de cimento servem para bloquear ruas ou bairros, que convivem resvés com lojas de especiarias, churrascos, outras habitações. As crianças entram por buracos e recolhem munições aos quilos, para vender em sacos de 5kg.

Nas décadas de 1980/90, a guerra civil entre o PKK e as autoridades turcas grassou nas zonas rurais. Fez mais de 30 mil mortos e levou os curdos a fugir para as cidades. Mas esta nova ofensiva estatal, que não distinguiu civis de combatentes, é urbana. O objectivo foi limpar o coração das cidades de células do PKK, formadas por jovens, adolescentes ou até crianças, que se radicalizaram devido à herança de frustração e fúria por serem vítimas de racismo e discriminação. A maioria da população curda é muito jovem, com menos de 20 anos — são os “filhos da tempestade” da década de 1990, dos anos dos desaparecimentos forçados, da tortura.

Do telhado de uma casa de Sur vê-se a destruição. Casas sem telhado, paredes derrubadas pelos bombardeamentos e pelo picotado das armas automáticas. Ao longe, uma clareira terraplanada onde foram já demolidos edifícios do que era antes uma malha urbana labiríntica de pedra escura para dar lugar sabe-se (teme-se) lá ao quê.

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Habitantes no topo de Sur, o centro histórico de Diyarbakir, onde viviam 23 mil pessoas que agora estão em bairros de lata

Antes da intervenção, 18% dos terrenos em Sur eram propriedade da TOKI, a agência de desenvolvimento urbano turca, cujas políticas têm levado à expulsão de populações de zonas de Istambul para dar lugar aos projectos megalómanos acarinhados por Erdogan. Com um decreto publicado a 21 de Março, os restantes 82% foram expropriados.

“A minha casa tinha 700 anos e agora já não existe. Antes, ofereceram-me muito dinheiro por ela e não aceitei… Agora, com a expropriação, é muito menos. Mas não vou aceitar”, confia um habitante de Sur. “Põem a bandeira turca em todo o lado. Mas vamos resistir.”

Embora não se conheçam ainda projectos concretos, teme-se que os moradores sejam impedidos de regressar. Sur é um núcleo urbano classificado com vestígios de povos diferentes (arménios, romanos, otomanos, curdos, muçulmanos, e outros) e corre o risco de ser obliterado por construções que imponham o carácter muçulmano sunita.

“Era uma criança”

“Escondia-se aqui um atirador furtivo a disparar”, conta Cahit Morgül, num terraço de Sur. Muito delgado, quase como se o vento o pudesse dobrar, com o rosto encovado e os olhos grandes, tristes, é um pai de luto. “Tinha um filho de 14 anos e mataram-no. Mesmo que tivesse alguma arma, e nunca lhe vi nenhuma, não o podiam ter matado. Era uma criança”, contou.

“Quando atacaram a minha casa, começou a arder. Até usaram helicópteros.” Os momentos em que o Estado desencadeou toda essa força bruta contra um civil ficaram imortalizados em fotos da Reuters. “Também usaram gás, não sabia o que fazer”, conta. Tirou primeiro de casa o filho mais novo. Já não conseguiu tirar o mais velho: os militares mataram-no a tiro.

“A nossa vida familiar está destruída. Se não estivesse aqui convosco, estava com a minha mulher no cemitério. Estamos lá das 14h às 19h, todos os dias”, confessa Cahit Morgül. “O meu filho mais novo tem sete anos. Perguntaram-lhe na escola o que quer ser quando for grande e ele disse que quer juntar-se à juventude do PKK, para vingar a morte do irmão.”

Para se livrar de algumas centenas de militantes — não há números oficiais —, o Governo não hesitou em usar força letal. “O resultado foi uma destruição tão grande que faz lembrar as cidades europeias em escombros após a II Guerra Mundial ou a guerra na Síria”, diz Raci Bilici. Há vários relatos de pessoas mortas em caves — mortas a tiro e depois queimadas.

As barricadas começaram a ser erguidas depois de, em Outubro de 2014, o Presidente Erdogan ter afirmado que Kobani, a cidade curda na Síria tomada pelo Estado Islâmico um mês antes, ia cair. Acabou por ser reconquistada pelos peshmergas, os combatentes curdos, no ano seguinte.

Banhos de sangue

É impossível não ver a sede do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) em Diyarbarkir, na parte moderna da cidade: a entrada está ornada de enormes painéis com a fotografia do primeiro-ministro, Binali Yildirim. Ao entrar, a parede do lado direito, rente à escadaria, tem um enorme retrato do Presidente Recep Taiyyp Erdogan que nos acompanha na subida.

Mustafa Kaçmaz, segundo vice-presidente do AKP em Diyarbarkir, faz uma análise dos motivos desta enorme operação de segurança. “O problema é que o HDP decidiu apresentar uma lista nacional e não concorrer com candidatos independentes, como antes”, analisou.

“Antes das eleições, o HDP dizia que queria continuar as negociações de paz [iniciadas dois anos antes]. Mas depois ofereceram-se para qualquer coligação que afastasse o AKP do poder”, afirma Kaçmaz, um advogado curdo que escolheu juntar-se ao partido de Erdogan.

O HDP, apesar de não ser reconhecido pelo PKK como o seu braço político, paga politicamente como se o fosse. É um partido de esquerda com uma forte componente curda — e toda a política do Curdistão tem alguma coisa que ver com o PKK. Tudo se funde no conceito nebuloso da “organização”.

Sem maioria para formar governo e com a necessidade de novas eleições no horizonte, começou a desenhar-se o cenário de violência. Kaçmaz apresenta a versão do Governo: “O HDP ameaçava as pessoas de que iria haver um banho de sangue, se os futuros resultados eleitorais não fossem os que desejavam.”

Segundo a deputada do HDP Sibel Ygitalp, foi o Governo que atiçou os ânimos, prometendo que a guerrilha curda ia lançar uma vaga terrorista: “A campanha eleitoral do AKP foi cheia de ameaças de banhos de sangue, de tentativas de descredibilizar o HDP, afirmando que os terroristas iam andar à solta se votassem em nós”, afirmou.

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"Não às prisões" ouviu-se nas ruas de Istambul em Novembro, quando o governo turco prendeu dois líderes pró-curdos YASIN AKGUl/afp

Reforçados pela entrada do HDP no Parlamento e ainda com o amargo de boca das declarações de Erdogan sobre a queda iminente de Kobani, os municípios do Curdistão começaram a declarar em Agosto de 2015 a autogovernação: o princípio defendido pelo líder do PKK, Abdullah Öcalan, preso em solitária desde 1999, em alternativa à independência.

Foram interrompidas as negociações de paz que decorriam há dois anos e o cessar-fogo. Ainda antes da repetição das legislativas em Novembro, em que o AKP teve maioria absoluta, a Turquia caiu numa espiral de violência.

Enquanto os curdos faziam atentados contra alvos militares e policiais, reforçou-se a repressão contra os media em todo o país. E iniciou-se a violenta operação militar contra o terrorismo no Sudeste da Turquia, com os longos períodos de recolher obrigatório.

“O Governo de Ancara não aceita a auto-organização curda, considera-a uma ameaça à existência do Estado turco”, analisou Firat Anli, co-presidente do município de Diyarbarkir, preso dias depois da visita da missão das ONG europeias, que o PÚBLICO acompanhou. É acusado de promover actividades terroristas. A guerra na Síria e o desejo de autonomia dos curdos foram os factores que levaram ao colapso do processo de paz, analisou.

“A Turquia tem problemas muito graves. A mentalidade do Governo é estar sempre a lutar contra alguém: contra os jornalistas, os escritores, os autarcas, os curdos”, disse Anli.

A ex-deputada Ayla Akat Ata, líder do Congresso Livre das Mulheres (KJA), foi deputada durante oito anos e sabe o que é ser um alvo do Governo. Foi presa no mesmo dia que os presidentes da câmara de Diyarbarkir. Feições muito desenhadas, cabelo preto comprido escadeado, dirige uma organização que agrupa mulheres de partidos, sindicatos e associações curdas. O seu tempo no Parlamento valeu-lhe mais de 200 casos em tribunal.

“Uma declaração à imprensa, um comunicado, um pedido de esclarecimento — tudo isso serve, sob a acusação de agir em conluio com uma organização terrorista”, explicou. “Sou advogada, sei que isto não é legal.” Agora, Ayla Akat Ata está na prisão, com novas acusações.

Professores presos

Após o golpe de Estado falhado de 15 de Julho, de que foram acusados os seguidores do imã Fethullah Gülen, multiplicaram-se ainda mais as perseguições, os atentados à liberdade de expressão. Houve uma verdadeira razia entre os professores: entre os perto de 100 mil funcionários públicos despedidos, cerca de 50 mil são professores. E metade pertence a um sindicato de esquerda, o Egitim Sen.

Siyar Sakar Atlian tem uma camisa aos quadrados, calças de ganga justas, o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo, as sobrancelhas finas e arqueadas. “Sou professora há 18 anos e o meu marido há 20. Agora ele está preso, por causa das suas actividades no sindicato. Foram buscá-lo a casa de madrugada, com a minha filha mais velha a ver. Disse à minha mais nova que o pai foi para um campo de férias de futebol. Mas ela começa a fazer perguntas”, conta, num retrato de aflição.

É sempre assim: a polícia vem de madrugada e prende um professor. “Chegam pelas 5h, e temos de responder com uma espingarda apontada à cara e uns grandes focos de luz nos olhos”, contou Semra Kiratli, cujo marido dá aulas há 18 anos e foi levado para a prisão. “Mandam-nos deitar no chão, não tocar em nada. Espalham-se pela casa toda, como se ali houvesse algo de anormal.”

Chegam nos veículos blindados brancos marcados com números garrafais, que andam pelas cidades a toda a hora do dia ou da noite. Intimidam. Revistam a casa, vasculham os livros nas estantes, conta esta mulher vestida de azul, cabelo preto comprido, brincos prateados compridos, brinquinho brilhante no nariz, rosto de meia-lua. “A minha irmã está a viver lá em casa, vai-se casar esta semana, e o meu marido pediu para se despedir dela. A polícia disse que se calhar devia ir ao casamento também.”

“O meu filho faz perguntas, não consegue dormir até às seis da manhã. Eu digo-lhe que o pai não cometeu crime nenhum. Tento manter o moral, mas é muito difícil, estou sempre muito ansiosa”, diz outra professora, Pursenk Gencer Kaya, cujo marido, também professor, foi preso. “Estou tão desesperada. O meu único desejo é que toda a gente possa ter um dia sem ansiedade.”

O P2 viajou a convite do Movimento Europeu Anti-Racista (EGAM) e da Rede de Parlamentares Elie Wiesel para a Prevenção de Genocídios