Mísia ou uma volta à vida em 40 canções

Não é fácil espelhar com fidelidade uma carreira num só disco. Vinte e cinco anos depois de gravar o primeiro, Mísia meteu as mãos à obra e fê-lo. Do Primeiro Fado ao Último Tango chega sexta-feira às lojas e dia 2 de Dezembro ao palco do Teatro da Trindade.

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Mísia numa das fotos da sessão para este disco: “Uma das coisas que me perseguem, e ainda bem, é que eu fui a primeira fadista a ir a muitos sítios depois da Amália” Francisco Aragão

Quarenta canções, doze discos, 25 anos de carreira discográfica: num disco duplo, a que chamou Do Primeiro Fado ao Último Tango, Mísia faz o mais completo auto-retrato da sua vida musical. Um disco que chega esta sexta-feira às lojas e que muito a satisfaz. “Foi muito difícil. Para já, foi difícil escolher 40 músicas. Tive de deixar de fora filhos muito queridos. Uma coisa que eu tinha clara é que queria os poetas. Porque a palavra foi uma das coisas que me fizeram cantar fado. E estou orgulhosa de ter um poema da Agustina Bessa-Luís, o único que se conhece, ou de ter trabalhado em conjunto com o Vasco Graça Moura (tenho vários poemas dele escritos especialmente para a minha voz). E de ter poemas do José Saramago, da Hélia Correia, da Lídia Jorge.”

Há, além disso, a presença dos cantautores. “Também era importante tê-los aqui. Fui a primeira pessoa a convidar a Amélia Muge a escrever para fado, por exemplo. Ou o Jorge Palma, ou o Vitorino. Fui procurar pessoas de universos que não eram o do fado. Para mim é o caminho e este disco mostra esse caminho.” E há, na carreira de Mísia que se espelha neste disco, duetos e colaborações, que aqui incluem Maria João Pires, Iggy Pop, Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto, Fanny Ardant, Martírio, Dead Combo, The Legendary Tiger Man ou Melech Mechaya. Vários universos que ela abarcou, a pretexto do fado ou de outras músicas que foi abraçando. “Aqui houve temas que me surpreenderam a mim própria, como Hurt, que eu fiz e que não estava à espera que me tocasse no mesmo sítio onde o fado toca, no destino trágico. Foi mesmo difícil escolher só quarenta temas.”

A colectânea, dividida em dois discos, não respeita a ordem cronológica ao alinhar as canções, pelo contrário, fá-las dialogar de forma inesperada sem olhar a datas mas sim a sentimentos, conexões, histórias. Para quem gosta de contas, aqui vão: se a pusermos ao lado dos doze discos de Mísia, veremos que do primeiro disco, Mísia (1991), há apenas um tema, vindo depois 3 temas de Fado (1993), 4 de Tanto Menos Tanto Mais (1995), 4 de Garras dos Sentidos (1998), 4 de Paixões Diagonais (1999), 2 de Ritual (2001), 3 de Canto (2003), 5 de Drama Box (2005), 2 de Ruas (2009), 2 de Senhora da Noite (2011), 7 de Delikatessen (2013) e 3 do mais recente, Para Amália (2015). Já havia uma colectânea anterior, também em disco duplo, chamada apenas Mísia, mas a escolha dos temas e o alinhamento foi da exclusiva responsabilidade da Warner, que a editou, e incluía 25 temas (12+13), todos eles dos discos desta editora.

A actual, que já foi feita por escolha dela (“mas em comunhão com o Rui Chen, da Warner, com quem adorei trabalhar”), começa com Fado adivinha II (de Drama Box), que tem poema de José Saramago e música de Mário Pacheco. “Esse é um bocadinho o resumo da história que se segue”, diz ela. “Quem se dá, quem recusa, ‘quem é quem é coração’, quem acredita, quem não acredita, quem dá nós, quem os desfaz. É o que explica o que vem depois. Foi por causa disso que eu quis começar com esse fado.”

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FRANCISCO ARAGÃO

O coração tem asas

O segundo disco, a que Mísia chamou As Asas do Coração, abre com Unicórnio, do poeta e cantor cubano Silvio Rodríguez. “Tem a ver com os sítios aonde o coração me levou. Por exemplo, a uma música cubana. E o Unicórnio, que é cantado em português, eu podia ter feito a adaptação porque falo castelhano perfeitamente, mas quis convidar o Luís Represas para a versão portuguesa, por ele estar muito ligado à realidade cubana.”

O coração levou-a a muitos lugares, aliás, não só a Cuba. À Itália, por exemplo, onde participou no documentário musical Passione, de John Turturro (2010), sobre a música napolitana, ou à Argentina, onde integrou o espectáculo Giosefine, baseado num conto de António Tabucchi, estreado em Buenos Aires e agora ali nomeado para um prémio chamado Teatro del Mundo. Mas também correu muitos palcos. “Fiz três tournées nos Estados Unidos, numa altura em que não havia internet e aqui ninguém soube. Uma das coisas que me perseguem, e ainda bem, é que eu fui a primeira fadista a ir a muitos sítios depois da Amália. As pessoas diziam: ‘Ah, só a Amália é que esteve aqui, há 15 anos!’ Isso aconteceu-me na Turquia, no Town Hall em Nova Iorque, na Roménia. A primeira pessoa que fez o Womad fui eu, na Austrália. A primeira pessoa depois da Amália que saiu na Billboard a falar de fado fui eu. A primeira pessoa que cantou fado na Filarmonia de Berlim, um ponto muito alto no meu caminho, fui eu. Não digo isto para me gabar de nada, mas porque tenho pena que não se saiba. Depois apareceram novas vozes, e ainda bem, e como a comunicação hoje é outra sabe-se logo quem é que cantou em Nova Iorque.”

Amália Rodrigues, cantora magistral que se tornou figura essencial na história do fado, abordou ao longo da sua carreira muitos outros géneros musicais, moldando-os ao seu estilo. E cantou-os em várias línguas. Esse gesto pioneiro, que depois outros seguiram ao seu modo, também está presente na carreira de Mísia. “Eu digo sempre, nos meus concertos, quando falo dela, que a Amália foi, avant la lettre, uma artista world music. Cantou em castelhano (flamenco, rancheras, boleros), italiano (siciliano, napolitano), francês, inglês. Era uma navegante. E isso foi muito generoso da parte dela.”

Voltando à colectânea. Embora a escolha dos temas acabasse por ser dela, a ideia foi da Warner, por causa dos 25 anos passados desde o primeiro disco, cumpridos em 2016. Só que ainda havia o lastro do, também duplo, Para Amália, editado nos últimos meses de 2015. E este teve de esperar. Foram meses de escolhas e de alguma introspecção. “Isto levou-me ao princípio, quando eu andava literalmente de porta em porta, tipo vendedora de tupperware, com uma pasta, a dizer ‘olá, eu sou a Mísia, não pensem que sou só esta franja e esta mini-saia’. Lembro-me de ir ter com o maestro António Victorino de Almeida, à Rua do Quelhas, à rádio, aos pequenos-almoços que ele lá fazia, dizer e pedir. Perguntam-me, muitas vezes: ‘Como é que conseguiste?’ Fui e pedi. Foi como com o Iggy Pop [que gravou com ela Chanson d’Héléne em Delikatessen]: pedi.”

Isto pode ser visto como ousadia, mas Mísia prefere outra palavra: “Mais do que ousada, sou temerária, sou corajosa. Fui educada pelo meu pai para ser corajosa. Ainda me lembro de o ouvir, na piscina de Ofir, dizer: não és uma Aguiar [apelido da família paterna] nem és nada se não te atiras daí de cima [da última prancha]. E eu atirava-me. Agora não me atirava nem que me pagassem. Mas continuo a ser temerária. Não sei explicar, há uma força que me impulsiona. Se não correr bem, paciência, aceito.”

Espanto e satisfação

Esta colectânea é de algum modo, para ela, um “arrumar da casa”. “É curioso que não sendo mainstream nem grande vendedora, sem grande marketing ou promoção (e isto não é uma crítica, são as leis do mercado), mesmo assim consegui fazer uma média de um disco em cada ano e meio. Como é que consegui? Isso até me espanta a mim!” Em resumo, a fechar o capítulo: “Este disco está feito com paz, com satisfação, com alegria. A fotografia da capa espelha mesmo o que está lá dentro: Olha p’ra mim! Cheguei aqui e não estava à espera de conseguir.” O efeito-surpresa funcionou até para ela. “Nunca oiço os meus discos. Porque achamos sempre que podíamos ter feito melhor. Estou sempre no disco futuro. Mas agora que fui ouvir, admirei-me com algumas coisas que nem me lembrava de ter feito e isso serviu um bocadinho para a minha auto-estima.”

No dia 2 de Dezembro, uma sexta-feira, Do Primeiro Fado ao Último Tango vai ser apresentado ao vivo no Teatro da Trindade, às 21h30. Mísia diz: “Vou convidar os meus cúmplices, músicos, fotógrafos, quem puder ir. Anuncio já que a Amélia Muge estará, para cantar comigo o poema belíssimo que ela escreveu que se chama Amália sempre e agora (que no disco é cantado pela Maria Bethânia).” Inquieta, tem ainda vários outros projectos em mente ou já em curso: um livro, ideias para discos, teatro. E alguns segredos que guarda para mais tarde. Por isso título do disco engana, não no que respeita ao primeiro fado mas ao último tango. Não é o último, há muitos mais na calha.

Correcção: por lapso, já corrigido, associou-se neste texto o documentário musical Passione à Argentina, quando é italiano e rodado em Nápoles.

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