“Tornei o transformismo respeitável”

Fernando Santos/Deborah Kristal, actor-transformista: "Nos bares gay, o público costumava ser muito cruel com os transformistas." Um testemunho na primeira pessoa.

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"O meu reportório incluía Shirley Bassey, Liza Minnelli, Barbra Streisand e depois as espanholas: Rocío Jurado, Isabel Pantoja, números de flamenco" Miguel Manso
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Fernando Santos (foto de 2009): "Fiz todos os cabarets possíveis e imaginários, desde Vila Real de Trás-os-Montes até Sagres, salas de festa, casinos na Figueira da Foz e em Monte Gordo" Miguel Madeira/arquivo

A discoteca Finalmente assinala 40 anos em 2016 e é hoje o único espaço em Portugal com espectáculos diários de transformismo. Fernando Santos, conhecido como Deborah Kristal, é director artístico da casa há 16 anos, mas estreou-se ali em 1984. Estas são as memórias na primeira pessoa do travesti mais conhecido do país — dias depois de a discoteca lisboeta ter distinguido Herman José com o primeiro Troféu de Artes Cénicas Finalmente Club e de Fernando Santos surgir como protagonista do teledisco Labirinto ou não foi nada, da fadista Gisela João.

Naquele tempo, não tínhamos o tempo de agora. Era tudo muito rápido. Hoje tudo demora, vai-se fazendo, as pessoas andam um bocado enroladas. No transformismo e não só. No início da década de 80, as coisas aconteciam de um dia para o outro. Agora estava aqui, amanhã uma pessoa convidava-me para ir trabalhar não sei para onde, depois conhecia alguém na noite que me levava para o Porto ou para o Algarve.

Nasci no bairro da Mouraria, mas nessa época vivia na Rua Morais Soares, perto da Praça do Chile. Estava ali desde os 11 anos. Tenho 50, comecei a fazer espectáculos de transformismo em 1979 no Fórmula 1, na Amadora. A minha primeira personagem foi Maria José Valério, com a canção Ontem Sonhei. Eu nem sabia quem era a senhora, ouvia-a na rádio. Compus o boneco com a ajuda de um amigo, figura típica da Mouraria, que todos os Carnavais se mascarava de mulher e tinha vestidos em casa.

O início foi uma casualidade. Decidi ir divertir-me no Rocambole, uma casa que hoje é a segunda sala do Trumps e na altura era um espaço à parte. Ia a descer as escadinhas para a discoteca quando uma pessoa me abordou e perguntou se eu não gostava de fazer travesti, porque era muito jovem e bonitinho.

Essa pessoa era Miss Gazelle, uma transexual que eu conhecia da noite. Ela tinha vivido em Paris, era muito simpática, trabalhava nos cabarets de Lisboa, fazia strip-tease como uma mulher, tinha acessórios e adereços à francesa. Apresentou-me aos donos do Fórmula 1, um casal, homem e mulher.

Em três anos, andei a uma velocidade imparável. Comecei como transformista, fui para o Porto com espectáculo próprio, fiz o Carnaval de Torres Vedras e regressei a Lisboa para trabalhar no cabaret A Gata, na Travessa da Glória, que depois se chamou Still Power.

Eu queria ser actor desde sempre e isto foi a oportunidade que tive de entrar no mundo do espectáculo. Em 1984, estreava-me no Finalmente.

Já tinha estado aqui como cliente, conhecia o dono, que também era porteiro, o Armando Teixeira, que foi a alma deste negócio. Uma noite, eu e a pessoa que dirigia o espectáculo n’A Gata, viemos falar com o Armando e rapidamente fechámos contrato, tudo de boca. E começámos a actuar.

Eram tempos mais liberais

O Finalmente começava a dar espectáculos às 11 da noite e acabava às seis da manhã. Eram muitos espectáculos seguidos, com muitos artistas: cantores que tinham vindo de África, negros e brancos, grupos com meninas a dançar atrás, mais uma senhora a dizer poesia, mais um grupo de brasileiros, um grupo de travestis.

O ambiente era terrível, igual ao do Cacau da Ribeira, uma casa onde toda a gente vai parar em fim de noite. Um ambiente forte, pesado, complicado. Nem havia palco, tínhamos um estrado ao pé das casas de banho, que se punha e tirava. Ao fim de dois meses, despedi-me. Fui ao Armando e disse-lhe: “Gosto muito de ti, mas odeio o Finalmente.” Fui-me embora, não fazia tenções de voltar a trabalhar aqui.

Aqueles primeiros anos permitiram-me crescer muito depressa como artista. Já fazia aberturas e finais, fazia rábulas improvisadas, criei muitos bonecos. Uma vendedeira de flores, uma vidente com bola de cristal, uma cauteleira de bata preta com as lotarias pregadas na lapela. Aquelas personagens tinham povoado a minha infância, eu próprio tinha vendido flores na Ribeira e ainda hoje tenho amigas que vendem flores na Rua Augusta e que são da Mouraria.

Entrava pelo público, falava com o público, naquela altura ninguém fazia isso, a não ser quando apresentavam os concursos de Carnaval. Foi uma inovação que trouxe ao transformismo. Dizia graças alusivas ao tema que levava. Aquilo pegou.

As minhas primeiras maquilhagens foram feitas por uma amiga lá do bairro que me pôs um brilhozinho nos lábios, hoje diz-se gloss, fez-me um risquinho verde no olho, pôs-me rímel e eu estava pronto. Nessa altura já vivia perto do Castelo com uma família que me acolheu quando fugi de casa dos meus pais. Saía de casa maquilhado, mas eles não achavam estranho, sabiam que eu ia trabalhar para levar dinheiro para casa.

Naquela época via-se muito. Depois do 25 de Abril, regressaram os travestis que tinham fugido para França, Luxemburgo. Alguns eram transexuais, já operados, criaram um sururu incrível nesta cidade. Não havia uma, havia 40, pelo menos. Eram tempos muito mais liberais do que hoje, sem sombra de dúvida.

A propósito: aos 18 anos cheguei a pensar mudar de sexo, perguntava-me a mim mesmo se gostaria de ter nascido mulher. Uma transexual ofereceu-se para pagar toda a minha transformação, operações e tudo, e eu iria pagando de volta com o tempo, conforme fosse rentabilizando. Pensei bem e recusei.

Nunca tive a certeza de querer fazer disto vida. Fui fazendo. Nunca tive um plano como artista, pode ter sido esse o meu segredo. Já ouvi o João Baião e o Joaquim Monchique contarem que uma vez no Parque Mayer olharam para os cartazes e disseram: “Um dia vou ter aqui o meu nome em letras grandes.” Nunca pensei nessas coisas, tudo aconteceu naturalmente.

A verdade é que a certa altura quis aperfeiçoar-me. Comecei a ter aulas de dança, para ganhar expressão corporal, e pedi a coreógrafos que me ajudassem a crescer nesta arte.

O primeiro coreógrafo com quem trabalhei foi primeiro bailarino do Teatro Nacional de Cuba. Estava fugido, primeiro Itália, depois Portugal. Trabalhou no Teatro ABC e no Frou-Frou, um cabaret no Campo Grande. Era o Oscar Gonzalez.

Todos os cabarets...

Tenho a certeza absoluta de que fui o primeiro artista nesta área a fazer um número sem playback, e não foi a usar a minha voz: foi a dançar, só música, sem letra. Foi ele que me ajudou.

Como disse, saí do Finalmente poucos meses depois de ter entrado. A década seguinte passeia-a quase sempre em digressão, fiz todos os cabarets possíveis e imaginários, desde Vila Real de Trás-os-Montes até Sagres, salas de festa, casinos na Figueira da Foz e em Monte Gordo, andei nas Canárias e na Madeira. Do melhor e do pior. Os meus pais ainda eram vivos e a paixão pela minha mãe obrigava-me, onde quer que estivesse, a vir passar o Natal com ela. Ao fim de tanta digressão, estava triste, não tinha amigos, passava de uma cidade para outra, queria acabar com aquela vida.

Voltei a Lisboa. Ainda fiz o cabaret Maxime, depois trabalhei no Memorial, onde fui substituir a dona Simone de Oliveira aos domingos. Na passagem de ano de 1993 para 94 pisei novamente o palco do Finalmente.

A Ruth Bryden tinha sido estrela da discoteca nesses anos, embora a maior de todas fosse a Lydia Barloff, o actor José Manuel Rosado. Faziam um pouco a bela e o monstro: a Ruth era a vamp bonitinha, o Rosado era o burlesco, o boneco mais feio. Um dia chatearam-se. A Ruth foi para o Trumps, eu fiquei no Finalmente. O Rosado foi à vida dele.

Estreei-me logo com um espectáculo inspirado no filme do Amadeus Mozart, com tudo vestido a rigor. Era eu, a Jenny Larrue, a Samantha Rox, o bailarino Jorge Marín, que era venezuelano, e o Roberto Gutierrez, que ainda há poucos anos entrou em A Gaiola das Loucas, do Filipe La Féria.

O meu reportório incluía Shirley Bassey, Liza Minnelli, Barbra Streisand e depois as espanholas: Rocío Jurado, Isabel Pantoja, números de flamenco. O critério era eu ser feliz a fazer e ter a intuição de que o público gostava. Achei que me iria estabelecer no Finalmente, mas a vida dá muitas voltas.

A casa tinha um ambiente mais pacífico, já não era aquele caldo dos anos 80. Mas a Lydia Barloff veio trabalhar para aqui em 1996 e não nos entendemos.

Foi uma guerra de estrelas. Troquei pelo Trumps, a seguir ainda fui tomar conta do Nina, um café-concerto no Chiado. Por fim, em 2000 vim para ficar. Estou Finalmente até agora, sem mais interrupções.

Uma forma artística

Nos bares gay, o público costumava ser muito cruel com os transformistas, incluindo aqui. Tive a sorte de andar muitos anos em casinos e cabarets, não apanhei esse ambiente. Os que abandonaram o travestismo, incluindo a Doll Phoenix, o Sérgio Alves, considerado o maior travesti de sempre, saíram desencantados. Alguns gays já entrados na idade vinham aos espectáculos, depois de beberem uns copos, e diziam que iam ver as “macacas”. Os artistas cansavam-se, sobretudo aqueles que tinham outro emprego de dia. As pessoas atiravam moedas para o palco, ofendiam os artistas, vomitavam em cena.

Acho que aqui no Finalmente tornei o transformismo respeitável, passou a ser encarado como uma forma artística. Já tinha havido fases assim, claro, quando o transformismo esteve no auge, mas depois caiu. A qualidade dos espectáculos, a comunicação no fim do show, a minha personalidade, não sou uma “maria vai com as outras”, às vezes tenho mau feitio com quem quer abusar, tudo isso terá ajudado.

Recordo muitos espectáculos que aqui fiz, produções grandes, que marcaram. Nos últimos anos gostei muito de criar Eternas Femininas. Foi em 2014. Era uma crítica ao Estado Novo e à época salazarista que ainda vivi. Ao Portugal de Salazar os intelectuais chamavam “país dos três efes”: futebol, Fátima e fado. Fico estupefacto ao constatar que essas coisas cresceram no pós-25 de Abril. Vejo esses mesmos intelectuais a alimentarem agora os três efes. Há aí uma contradição que não entendo.

A partir de uma conversa com Fernando Santos

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