Os 15 minutos de barbárie que mudaram Timor
Antes de Santa Cruz, houve massacres terríveis, alguns até mais sangrentos. Mas nenhum foi filmado. A 12 de Novembro de 1991 ficou provado, em vídeo, do que os militares indonésios eram capazes.
Fora de Timor Leste, o massacre de Santa Cruz de 12 de Novembro de 1991, dentro de um cemitério de Díli, teve um significado político claro: a resistência timorense tinha “capacidade de acção política para romper o muro de silêncio”, com resume Carlos Gaspar, da Fundação Oriente e na altura conselheiro político no Palácio de Belém. Dentro de Timor, 25 anos depois, ainda se procuram mortos. Há os 271 que morreram no cemitério, mas há mais de cem que morreram nos dias seguintes e nunca foram entregues às famílias.
Recolhemos algumas memórias de um dia que — com a ajuda de Max Stahl, cujo vídeo do massacre passou na CNN — obrigou o mundo a abrir os olhos para as brutais e contínuas violações de direitos humanos em Timor. Os timorenses ainda tiveram de esperar oito anos até verem os indonésios sair do seu país. Mas naqueles 15 minutos de horror, a causa da independência ganhou uma força incrível e inédita. “Foi a prova que eu procurava”, diz o documentarista britânico.
Do outro lado do muro
Eu era directora da escola básica da paróquia de Balide, mesmo ao lado do cemitério de Santa Cruz. Muitos meninos saltaram o muro e fugiram para a nossa escola. Cinco meninas e seis rapazes. Uma menina estava toda coberta de sangue. Primeiro, assustei-me. Depois percebi que o sangue não era dela. A menina não conseguia falar e só repetia:
— Atingiram a minha irmã!
Mais tarde, disse-me quais tinham sido as últimas palavras da irmã: “Sai já daqui senão também morres.”
Ela tinha uns 15 anos. Chama-se Dália Corte Real, é irmã do Henrique Corte Real, que agora é professor de Direito na Universidade de Díli. Tornou-se freira, como a irmã que morreu nesse dia. Eu estava com muito medo, mas disse-lhes para não chorarem. Começámos todos a rezar. Pela janela, víamos os camiões a passar com mortos e feridos a caminho do Hospital de Lahane. O padre goês António Eduardo de Paulo Brito disse aos miúdos que vestissem as fardas extra que tínhamos sempre na escola por causa da chuva, e que varressem o átrio da igreja.
Como se não fosse nada.
Uns ficaram na rua a varrer, outros foram para dentro da minha sala de aulas. Eu ensinava bahasa indonésio ao 6.º ano — a língua do inimigo! Para dar um ar de normalidade, comecei a fazer uma cópia. Escrevi duas ou três frases no quadro. “Tema: a minha escola.” E em baixo, “A minha escola é bonita”, “A minha escola tem muitos alunos”. Foi tudo muito rápido. Talvez 15 minutos. Até que um servente veio avisar que os militares iam entrar na escola.
Comecei a ditar as frases em voz alta. Os miúdos estavam todos misturados, com a farda da escola, sentados nas carteiras. Quando os militares entraram, os mais velhos fecharam a cara dentro dos livros, como se estivessem concentrados a ler. Às tantas, os militares entraram. Eram três. Um vinha sem camisa. Com a arma, mas sem camisa. Perguntaram se tinha entrado alguém da rua. Lá fora, fizeram a mesma pergunta ao padre Eduardo, mas ele respondeu em português:
— Não falo a vossa língua!
E depois, em tétum, mandou os miúdos varrerem. Dos onze, estão todos vivos. O meu amigo Mateus, com quem estive escondida no mato durante quatro anos, morreu em Santa Cruz. Ainda hoje o corpo não foi encontrado. Mas o meu sobrinho Hermingardo Albano da Costa Soares sobreviveu. Hoje é director da comissão independente que supervisiona as compras da administração pública. Na altura era adolescente e estava na escola interna salesiana de Fatumaka, em Baucau. Na noite anterior, apareceu na minha casa, em Díli, para me dizer que ia participar na manifestação do dia seguinte e que estavam todos prontos para morrer.
— Mas tia, por favor não diga à minha mãe. Só quero avisar, para o caso de acontecer alguma coisa.
Só à noite é que soube que ele tinha sido atingido no cemitério. Ainda tem a bala no corpo. Nos primeiros dias a seguir ao massacre, não houve primeiros socorros. Os miúdos ficaram no hospital a morrer. Por isso, enviámos um medicamento timorense que é muito bom para estancar sangue. Um motorista das ambulâncias militares indonésias era meu afilhado de casamento. Foi ele quem levou o frasco para o hospital.
Maria da Paixão Costa, 56 anos, licenciada em Ciências Políticas e Indonésio, ex-secretária das mulheres da Região 4 da rede clandestina da resistência (que incluía metade do país), ex-deputada do PSD timorense após a independência em 2002, e actual embaixadora de Timor Leste em Portugal.
Fugir em todas as direcções
Saí de casa às 5h da manhã para a missa na Igreja de Motael. No fim, formámo-nos em frente da igreja com as bandeiras içadas e fizemos a marcha para o cemitério de Santa Cruz. No percurso fomos provocados pelos militares e pelos membros dos Serviços de Inteligência. Houve quem se tivesse infiltrado na manifestação. Alguns jovens esfaquearam e agrediram um militar que teve de fugir e procurar refúgio num quartel. A acção foi brutal, mas continuámos a marcha até ao cemitério. Quando quisemos colocar as flores na campa do Sebastião Gomes, os militares indonésios que se tinham escondido no cemitério dos Heróis da Indonésia, mesmo ao lado do de Santa Cruz, abriram fogo e nós fugimos em todas as direcções. Eu fui alvejado na perna esquerda e na parte detrás do braço esquerdo. Caí, levantei-me e quis fugir mas não consegui. Tinha a perna partida.
Entretanto os militares entraram no cemitério à procura de manifestantes, para os alvejar e esfaquear. Dois militares tentaram levantar-me e bateram-me com a arma na cabeça. Comecei a sangrar da cabeça e caí novamente ao chão. Arrastaram-me para a estrada, despiram-me até ficar completamente nu e lançaram-me para dentro de um grande camião militar, onde estavam depositados os corpos de alguns mortos. Bateram-me novamente na cabeça para não gritar e não espreitar para fora do camião. Levaram-nos para o Hospital Wira Husada de Lahane para fazer tratamentos das feridas. Depois de três semanas no hospital, a 3 de Dezembro levaram-nos para o aeroporto logo de manhã para apanharmos o avião para Jacarta — no meu caso para operar a minha perna partida. Éramos sete. Durante três anos fizeram-nos tratamentos. Enquanto fazíamos a recuperação, tínhamos de fazer a limpeza geral do hospital. Sempre na condição de prisioneiros, controlados pelos militares.
Alex Samurai, membro da Polícia Nacional de Timor Leste, em Díli.
A esperança dada pela CNN
Apanhei três tiros na perna esquerda, vi muitos companheiros serem massacrados, alvejados, esfaqueados, capturados e presos. Tinha 15 anos. Foi um dia triste, mas um dia de que tenho muito orgulho. Fiz uma coisa que ajudou a libertar a minha pátria. Estávamos preparados para o pior. Estávamos prontos para morrer. Quando os militares indonésios começaram a disparar, eu estava com um primo — desaparecido até hoje — em frente ao portão principal do cemitério. Gritávamos “Viva Xanana!”, “Viva Timor Leste!”, “Queremos paz em Timor!”, “Viva loriku assuain!”, a expressão que usávamos para falar dos jovens guerreiros. Fugi para dentro do cemitério e tentei esconder-me. Aí, vi os militares indonésios fazerem coisas terríveis. Consegui fugir para uma casa perto do cemitério. Como sou do bairro de Santa Cruz, conhecia o terreno. Foi o que me safou. Quando soube que as imagens de Santa Cruz tinham chegado à CNN fiquei muito contente. Desta vez, a Indonésia estava em maus lençóis. Hoje vou rezar e fazer um minuto de silêncio pela alma das vítimas de Santa Cruz. Que tenham descanso em paz.
Joaquim Jacob da Silva Fernandes, 2º secretário na Missão Permanente de Timor-Leste Junto da CPLP em Lisboa.
Um desmaio salvador
Tinha 22 anos e estava a acabar o liceu em Díli. Nessa altura, perdíamos muitos anos de escola. Em 1991, nós, os estudantes, já estávamos muito unidos e já sabíamos que tínhamos de fazer alguma coisa para chamar a atenção do mundo. Foi a visita a Timor do Papa João Paulo II, em 1989, que ajudou a fazer essa viragem. A missa em Tacitolo teve mais de 100 mil timorenses. Nós fizemos uma manifestação, mas pequenina. Na altura não havia telemóveis, por isso organizámos tudo com estafetas e colegas, bairro a bairro. Para Santa Cruz, usámos o mesmo método. Cada bairro organizou os seus jovens. A delegação de deputados portugueses estava para vir a Díli e nós tínhamos organizado uma manifestação. E sabíamos que havia jornalistas estrangeiros na cidade. Quando a visita foi cancelada, decidimos manter o protesto. O Constâncio Pinto, do comité executivo da frente clandestina, deu ordem para que informássemos todos os jovens de Díli que deveriam participar na missa de sétimo dia em homenagem ao Sebastião e a seguir ir à manifestação. Eu era do bairro Kuluhun, ao pé de Bemori e Becora. De manhã, fomos todos à missa. A Igreja estava esgotada. Tudo cheio, cheio. Dentro e fora. Levei a minha família toda. Do meu bairro devem ter ido umas 500 pessoas. A seguir, o plano era caminharmos da Igreja de Motael até ao cemitério de Santa Cruz, para pormos flores e velas na campa do Sebastião Gomes. Já tínhamos as T-shirts vestidas e os panfletos debaixo da roupa. São uns 20 minutos a pé. Mal começámos a marcha, abrimos os panfletos e começámos a gritar: “Integração Nunca!”, “Pátria ou Morte!”, “Referendo para Timor Leste!”. Gritei com aquela garra toda, era uma explosão enorme. Só pensávamos que os jornalistas estrangeiros tinham de dizer para fora o que nós estávamos ali a dizer. Quando chegámos ao Palácio do Governador, uns intel, uns bufos, vestidos à paisana tentaram desmobilizar-nos, deram murros e esfaquearam pessoas. Eu vi isso, foi mesmo ao pé de mim. Um amigo nosso foi agredido. Mas o grupo continuou. Demos a curva no Hotel Resende e seguimos em direcção ao mercado municipal. Aí, eu senti-me mal e desmaiei. Um homem que estava a passar de mota viu-me caído no chão e levou-me para casa. Mal chegámos, comecei a ouvir os tiros. Já não assisti. Os meus irmãos e a minha irmã estavam em Santa Cruz, mas só à noite é que conseguirem vir para casa. Estiveram todo o dia escondidos. A minha prima Rosa Pacheco morreu no cemitério. Tinha 12 anos. Outro amigo, o meu vizinho Manuel Braz, também morreu. Tinha 20 anos e estava a estudar. Eu escondi-me em casa de um amigo chinês. Os indonésios não desconfiavam dos chineses porque achavam que eles só pensavam em negócios e não em política. No ano seguinte, eu e mais seis colegas fugimos para o outro lado da ilha. Comprámos documentos falsos em Kupang. Depois do massacre, a situação ficou muito tensa. E tudo bloqueado. Não conseguíamos movimentar-nos. Os indonésios lançaram uma campanha de propaganda a dizer que não tinha havido mortos, só dois ou três. Uns estudantes foram para o mato e juntaram-se à guerrilha. Nós achámos que tínhamos de ir para o estrangeiro mostrar que os indonésios estavam a mentir. A resistência tinha-nos dado a morada de um rapaz em Jacarta, o Sávio Domingos. Ele era órfão e tinha sido adoptado por um militar indonésio. Fomos até à casa dele e tocámos à porta. Ele não estava. Nós dissemos que éramos estudantes e ficámos lá um dia à espera. Na boca do lobo! O pai dele era um militar indonésio! Foi uma loucura. Mas a nossa luta sempre teve ajuda divina.
José Sousa, 47 anos, vive em Lisboa desde 1994, onde é segurança. Tem dois filhos, um a estudar Gestão na Universidade Nova de Lisboa, o outro, com 16, está indeciso entre Medicina e Química.
Finalmente, a prova
Muitas vezes, o medo está na nossa cabeça, é só um fantasma. Isso não se pode filmar. Quando os militares começaram a matar, eu estava preparado. Já tinha ouvido muitas histórias. E estas eram finalmente as imagens que eu estava à procura. Era o que podia contar a história, provar o que se estava a passar. Eu estava dentro do cemitério, ao pé da campa do Sebastião Gomes para filmar os jovens a rezar e a pôr velas. Eu estava em Timor desde Agosto. Queria incluir a visita dos deputados portugueses no filme que estava a fazer sobre a situação de Timor. A resistência dizia-me que a visita era o culminar de dois anos de esforços. Estavam com muita esperança em que a visita mudasse as coisas. Estava no mato há uns dias quando recebi uma mensagem da resistência a dizer que tinha de ir para Díli. Pensei que ia entrevistar o Xanana Gusmão. Quando cheguei a Díli fui para a casa do irmão do Ramos Horta, o Arsénio. Foi aí que um estafeta me trouxe uma carta do Xanana: avisava que ia haver uma manifestação no dia seguinte e que podia haver violência. Também dizia que era importante eu estar lá e pedia para juntar os jornalistas estrangeiros que estavam na cidade. Deve ter tudo durado uns 15 minutos. Os militares apanharam-me na capela. Tiraram-me a câmara, mas eu já tinha enterrado a cassete na terra, debaixo de uma campa à beira do caminho para a capela. Não sei bem como, mas o militar acabou por me devolver a câmara. Eu não gritei. Eu estava muito zangado, muito zangado mesmo. Olhei-o só olhos nos olhos, com um ar muito sério, e repeti, calmamente:
— Devolve-me a câmara, devolve-me a câmara.
Eles estavam muito perturbados. Tinham acabado de matar centenas de jovens. Acho que ele sentiu que me matava ou me devolvia a máquina. E deu-me a máquina. Ainda filmei mais uns dez minutos depois disso. Mais tarde fui interrogado pela polícia. Mas à noite fui ao cemitério. Não estava lá absolutamente ninguém. Estava abandonado. Entrei e desenterrei a cassete. Eu sabia que os soldados indonésios tinham medo de entrar no cemitério. Sempre ouvi os homens da resistência dizerem isso.
Max Stahl, documentarista britânico que filmou o massacre e cujo vídeo conseguiu fazer chegar a Londres e às televisões de todo o mundo, vive e trabalha em Díli.
Luto em Miratejo
Eu dava aulas de Matemática numa escola em Miratejo, nos subúrbios de Lisboa, na margem Sul, hoje chamada Escola Secundária Professor Ruy Luís Gomes. Não tinha televisão, nunca tive — por opção —, e não sabia de nada quando saí de casa de manhã. Cheguei à sala de aula e os meus alunos estavam todos vestidos de preto.
E às tantas, um perguntou:
— Porque é que o professor não está de luto?
— Mas o que é que aconteceu?
— Houve um massacre num cemitério em Díli.
Tive a notícia através dos meus alunos de Matemática. Na altura, havia muitas rixas entre skinheads e negros na escola. Mas a força do massacre uniu-os e a tensão diminuiu. Liguei ao meu irmão mais velho, que vivia em Díli, e ele sempre a fugir da conversa. As chamadas entre Timor e Portugal estavam sob escuta e ele era chefe das Finanças da administração pública. Eu perguntava e o meu irmão sempre a desviar a conversa. Percebi depois que muitos dos miúdos que estavam em Santa Cruz nesse dia eram nossos vizinhos no Bairro dos Grilos, ao pé da escola chinesa. Eu fazia perguntas e ele ficava incomodado, a fazer longos silêncios.
— Os teus filhos foram a Santa Cruz?
Ele nada. Silêncio.
— Os teus filhos estão bem?
— Sim.
Eu percebi. Ele não podia falar.
Luís Cardoso, 57 anos e em Portugal desde os 17, foi nomeado representante do Conselho Nacional de Resistência Maubere a seguir ao massacre. Mais tarde, pediu para “ser escritor a tempo inteiro”. Publicou entretanto quatro livros na Dom Quixote e um na Sextante. O próximo sai em Março.
Começámos a “indonesiação do conflito”
Estava no primeiro ano da Faculdade de Psicologia na Universidade Católica de Soegijapranata, em Semarang, Java, e pertencia à RENETIL. Foi o meu amigo Metodio Caetano Moniz, da rede clandestina de estudantes. Fiquei devastada. Chorei todo o dia. Alguns de nós ficámos em pânico, com medo de novos massacres. Nessa noite, juntámo-nos na casa de um amigo, rezámos e acendemos velas pelos mortos. Foi assim durante uma semana. Durante essa semana toda nunca consegui falar com a minha família em Díli. Eu não acreditava que uma coisa destas pudesse acontecer porque Peter Koojiman, o Special Rapporteur da Comissão dos Direitos Humanos para a Tortura, estava em Díli, numa visita oficial. Para além dos jornalistas que tinham ido para fazer a cobertura da visita — cancelada — dos deputados portugueses. Mas apesar de a visita ter sido cancelada, o Max Stahl, o Allan Nairn, a Amy Goodman e outros continuavam lá. Vimos as notícias na televisão indonésia. Eles manipularam os factos. Disseram que os jovens é que tinham provocado os militares. E que só tinham morrido 17 pessoas. Nós sabíamos que não era verdade. Sabíamos que eles estavam a mentir. Começámos a trabalhar ainda mais com os indonésios que eram activistas pró-democracia. E eles começaram a ajudar-nos mais e mais. Defendiam, connosco, que Timor Leste devia ser independente. Na RENETIL chamávamos a esta actividade a “indonesiação do conflito”.
Mica Barreto Soares, ex-funcionária da Comissão Anti-Corrupção de Timor, está a fazer uma pós-graduação na Universidade de Swinburne, em Melbourne, sobre as relações China-Timor.
"Não tinha medo nem coragem"
Tinha 16 anos. Eu, como a maior parte dos manifestantes, ainda estava em frente ao cemitério de Santa Cruz quando os militares da Indonésia chegaram. Vendo a sua presença, corri para dentro do cemitério. Sendo um jovem adolescente, o meu reflexo inicial foi fugir daquele lugar para salvar-me. Mas ao ouvir os gritos e o desespero dos que estavam no cemitério, acabei por ficar petrificado. Não consegui mover-me. Passou uma enxurrada de pensamentos pela minha mente. Um deles foi o de renúncia, o de que não faria mal se fosse preso e morto.
Tive sorte.
Enquanto quase 60 jovens morreram logo ali, às mãos dos militares Indonésios, eu acabei por ser capturado com outras pessoas. Fomos levados para um pequeno abrigo na parte traseira do cemitério. Já não conseguia pensar ou sentir nada – não tinha medo nem coragem, simplesmente estava naquele lugar naquele momento.
Apercebi-me da presença de um militar da Indonésia que pertencia ao Kopassus (Komando Pasukan Khusus – Força Especial da Indonésia) que eu conhecia. Sabia quem ele era pois, por vezes, ele estava no posto militar próximo a minha casa, no bairro de Becora. Ele chamou-me para trás do local onde estávamos e acusou-me – a mim e aos outros jovens da vizinhança – de falar mal dos militares da Indonésia. Perante tal provocação, limitei-me a ficar em silêncio. O oficial retirou a sua pistola do coldre e eu assumi que o meu destino seria, evidentemente, a morte. Mas ele bateu com a pistola na minha cabeça e, para minha surpresa, tirou uma fotografia comigo e com os outros militares que ali estavam e a seguir levaram-me outra vez para junto dos outros jovens capturados.
Nessa altura, confesso que tive um sentimento de alívio por ainda não ter sido morto. Eu e os outros fomos então levados para um carro militar e recebemos ordens para que ficássemos deitados ou agachados. Pensei que estávamos a ser transportados para um local qualquer para sermos executados. Em vez disso, fomos levados para o quartel da polícia na parte oeste de Díli (a então POLWIL – Kepolisian Wilayah, actual Academia da Polícia). Estive aí detido duas semanas.
Durante a ocupação Indonésia, a violência era uma realidade habitual. De certa maneira, toda a violência era semelhante, da tortura ao homicídio. Mas o 12 de Novembro foi diferente por causa da sua intensidade num único local e por estarem ali tantos jovens e adolescentes. A posterior cobertura mediática acabou por ser a principal diferença entre esta e as outras acções violentas. Só vi o vídeo do massacre [de Max Stahl] depois da restauração da independência, em 2002. Confesso que até hoje não consigo vê-lo sem sentir uma profunda tristeza pelo que aconteceu a tantos jovens, que estavam apenas a agir a favor daquilo que era o melhor para o futuro das pessoas e da nossa nação.
Fernando “Lekinawa” da Costa juntou-se à Resistência Nacional dos Estudantes de Timor-Leste (RENETIL) depois do massacre de Santa Cruz e foi estudar para a Indonésia. Hoje trabalha na Fundação Haburas, uma ONG timorense que luta pela protecção do meio ambiente.