Chorei como se tivesse morrido alguém da minha família, porque Leonard Cohen é da minha família. Demasiado importante, demasiado próximo, demasiado meu. É esse o dom dos génios: estabelecem relações íntimas com milhões de pessoas. Eu fui abençoado pelo dom mais modesto da monogamia, e na música foi com ele que me casei. Claro que há muitos outros e muitas outras, mas não da mesma forma, não com a mesma paixão, não com esta intensidade, porque em mais ninguém encontrei tamanha capacidade de iluminar o interior das coisas e das pessoas, traduzindo por palavras o que não sabíamos sentir. Não há outro a quem possa dizer: “Dá-me só mais um verso, Leonard, e eu serei salvo.” Chamar-lhe músico ou poeta é ficar aquém. Era um profeta que nos falava das únicas duas coisas que realmente importam na vida: Deus e o amor.
Comecei por não o suportar. Estávamos em 1988 e Leonard Cohen tinha acabado de lançar um álbum chamado I’m Your Man. Não sei quantas semanas esteve no primeiro lugar do top português, mas sei que não aguentava mais o teledisco de “First We Take Manhattan”, com as gaivotas no céu e Cohen na praia. Tinha 15 anos e era demasiado novo. Continuei a ser demasiado novo durante muito tempo. Em 2002 tive um privilégio único: quando regressou aos discos após nove anos de silêncio e cinco de meditação num mosteiro budista da Califórnia, fui entrevistá-lo a Paris. Era um gentleman, um senhor de fato, chapéu e maneiras irrepreensíveis, que aguentou estoicamente as minhas perguntas tontas durante meia hora. Eu tinha 28 anos, já gostava muito dos seus discos – de todos, da guitarra solitária de Songs of Love and Hate até aos sintetizadores pirosos e aos coros femininos dos anos 80 –, mas era ainda demasiado novo. Conta-se que quando ele tinha 32 anos e decidiu finalmente dedicar-se à música, andou a bater às portas em Nova Iorque, e perguntavam-lhe: “Aren’t you a little old for this game?”
A razão porque nos sentimos sempre demasiado novos ao lado de Leonard Cohen é porque ele pareceu sempre demasiado velho. Já esteve lá, já leu, já viu, já viveu, já bebeu, já fumou, já sofreu, já meditou – sempre vários anos à nossa frente. Mas não em distância. Em profundidade. “A thousand kisses deep”, para citar uma das suas canções. Cohen não vê mais longe, mas mais fundo. Não tem soluções, nem programas, nem conselhos para nos dar. Os seus discos não são manuais de auto-ajuda, que nos digam como devemos conduzir a nossa vida. Em “Going Home”, fala das aspirações de um certo “Leonard”, e diz: “He wants to write a love song/ An anthem of forgiving/ A manual for living with defeat.” Cohen não nos ensina o caminho – ele consola-nos o caminhar.
Não tenho dúvidas sobre o disco que levaria para uma ilha deserta: Leonard Cohen Live in London, O2 Arena, 17 de Julho de 2008. Nessa digressão estava feliz em palco como nunca antes, a comunhão com a banda era perfeita, e as canções as melhores. Mas não é só pelas canções. É também pelas maravilhosas conversas com a plateia. Na introdução de “Ain’t No Cure for Love”, ele explica que está velho, lista os antidepressivos que tomou ao longo da vida, afirma que estudou as filosofias e as religiões, e conclui: “but cheerfulness kept breaking through”. Se querem um final feliz para este texto, aqui o têm. Apesar da imperfeição, de todo o sofrimento e de todas as falhas, a alegria insiste em aparecer. “There ain’t no cure for love.” Não há maior mistério do que este. Até breve, Leonard.