O milagre que é ouvir de novo Shirley Collins

Parou por uma razão cruel: perdeu a voz. A história de Shirley Collins é de ascensão, queda e superação. Lodestar é o primeiro álbum da rainha da folk inglesa em 38 anos.

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Recuperada a voz e a confiança, de repente ela está em todo o lado: num disco, num livro, num documentário, nos palcos Eva Vermandel

Quando se despediu de David Tibet e pousou o telefone, Shirley Collins desfez-se em lágrimas. Ali estava, do outro lado da linha, um fã, um fã desmedido, a telefonar-lhe naquela sexta-feira de 1991, mais de uma década depois de Shirley ser forçada a desaparecer dos palcos e dos discos. O fundador dos Current 93 queria conhecer a voz pela qual se apaixonara, dizer-lhe que havia gente que não a esquecera. Tornaram-se amigos e Tibet iniciou uma missão de tentar levar Shirley Collins a cantar de novo. Mas a cantora folk parecia ter ficado para sempre lá atrás, irremediavelmente exilada e esquecida numa prateleira empoeirada da história da música popular do século XX.

“Pensei que nunca iria cantar de novo”, confessa ela, hoje com 81 anos, ao telefone a partir da sua casa de campo em Lewes, canto tranquilo de Sussex, no sul de Inglaterra. Em 1978, perdeu a capacidade de cantar, uma reacção ao choque de perder o marido, Ashley Hutchings, para outra mulher. Ser-lhe-ia diagnosticada disfonia com origem psicológica. Cruel destino para uma voz fundamental da música inglesa e uma figura cimeira da redescoberta da folk nas décadas de 60 e 70.

“Eu nem conseguia cantar para mim dentro de quatro paredes, não queria ouvir o som que estava a fazer. Às vezes nada acontecia, noutras a minha voz era muito áspera e falhava. Era tão humilhante ouvir-me a mim mesma, quanto mais outras pessoas ouvirem-me. Tinha de parar. Adorava tanto esta música inglesa que não podia permitir que saísse mal. Adorava as canções em demasia. E tinha duas crianças para educar. Tive que procurar outras formas de ganhar a vida”, reflecte.

Depois daquele histórico telefonema, o “muito paciente” David Tibet tentou recorrentemente convencê-la a cantar de novo. “Gravei versos para alguns dos álbuns dele. Ele estava sempre a dizer: ‘Podes cantar [num concerto]? Só uma canção!’. Ao longo de anos, fui dizendo não. Mas depois comecei a dizer: ‘Tudo bem, eu vou’. Porém, quando chegava ao dia não conseguia. Finalmente, ele perguntou-me: ‘Tenho este concerto em Londres, podes vir cantar uma canção?’. Respondi-lhe que sim. Desta vez consegui [risos] e cantei duas canções.”

Cantar “sem paixão”

Aquele regresso, em 2014, foi “bonito”. Foi mais do que isso: Shirley cantava, finalmente, pela primeira vez em mais de três décadas. O que se seguiu foi a ressurreição artística de um dos maiores tesouros da música britânica. Em 2017 deverá lançar a sua autobiografia. Um documentário sobre ela, ainda por estrear, The Ballad of Shirley Collins, levou-a a cantar duas canções. Tibet sugeriu que se fizesse um EP com elas, mas o filho de Collins, Bobby Marshall, agente musical, propôs à Domino um álbum.

“Eles deixaram-me gravar quando e onde quisesse. Não queria ir para estúdio porque sabia que qualquer confiança que tinha recuperado seria perdida se enfrentasse um engenheiro que dissesse: ‘Que raio é isto e que faz ela aqui?’. Por isso, decidimos gravar na minha casa, na minha pequena casa de campo”, conta. Em Cruel Lincoln, uma balada antiga e rara, ouve-se o som de pássaros a entrar pelas janelas. Lodestar – o primeiro álbum de Collins desde For as Many as Will, lançado há 38 anos – foi gravado por ela e um pequeno grupo de músicos em Lewes. É uma colecção de canções inglesas, americanas e cajun, com origens que vão do século XVI à década de 1950. A voz de Collins, incapaz dos agudos de outros tempos, surge rugosa, frágil, sábia. Demorou a aceitá-la como a sua nova voz. Um amigo fez-lhe ver que a música de que ela mais gostava estava em “gravações de campo de cantores tradicionais”, como as que fez quando, em 1959, partiu para os Estados Unidos como assistente e companheira de Alan Lomax. “Estas gravações de campo, que idade tinham estas pessoas quando as gravaste?”, perguntou-lhe o amigo. “Eu disse: ‘Bem, elas estavam nos setentas’. Ele respondeu-me: ‘Elas podiam cantar, tu podes cantar, és uma delas agora.”

Gravaram música de comunidades religiosas, em festas, em prisões e os blues do lendário Mississippi Fred McDowell. A estadia nos Estados Unidos com Lomax, nome incontornável das recolhas de música tradicional norte-americana, caribenha e europeia, aprofundou a paixão de Collins pelas cantigas que os povos cantam e passam de geração em geração.

Cruel Lincoln

“Acho que tudo começou durante a II Guerra Mundial. Eu e a minha irmã [Dolly Collins, com quem viria a cantar] éramos crianças pequenas. Houve raides aéreos na costa sul, onde vivíamos, e tínhamos que dormir num abrigo à noite. Os nossos avós cantavam para nós para que nos sentíssemos seguras. Cantavam canções antigas como estas. Associei sempre o sentimento de segurança com vozes mais velhas a cantar estas canções”, afirma.

Diz que teve “muita sorte” por vir da “classe certa”, a trabalhadora. Depois, nas recolhas em terras americanas, teve “a experiência de conhecer pessoas normais – se bem que, de certa forma, elas não são normais, são bem extraordinárias – e ouvi-las a cantar”. “Cantam para ti, não para cima de ti, como fazem os cantores pop”, defende.

Começou também ela a cantar da “única forma” que há para cantar estas canções: “quase sem paixão”, como se o cantor fosse um veículo de uma velha verdade, dispensando artifícios e rodriguinhos melódicos.

Canções sem medo

Ouvimo-la assim, austera, na estreia em disco, Sweet England (1959), tinha 23 anos, a voz ainda por crescer, e no álbum aventureiro Folk Roots, New Routes (1964), em que cruzou esta música com a guitarra multiforme de Davy Graham (cabiam lá jazz, blues e até música do Médio Oriente). Em Anthems in Eden, feito com a irmã e o Early Music Consort of London, foi mais longe, usando instrumentos de música antiga, algo raro em 1969.

Collins lembra-se de estar a fazer The Power of the True Love Knot (1968) e ouvir o produtor Joe Boyd dizer-lhe: “Shirley, põe drama nisso”. “Eu disse-lhe: ‘Tu queres que eu seja a Sandy Denny [vocalista dos Fairport Convention]’. Não podia mudar a forma como canto para lhe agradar. Ele agora ri-se disto. Eu não queria ser metade pop, metade folk.”

Atravessou as décadas de 60 e 70 assim, como voz pura da música tradicional em que muitos viram um caminho de libertação. Influenciou o folk-rock e participou nele (ouça-se o excelente No Roses, de 1971, gravado com a Albion Country Band), mas diz que nunca fez verdadeiramente parte do movimento – nunca tocou em drogas, não tinha interesse em fazer canções suas, só queria cantar velhas cantigas. “Tudo o que preciso dizer está lá, na tradição. [Essas canções] São belas, lidam com todos os assuntos que os seres humanos compreendem, não têm medo de nada.”

Está lá tudo: o amor, as guerras, o trabalho, a morte. Em Lodestar, Shirley Collins recupera Death and the Lady, que já tinha gravado com a irmã Dolly em Love, Death & the Lady (1970) – há agora uma guitarra slide a arrancar blues à terra, a dar o tom a uma conversa entre uma senhora e a morte. “As canções voltam. Apesar de serem velhas, continuam o seu percurso”, diz-nos.

O resto do alinhamento é inteiramente novo. “As canções escolheram-se a si mesmo. Estiveram na minha cabeça durante algum tempo e tornaram-se as canções que eu queria fazer desta vez”, afirma. Collins atira-se a uma canção cajun, Sur le Bord de l’Eau, gravada em 1927 por Blind Uncle Gaspard, misterioso guitarrista, parcialmente cego (“Apaixonei-me imediatamente no minuto em que a ouvi”, conta. “Tento manter vivo o espírito de Uncle Gaspard”). Pretty Polly, que se ouve em Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá, surge na versão que Collins gravou com Alan Lomax em 1959, no Arkansas – há um banjo e percussão escassa a acompanharem a voz da rainha. Awake, Awake, uma canção do século XVI escrita depois de um terramoto que danificou o topo da Catedral de São Paulo, em Londres, interpretado como um aviso divino, pede arrependimento e orações obedientes. “É um milagre que esta canção tenha sobrevivido.”

Pelo velho

Lodestar é um tratado discreto de folk, feito de voz, guitarras, sanfona, concertina, viola, fiddle, banjo, gaitas, órgãos e percussão. Estamos em 2016, sempre ligados à rede, mas podíamos estar na Cecil Sharp House, na década de 1950, sede da English Folk Dance and Song Society (EFDSS), onde a jovem Shirley Collins começou a vasculhar a história da folk. Sentia que aquela música podia desaparecer. O apagamento progressivo da canção tradicional começou “quando o fonógrafo começou a infiltrar-se”. Depois, veio “a rádio, depois a televisão, depois a música da grande indústria. Isso aconteceu aqui também”, diz Collins, que agora preside à EFDSS.

É esta paixão pela tradição que a levará a incluir dança Morris – tradição inglesa com semelhanças com os Pauliteiros de Miranda – nos seis espectáculos com que planeia apresentar o álbum. “Adoro dançarinos Morris. Acrescentam variedade à nossa vida. Na rádio está tudo cheio de música americana, de grande indústria, tudo soa igual onde quer que vás. Todas estas tradições são muito valiosas. Queremos ouvir a mesma música pop em todo o lado? Isso parece-me um mundo muito triste. Quero variedade, quero reflexos verdadeiros dos velhos países em que tu vives e em que eu vivo.”

Quase uma hora depois de conversar com Shirley Collins custa a crer que esteve afastada durante tantos anos, tamanha é a sua energia. Mas lembramo-nos do que disse no início da entrevista: “Adorava tanto esta música inglesa que não podia permitir que saísse mal.”

Recuperada a voz e a confiança, de repente, ela parece estar em todo o lado: num disco, em breve num livro, num documentário, nos palcos. Ela ri-se. “É de certa forma inacreditável, faz-me rir. Levou tanto tempo a voltar a fazer o que sempre gostei mais de fazer. É uma grande oportunidade”, reconhece. “Gostava de ter 40 anos outra vez, deixava de ter 80 [risos]. Não há nada que possa fazer acerca disso, só tenho que usar as minhas ideias o melhor que possa.”

“Adoro tanto a música que foi horrível não cantar durante tantos anos. Não me sentia eu, não me sentia a Shirley Collins. E agora aqui estou de novo. E sabe bem”, declara. E ri-se.

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