Avi Mograbi filma a ironia contra o cinismo (e contra os pais)
Ironia fina, humor negro, activismo político – é este o cocktail proposto pelo israelita Avi Mograbi, um dos mais fascinantes cineastas do documentário moderno. Esteve no Doclisboa e explicou que lá por ter estudado filosofia não é um grande pensador.
“Não gosto de ir a festivais se não tiver um filme para mostrar. Mas se o filme viaja sem mim, isso quer dizer que viaja mais do que eu, e até prefiro isso porque nem sempre tenho tempo para acompanhar os filmes.” Em 2016, é a quarta vez que um filme de Avi Mograbi (n. 1956) está no Doclisboa, e o cineasta, activista e professor israelita teve tempo para vir acompanhar a sua sétima longa-metragem, Between Fences, e dar de caminho uma master-class sobre “cinema e activismo político”.
Quem tem acompanhado a obra do israelita, revelada em Portugal pelo Doc, sabe no entanto que o activismo político de Mograbi é bastante... peculiar. Repleto de uma ironia fina e lúcida que parece fazer vir ao de cima todas as contradições e paradoxos da sociedade israelita, colocando o próprio cineasta no centro da obra (como guia, coro grego e equivalente do espectador), é um cinema que se ergue contra o desespero, contra o cinismo e contra a inércia. E, já agora, contra os seus pais ambos já falecidos, como o próprio admite entre risos: “É muito estranho. A minha mãe morreu há cinco meses, e é a primeira vez que não tenho ninguém para contrariar na minha vida. Mesmo quando tenho de tomar decisões pouco importantes, pergunto-me «a quem me estou a opor hoje?» A minha mãe era a resposta evidente, mas agora já não a posso usar.”
Humor negro? Talvez, mas Mograbi é a primeira pessoa a dizer que “recorro ao humor nos meus filmes porque não sou capaz de não recorrer ao humor”. Humor judeu, perguntamos, pegando na “ideia feita” do humor judeu como reflexo do absurdo do quotidiano? “Costuma dizer-se isso,” ri, “mas eu não o diria. Percebo que se diga. Talvez seja de facto um traço israelita ou judeu, mas é-me difícil avaliá-lo a partir de dentro. Mas é verdade que vejo humor em coisas que são tristes. E isso não as torna menos tristes.”
Um exemplo de ironia a propósito de Between Fences, que regista os momentos em que Mograbi e o encenador Chen Alon organizaram um workshop de teatro no centro de detenção de Holot, com refugiados africanos, da Eritreia, que estão presos no limbo burocrático de um país que não reconhece o estatuto de refugiados e que, por isso, não têm autorização para estar em território israelita fora de uma zona específica. “Os meus amigos eritreus perguntavam-me, 'já foste à Eritreia?' 'Não, mas o meu pai esteve lá quase um ano, preso! Preso na Eritreia, só que numa prisão inglesa!'.” Ri-se. “Não vou à procura destas ironias. Elas existem, fazem parte da realidade.”
Aliás, Mograbi diz nunca sair de casa para “ir à procura de temas para um filme.” “Os meus filmes começam sempre porque há qualquer coisa que me incomoda, que não me larga.” Um exemplo: How I Learned to Overcome My Fear and Love Arik Sharon (1997), onde decide fazer um documentário sobre o político Ariel Sharon e nesse processo descobre uma figura completamente diferente da imagem que dele tinha. Outro: Once I Entered a Garden (2012), que foi Prémio Especial do Júri no Doclisboa em 2013, e que nasceu de um sonho onde Mograbi encontrava o seu avô, um muçulmano sírio, numa Damasco pré-mundo moderno.
O cinema do israelita coloca-se, sempre, no centro das questões identitárias de um Médio Oriente polarizado pela questão israelo-palestiniana, e encena-as de maneiras simultaneamente profundas e muito simples, engenhosas e evidentes. Em Z32 (2008), Mograbi filma a confissão de um antigo militar das forças especiais, cujo rosto é uma máscara digital que vai sendo alterada ao longo do filme – uma solução nascida da vontade do homem manter o seu anonimato, mas que transforma o filme também num ensaio sobre a identidade. Once I Entered a Garden fala do mal-estar entre judeus e árabes através da amizade e das raízes comuns entre Mograbi e o seu professor de árabe, e das viagens que fazem juntos e que revelam as fronteiras aparentemente arbitrárias impostas pelo estado.
O estado israelita, e o seu estatuto singular na história do século XX, é o núcleo que todo o seu cinema orbita, que Mograbi considera tê-lo definido como activista político: “Foi por volta dos meus 20 anos que compreendi que tinha de tomar uma decisão muito séria, de saber quem era e o que queria ser. O momento fulcral teve lugar em 1982, durante a primeira guerra do Líbano, quando fui um dos fundadores do Yesh Gvul” – o primeiro movimento “refusenik” israelita de “desobediência civil”, formado por militares que se recusavam a ser destacados para o combate. “Precisávamos de dizer não ao estado, e isso foi para mim também uma odisseia verdadeiramente pessoal. Fomos educados com a conviçcão de que o estado era a coisa mais importante da nossa vida, mas era preciso compreendermos que a moralidade estava acima dos nossos deveres para com a comunidade, que podemos fazer parte do estado sem por isso concordarmos com todas as suas decisões. Precisei de tempo para assumir a responsabilidade que isso implicava.”
Mas apesar de se ter formado em filosofia, e de continuar activo em movimentos pacifistas, Mograbi defende não ser “grande pensador”. “Ouça, não vou estar aqui a sabotar a minha inteligência ou o meu raciocínio,” sorri, “mas a verdade é que os meus filmes não correspondem a grandes abstracções. Sei que não posso fazer nada quanto à situação de que falo, mas pelo menos posso tentar trazê-la ao de cima, ou abordá-la de um ponto de vista diferente do que é habitual. Como por exemplo em Between Fences: perguntei-me como é que poderia falar sobre os refugiados africanos que pedem asilo de modo a interessar os israelitas que não querem saber. E afinal muitos de nós somos refugiados – como a minha mãe, que era alemã, e os meus avós maternos que eram polacos, e que fugiram da Europa em 1932 e só podiam ir para a Palestina, porque a minha tia-avó já lá morava e conseguiu arranjar documentos. Pensei por isso em pegar nessa história que é essencialmente israelita e falar dela através dos africanos, permitindo ver-nos reflectidos neles.”
Between Fences acabaria por se desviar dessa ideia original, na sequência do convite a Chen Alon, ex-militar e encenador teatral na linha do “Teatro do Oprimido” criado pelo brasileiro Augusto Boal, para organizar os workshops. “Não sei trabalhar com actores, e ainda menos com não-profissionais,” explica Mograbi, e nesse processo percebeu que não podia impor uma narrativa, que ela tinha de surgir dos próprios refugiados. Mas a ideia continua lá, subterrânea. “Tem a ver com a necessidade de falar a sério, não sobre o que correu mal, mas a responsabilidade de corrigir os erros a partir daqui”, continua. “Não podemos corrigir o passado nem desfazê-lo, mas precisamos de olhar para ele e de procurar uma reconciliação com o passado. E Israel não é o único lugar onde o passado continua presente. Quando comecei a trabalhar em Between Fences, em 2012, não pensei estar a fazer um filme sobre uma questão global, mas sim sobre uma questão especificamente israelita. De repente, em 2014 e 2015, quando já estávamos a rodar em Holot, tornou-se numa crise global...”
No fundo, as questões de identidade de que o seu cinema sempre fez prova desde o início – “e que nunca foram exclusivas de Israel” – estão agora a erguer-se mais visivelmente no resto do mundo. “Tenho certeza que muitas destas questões se vão agora levantar na Europa, e talvez seja a primeira vez em que a Europa vai ter de enfrentar, se estiver disposta a isso, o que deixou para trás quando abandonou a África, ou a Ásia, ou o Médio Oriente. E espero que as pessoas recordem as lições da Segunda Guerra Mundial. Mas trata-se de um processo histórico enorme, e não tenho a certeza que as pessoas estejam em condições de enfrentar.” Os seus filmes podem ser um pequeno contributo para essa compreensão? “No outro dia, a apresentar Between Fences num cinema em França, estávamos a falar do 'Teatro do Oprimido' pretender activar o público, inspirá-lo a encontrar soluções para uma situação. Sugeri o 'Cinema do Oprimido', activar o público e inspirá-lo a pegar fogo ao cinema...” Isso é muito Tarantino, dizemos a pensar no final de Sacanas sem Lei. Avi Mograbi solta uma gargalhada. “Não gosto nada desse filme!”