Encontrar casa é um achado

Nas zonas mais centrais de Lisboa e Porto há muitas obras em curso, mas poucas entram no mercado de arrendamento permanente. Fala-se em “achado” quando aparece uma casa a um preço razoável.

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Durante mais de quatro meses, Tatiana Moutinho procurou casa na Baixa do Porto. Desceu e subiu ruas atenta à possibilidade de existir um ou outro anúncio à janela. Folheou jornais. Dissecou plataformas online. “Ou é para turistas ou está a cair”, suspira a cientista. “Tudo o que vi com condições era... era para arrendar uma semana ou 15 dias ou um mês.”

Quando a investigadora em Biologia Celular e Molecular se mudou para a Baixa do Porto, em 2009, tantos amigos abriram a boca de espanto. Alguns até lhe disseram que “estava louca”. “Ninguém queria morar na Baixa. Não era atractivo.” O  centro histórico degradara-se e esvaziara, muito por falta de política concertada de reabilitação, especulação imobiliária, incúria de proprietários, rendas excessivamente baixas. E o resto da Baixa não era muito diferente. “Quase ninguém vivia aqui. Quase só havia pessoas velhinhas em casas tão velhinhas como elas.”

Instalou-se num apartamento remodelado, de 120 metros quadrados, num prédio de dois andares, junto ao Instituto de Registos e Notariado, a uns metros da Estação da Trindade. Despontava ainda a vida nocturna. De repente, com o advento das companhias áreas de baixo custo, a instabilidade do Norte de África, o crescente interesse da imprensa internacional, explodiu o turismo.

No final do ano passado, o senhorio, o amigo que lhe arrendara o apartamento por 600 euros quando se mudara para Lisboa, pediu a Tatiana que procurasse outra morada. Ele fora trabalhar para o Dubai e separara-se da mulher. Precisava de um sítio para ficar com a filha sempre que viesse a Portugal. Quando não estivesse, arrendá-lo-ia a turistas. Tatiana viu-se aflita. Não era só a escassez da oferta. “O preço de um apartamento de cem metros quadrados tinha subido para 900 euros!”

Os relatos sobre dificuldades em encontrar habitação permanente para arrendar proliferaram. Uma nova palavra entrou no uso corrente: gentrificação, derivado do inglês gentrification, que decorre do francês genterise, que significa “de origem gentil, nobre”, e remete para um processo de reestruturação urbana com troca de populações com baixos rendimentos por populações com rendimentos mais elevados, o que, pelo menos em Lisboa e no Porto, está muito associado à explosão do turismo.

Nas zonas mais centrais de Lisboa e Porto, tantas obras em curso. Ainda em Setembro, o presidente da Porto Vivo — Sociedade de Reabilitação Urbana, Álvaro Santos, disse que “estão a decorrer, em simultâneo, cerca de 200 obras de reabilitação”, grande parte feitas por privados. As obras, no centro da cidade, duplicaram de 2013 para 2014 e tornaram a duplicar de 2014 para 2015. Este ano, os números são “semelhantes a 2015”. “Temos um peso do turismo muito grande”, reconheceu.

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Turismo num dos bairros históricos de Lisboa, Sé rui gaudêncio

Poucos edifícios requalificados são direccionados para habitação permanente. Multiplicaram-se hostels, comércio fast food ou franchising e comércio com apelo “gourmet” ou “artesanal”. No site do Registo Nacional de Alojamento Local, existem 34.038 imóveis destinados a esse fim — 6233 no concelho de Lisboa e 2224 no concelho do Porto. Os números aumentam várias centenas de mês para mês. Muitos estão disponíveis para arrendamento de curta duração através de plataformas internacionais de reserva como o Airbnb, o Wimdu ou o 9Flats.

“Os turistas são bem-vindos, mas os residentes permanentes são a estrutura de uma cidade”, enfatiza o arquitecto João Rapagão, que dá aulas na Universidade Lusíada do Porto. “Turistas em excesso são como eucaliptos. Crescem e reflorestam depressa, mas secam tudo à volta. Um Porto oco!”

Exemplar daquilo que Rapagão considera um “delírio” é a Casa Oriental, junto à Torre dos Clérigos. Outrora uma mercearia, transformou-se numa loja “very typical” e até trocou o bacalhau seco que costumava ter pendurado na fachada por bacalhau sintético.

O geógrafo Álvaro Domingues vê “alguma paixão e algum exagero” no discurso público. “Quando dizemos Porto ou Lisboa, não nos estamos a referir ao respectivo município, mas a áreas específicas, aos centros mais antigos. E os centros antigos não são habitualmente espaços de residência.”

No entender deste professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, devia haver “uma espécie de fórum permanente” em cada cidade. Os cidadãos juntavam-se de 15 em 15 dias num café ou num teatro para discutir a partir do concreto. “Fala-se  muito de fundos de pensões internacionais, de grandes especuladores nacionais. No outro extremo estão milhares de particulares”, indica. “Há muitas ideias e muito contraditórias sobre o que se está a passar. E o que se está a passar vem de um tempo muito próximo em que, por exemplo, o Porto antigo tinha batido no fundo e só se falava em ruína e abandono. De repente, não podemos cair no inverso, adoptar um discurso quase xenófobo sobre o turismo, pensando que isto vai ficar um parque temático.”

O turismo está, como diz o ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, a ter “um crescimento asiático”. É o sector que agita a economia em tempo de estagnação, mas também tem “efeitos nefastos invisíveis”, resume Daniela Alves Ribeiro, do Habita — Colectivo pelo Direito à Habitação e à Cidade. Correm histórias de idosos pressionados a sair — e nem todas trágicas (alguns aceitam indemnizações que lhes permitem trocar um apartamento num prédio degradado, sem elevador, por um apartamento confortável). E histórias de jovens que, de repente, ficam sem lugar.

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Turismo no Porto: "Não podemos cair no inverso, adoptar um discurso quase xenófobo sobre o turismo", resume o geógrafo Álvaro Domingues diogo baptista

Ofertas que desaparecem num ápice

Diana Leão Costa partilhava um apartamento com duas amigas na Rua de São Bento da Vitória, bem no centro do Porto. De súbito, uma das raparigas saiu e a senhoria colocou o quarto no Airbnb. Perderam privacidade. “O meu espaço deixou de ser o apartamento e passou a ser o quarto. Não ia fazer uma festa ou dar um jantar com amigos”, exemplifica. “A comida que tinha no frigorífico e nos armários era mexida, desaparecia.”

A arquitecta, de 34 anos, esforçou-se para sair o mais depressa possível dali. “É interessante para quem tem um apartamento alugá-lo a turistas, mas quem quer morar na Baixa deixa de ter opção. Já era difícil arranjar casas para arrendar em condições. Agora, é cada vez mais raro encontrá-las e quando se encontra têm um preço absurdo. Há pessoas idosas que já não conhecem ninguém no prédio.”

Diana saiu pelo próprio pé, mas outros, como Mariana Reis, sentem-se expulsos. “Não tinha contrato. Estava num apartamento subalugado por uma pessoa da minha idade”, recorda aquela designer, de 25 anos. “Morávamos num T4 e ele, de um dia para outro, mandou uma mensagem à minha colega a dizer que estava mal de dinheiro e a perguntar quando podíamos sair, que ia pôr o apartamento no regime de Airbnb”, conta. “Era um domingo e ele perguntou: achas que podem sair na próxima terça-feira? Ridículo!”

Aquilo aconteceu-lhe no início ou a meio de Junho. No final do mês, Mariana não tinha encontrado alternativa. Instalou-se em casa do namorado, que partilha um apartamento com um amigo, na Baixa do Porto. Ainda lá está. Procurou Julho, Agosto, Setembro. Deixou de procurar. “Íamos procurar uma coisa só para nós mas desistimos.”

Qualquer oferta desaparece num ápice. A Tatiana Moutinho e à filha valeu o “boca a boca”. Falaram-lhe numa mulher que comprara um apartamento, pensando que o filho iria estudar no Porto, mas o rapaz, afinal, entrara numa universidade em Lisboa. “Um achado! Um T3 com garagem, na Rua da Boavista, por 650 euros!”

Se cheira a mofo, não é saudável

Em Lisboa, os preços são ainda mais altos e a zona crítica bem maior. João, o marido de Filipa Gouveia, viu o anúncio no portal OLX 17 minutos depois de ter sido publicado. “A senhora pôs o anúncio sem fotografias, recebeu logo 15 contactos e apagou-o”, diz a cozinheira, de 33 anos. 

Viviam com os pais de João, na freguesia da Ajuda, em Lisboa. Desde que tiveram uma filha, no ano passado, isso tornou-se mais difícil. “A minha filha precisa de espaço para andar. Quero que se sinta livre para abrir portas, fechar portas, ir do quarto para a cozinha, tirar as panelas dos armários. E quero sentir-me livre para ralhar com ela e para deixá-la chorar”, diz ela.

Procuravam casa desde Fevereiro. Tinham de ficar perto dos pais de João, para lhes prestar assistência. E a curta distância da creche, em Linda-a-Velha. Filipa leva a filha, de carro, antes de ir para o trabalho, em Cascais. E João ia buscá-la no carro dos pais, regressado do trabalho, no centro de Lisboa. Saindo de casa dos pais, só teria a moto. Iria buscar a filha a pé ou de autocarro. Procuraram na freguesia de Algés, Linda-a-Velha e Cruz-Quebrada/Dafundo, em Oeiras. E na freguesia de Carnaxide e Queijas, também em Oeiras. “Vimos para aí dez casas. Não há oferta. E as casas que vimos antes desta não serviam”, conta Filipa. Não é só os preços. “É estar a subir as escadas para o apartamento e ver janelas partidas no prédio. É cheirar a mofo. Se cheira a mofo, não é saudável.”

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Paula Marques, vereadora da Habitação e do Desenvolvimento Local na CML: Não é "aceitável” que um proprietário pague mais impostos por fazer arrendamento de longa duração do que alojamento local bruno lisita

Encontraram um T2, num prédio pequeno, sem elevador, por 600 euros, a 850 metros da creche, a poucos minutos de carro dos pais de João. A zona é bem servida de transportes públicos. Nas imediações, centro de saúde, escola, parque infantil. “Tem o que é preciso para uma família.” Mudaram-se a meio de Outubro. “Termos o nosso espaço, finalmente”, suspira Filipa. Já tinha “vergonha” de dizer que morava em casa dos sogros. “Estava tão cansada de pequenas coisas!” E quer sentir-se livre para receber amigos e familiares para jantar ou para passar uns dias.

Lisboa perdia, com aquela mudança, mais um jovem casal com uma criança. Paula Marques, vereadora da Habitação na Câmara de Lisboa, acha que “diabolizar o turismo não é a via”. “Havendo um desequilíbrio, acho que a política pública se deve desenvolver no sentido de trazer o equilíbrio”, declarou ainda há dias ao PÚBLICO. Não lhe parece “aceitável” que um proprietário pague mais impostos por fazer arrendamento de longa duração do que turístico. E considera que é preciso usar o património municipal como “instrumento”.

Para já, o Programa Renda Convencionada, que disponibiliza fogos municipais para arrendar abaixo do preço do mercado, é uma gota no oceano. Na última edição houve 844 candidatos para dez habitações. A Câmara de Lisboa quer disponibilizar cinco mil a sete mil fogos. Para isso, avançará com prédios e terrenos. Caberá a privados reabilitar ou construir e cobrar rendas fixadas pela autarquia.

O chão a tremer

O Porto também ensaia a sua tentativa de reequilibrar o mercado de arrendamento. A Sociedade de Reabilitação Urbana está a procurar atrair residentes para a zona do Morro da Sé. E, nos próximos dois anos, a Câmara do Porto quer instalar 130 famílias em 57 casas e 17 prédios municipais com rendas sociais.

Quem dera a Maria Gil morar numa dessas casas de renda social. Está com os quatro filhos numa sobreloja. Mesmo por baixo, há um bar. Para um lado e para outro, outros bares. Acontece sentirem o chão tremer. “Há dias em que para entrar é preciso contornar as pessoas”, conta Vicente, um dos gémeos de 15 anos. 

Há três anos que Maria procura casa. Admite que ser cigana pode ter influência, mas julga que o preconceito, que pode levar senhorios a torcer o nariz, pesa menos do que as limitações orçamentais. Não pode pagar mais de 350 euros de renda por mês. “Os preços têm crescido muito”, lastima. “Casas que estavam a 400 euros, sem obras, estão agora a 600. Estou a falar de Cedofeita. Estão a recuperar casas que serviam para famílias e a transformá-las em T0 ou T1 kitchenette.”

Quem a vê, sempre sorridente, nem imagina, mas sofre de fibromialgia, uma doença crónica capaz de provocar dor intensa, e está desempregada há muito. Saiu demasiado cedo da escola. Já desempenhou muitas tarefas, já vestiu muitas peles, sobretudo a de vendedora. Agora, quer fazer revalidação de competências.

Aos 44 anos, com três filhos ainda menores, candidatou-se a habitação social. “Enviaram-me uma carta a dizer que neste momento não é possível responder ao meu pedido, só se a minha situação se agravar. Agravar como?! Só se cortar as pernas! Recorri ao provedor.”

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Maria Gil com três filhos menores procura casa há três anos fernando veludo/nfactos

Não gostaria de sair do centro. Foi ali que os filhos dela cresceram. Foi ali que criaram laços de amizade e vizinhança. Estão habituados a ir a pé para todo o lado. Participam na vida cultural da cidade. Misturam-se com pessoas de estratos diversos.

“Gosto muito de viver na Baixa”, diz Salvador, de 15 anos. “Faz parte de mim. Temos transportes, lojas, centro de saúde, hospitais, polícia”, enuncia. “Temos tudo”, resume Vicente. “Aceito uma mudança de casa, não de sítio”, torna Salvador. “Claro que temos de aceitar, se tiver de ser, mas gostávamos de continuar aqui”, esclarece Vicente. “Basicamente, por causa dos turistas, estão a tirar-nos o que é nosso”, remata Mariana, de dez anos. Muito ouve ela falar em gentrificação. Há pouco, anunciou à mãe que estava “uma chuva gourmet”. Uma chuva gourmet? “Sim, uma chuva fina.”