A batalha de Mossul, por Bernard-Henri Lévy
O documentário de Bernard-Henri Lévy Peshmerga figura na Selecção Oficial do Festival de Cannes 2016. O realizador e a sua equipa regressaram agora ao Norte iraquiano, estando ao lado de combatentes curdos na grande ofensiva de Mossul, para filmar a continuação. Este é o seu relato.
De volta ao Curdistão. O meu primeiro impulso é dirigir-me às colinas que rodeiam o monte Zarak para me recolher. Foi o local onde Maghdid Harki, o jovem general de cabelos brancos, herói do documentário Pershmerga, passou os seus últimos momentos. Nada mudou. Não mudaram os sacos de areia, demasiado frágeis para o proteger. Não mudou o bunker que, como ele gostava de dizer, não era mais fortificado do que o dos seus homens. Os mesmos homens que guardaram a sua garrafa de água, pendurada numa parede junto à porta, contendo ainda um resto de água que ele estaria prestes a beber. A única diferença é que hoje são as forças especiais norte-americanas que ocupam o bunker. Um soldado norte-americano, com binóculos, vigia o vale. As bombas humanas do Daesh [acrónimo árabe para Estado Islâmico] podem surgir a qualquer momento. Outro soldado encontra-se atrás de um telescópio apontado para os arredores de Mossul, 20 quilómetros mais abaixo. Um terceiro, de cabelo longo e encaracolado e um bigode à Errol Flynn, resgata um drone que acabara de aterrar aos nossos pés, numa nuvem de pó. Um quarto soldado de aspecto intelectual (lembra-me o cartógrafo de Norman Mailer, do Regimento de Cavalaria n.º 112 de San Antonio) encontra-se sentado sob um toldo, a decifrar no computador os dados recebidos. Por fim, um quinto, originário do Tennessee e o mais graduado, transmite informações. Quem são estes jovens norte-americanos, esmagados pelo calor e a piscar os olhos à luz, quais cegos que pestanejam na noite? Que fazem? Com Mossul a seus pés, eles são a linha avançada da coligação que decidiu, por fim, apoiar os peshmerga curdos [a palavra significa "aqueles que enfrentam a morte"] e o exército iraquiano, na tomada da capital do Estado Islâmico [no Iraque].
Estou em Sheikh Amir, na zona de Al-Khazir. Sheikh Amir é a última aldeia a ser libertada antes da cidade cristã mártir de Qaraqosh. Três Toyota novinhos em folha estacam com aparato, regurgitando um pelotão de homens em diferentes uniformes pretos — definitivamente não são peshmerga.
— O que estão aqui a fazer? — exige saber o General Hajar, com quem viajei desde Irbil — Não deviam estar aqui!
— Esta é a nossa casa! — responde, com olhar ameaçador, um homem com a barba por fazer que parece ser o líder do grupo.
— Não — responde Hajar, apontando ao longe para um dos abrigos pré-fabricados que, da estrada, confundimos com um campo de refugiados. — A vossa casa é ali em baixo. Os pactos são claros: não devem sair do vosso acampamento excepto se estiverem a tomar a ofensiva.
— Vai-te lixar! — acrescenta outro homem de preto. — A nossa casa é onde estivermos.
Como a voz de Hajar sobe de tom e o confronto ameaça ficar feio, o líder balbucia uma justificação vaga e, ordenando ao seu bando que regresse às carrinhas, põe-se a caminho do acampamento, onde vislumbramos três helicópteros a aterrarem. Tudo se passa muito depressa. Mas naquele momento descobrimos que os homens de preto fazem parte dos milhares de milícias xiitas que Bagdad integrou, de forma apressada, no exército iraquiano. E o incidente, ainda que menor, diz muito sobre as tensões entre os diferentes participantes (os peshmerga, de um lado, e o exército de Bagdad, de maioria xiita, do outro) chamados para libertar a Berlim do Estado Islâmico.
Outro sinal. Alguns quilómetros adiante chegamos à aldeia cristã de Mangouba. Aqui, o Daesh pouco resistiu. Mas deixou, quando bateu em retirada, explosivos escondidos em garrafas de refrigerante, latas de combustível e até dentro de exemplares do Corão. Anwar, comandante peshmerga cristão, é um dos poucos que arriscam ver o que resta da sua casa. Marcou-nos encontro num campo próximo, o mais elevado da aldeia, e que, a julgar pela bola de futebol furada e pelos berlindes misturados com cartuchos vazios, deve ter servido de campo de jogos às crianças antes de se tornar em ponto de vigia da unidade.
— É terrível — conta-nos após regressar. — Nada resta da minha casa e incendiaram a igreja. — E a reprimir as lágrimas: — Mas, sr. Bernard, há outro problema. Estes bandidos foram-se embora e, se Deus quiser, não voltarão, mas e depois? Quem, depois deles, será responsável por proteger a nossa comunidade? Temos uma brigada cristã em formação com os peshmerga, mas o que vai ser dela após a vitória? Quem a comandará?”
Anwar, pressionado pelas perguntas do meu amigo Gilles Hertzog [escritor], acabará por falar sem rodeios. Nem ele nem nenhum cristão na região de Qaraqosh têm confiança no Iraque. Não vai trazer a sua mulher e filhos, diz ele, a não ser que os curdos, e apenas os curdos, assegurem a protecção da planície de Nínive. Mas de que modo? Enquanto província? Uma zona autónoma sob mandato curdo? E pensará ele que os iraquianos ou os norte-americanos no monte Zartak concordarão com a ideia? Encolhe os ombros. Para os soldados de Deus, a vida e a salvação não são negociáveis.
Hassan al-Sham. Norte da cidade cristã de Bartallah. De novo o mesmo espectáculo de terra queimada, destroços de camiões-bomba e fogos persistentes que tiveram o seu rastilho em depósitos de combustível incendiado. Subitamente, mesmo à minha frente, um grande buraco. Um poço, é o meu primeiro pensamento. Mas não. Há uma escada, pela qual eu e o meu operador de câmara descemos, atrás de um caça-minas. Três metros mais abaixo, deparo-me com um túnel, de um metro de largura, tecto arqueado e paredes de cimento intercaladas com paredes empedradas toscas, onde um homem da minha altura consegue andar de pé. Ao fim de uma centena de metros de marcha prudente, apenas com a luz da lanterna do engenheiro de bombas, chegamos a uma passagem perpendicular, com paredes semelhantes, mas na qual não nos aventuramos porque ainda vislumbramos pacotes de explosivos (plásticos) e fios de contacto. Em cada lado do túnel, há uma dezena de colchões imundos espalhados. E, mais uma vez em disposição simétrica, um centro de comandos duplo onde alguém deixou para trás uma pilha de jornais em árabe. É uma publicação de oito páginas a preto e branco, uma espécie de comunicado para combatentes do Daesh, intitulado As Notícias. Na primeira página, por baixo de uma fotografia de um homem a ser decapitado, a manchete: “Como identificamos traidores.” No interior, um artigo sobre uma operação terrorista no Sinai; uma “análise” sobre os “direitos ilimitados” de um shahid (mártir) que livrou o mundo de um kafir (descrente) e um relatório sobre a presença de “células adormecidas” em Kirkuk. Na página dois, um resumo impressionante do ano que passou: “1031 notícias, 110 infografias, 50 mapas e 112 execuções de traidores.” Se o inimigo se deu ao trabalho de escavar este túnel numa aldeia abandonada, o que poderemos encontrar em Mossul? Que emaranhado de armadilhas e emboscadas nos espera? Que cidade secreta e subterrânea, que guerra suja nos espera?
Voltamos à estrada, em direcção ao norte, até aos arredores de Dohuk, a 13 quilómetros da barragem de Mossul. O homem com quem vamos encontrar-nos é Rawan Barzani, irmão mais novo do primeiro-ministro do Curdistão iraquiano e comandante do primeiro batalhão das forças especiais curdas. A base onde nos recebe está a não mais de 300 metros da frente de combate. No seu bunker, mobilado com uma mesa simples e uma cama espartana, observo este oficial de rosto jovial da idade dos generais de Napoleão. Ouço-o a explicar, num inglês perfeito, entre a trovoada da chegada e partida de morteiros, a sua teoria sobre um inimigo composto por (1) “doidos” (os condutores dos camiões-bomba); (2) “ratos” (os animais dos túneis); e (3) “cães de ataque” (os quais, acredita, se oporão de forma aguerrida). Como é possível que um oficial desta patente, estando tão exposto e tão próximo da zona de combate, me possa dispensar alguns segundos para tirar uma foto a céu aberto? É a bravura lendária dos comandantes curdos que se colocam à frente dos seus soldados e não atrás... O seu nome poderia expô-lo a suspeitas de nepotismo, não fosse ele forçar-se a ser tão corajoso. Mas acima de tudo isto: aqui, o Daesh tem, a poucos quilómetros de uma barragem gigante cuja sabotagem inundaria toda a região até Mossul e Bagdad, uma das suas posições mais estratégicas – e a coligação, portanto, não tem outra escolha. Não são necessários homens de preto nem milícias sunitas recrutadas à pressa para fazerem de figurantes: são necessários verdadeiros soldados, comandos aguerridos que rompam as linhas inimigas e levem a cabo os ataques mais audaciosos, e, a liderá-los, o neto do fundador da nação curda, o pai de todos os peshmerga, Mustafa Barzani.
Um enviado do general vem à nossa procura durante a noite. Devemos dirigir-nos para leste, em direcção a Nawaran, onde se prepara em segredo a tomada de Bashiqa, a última barreira a proteger Mossul. O habitual congestionamento de tanques, veículos blindados e Toyotas. Ao primeiro raio da alvorada, aparece um drone, semelhante ao que largou uma bomba duas semanas antes no acampamento francês em Irbil. Mas desta vez os peshmerga, num fogo-de-artifício de kalashnikovs e metralhadoras de calibre 12,7 mm, destroem-no antes de atingir o seu objectivo. Entramos para o último dos cinco veículos de transporte blindados que se dirigem para a frente de combate e deixamos para trás morros de terra escavada, onde o resto das tropas aguarda ordens para avançar. Seguimos por uma paisagem de lugarejos, armazéns e casas abandonadas, das quais tememos ver sair um bombista suicida a qualquer momento. Um atirador! O nosso artilheiro neutraliza-o a partir da torre de tiro. E mais um, que dispara e atinge de raspão Camille Lotteaux, o nosso operador de câmara principal que está a filmar ao lado do artilheiro – o atirador acabará por fugir, desaparecendo na escuridão. Um momento de ansiedade responde ao som de algo que atinge a blindagem do nosso veículo. Mais um, quando percebemos, por conversas em walkie-talkie com os sapadores que estão mais à frente, que a estrada está minada e que teremos de seguir um novo percurso, pelo terreno deserto à nossa esquerda. Passamos uma hora a conduzir quase sem visibilidade, sem qualquer orientação a não ser a do aldeão que vai na escavadora da frente. Uma hora de abanões, desvios pelo pó, de quedas — tudo isto para percorrer o quilómetro que nos separa da orla da aldeia de Fazlya, que a coluna tem ordens para recuperar.
Tenho imagens gravadas, pelo nosso segundo operador de câmara, Ala Tayyeb, da sequência que se segue, após o quartel-general ter ordenado que o veículo onde me encontrava invertesse a marcha. Os veículos de transporte e tanques T55 cercam a aldeia. Os homens saem, a eles junta-se uma unidade de elite Zeravani e avançam a céu aberto. Subitamente, são disparados tiros vindos de casas e de um olival que parecem abandonados. O coronel responsável pede apoio aéreo através do seu walkie-talkie. A voz do outro lado da linha assegura, como lhe compete, que o apoio chegará dentro de minutos. Mas o tiroteio intensifica-se. Os jihadistas irrompem do olival e cercam os peshmerga por três lados. Sucumbem sete soldados curdos. Os seus camaradas, protegidos pelos veículos blindados, estão na mira dos atiradores. Dois agressores erguem entretanto uma bandeira branca e Ardalan Khasrawi, outra personagem entre os peshmerga, aproxima-se para aceitar a rendição, mas é outra armadilha. Os dois homens fazem-se explodir e ferem gravemente Khasrawi. Ordens e contra-ordens. Caos absoluto. Será que os veículos devem formar um círculo, ou, pelo contrário, dispersar? A verdade: durante a hora que durará a emboscada, 60 minutos intermináveis de inferno na Terra, em que o comandante curdo não pára de reclamar apoio aéreo e ouve sempre a mesma promessa de que está a chegar, nada chega. A unidade está entregue a si própria, abandonada pelos deuses, pelos homens e pelos seus aliados. É apenas à sua coragem que os curdos devem a vitória sobre os jihadistas e a libertação da aldeia — mas a que preço!
Duas horas mais tarde, encontramo-nos com o presidente [do Curdistão iraquiano] Massoud Barzani no seu acampamento, na base do monte Zartak, no extremo de uma estrada sinuosa protegida por forças especiais norte-americanas. Pedira-lhe para me receber. Cedo percebo que tem mensagens a transmitir. Sim, o seu exército está a actuar de modo exemplar nas aldeias árabes que estão a ser tomadas. Não, não há intenção de, pelo menos por enquanto, entrar na cidade de Mossul propriamente dita. Essa é uma tarefa que os acordos entre os aliados reservaram para o exército iraquiano. Sim, ele tem um plano para o “dia seguinte” e lamenta que os seus parceiros, apressados pelas eleições americanas, não o tenham ouvido com mais atenção. Vejo-lhe o rosto fechado. Os olhos pretos sem a malícia habitual. Os comandantes e chefes dos clãs sentados à volta da cabana que serve como quartel-general improvisado não se mostram mais satisfeitos do que ele. Profere poucas palavras quando lhe falo da coragem dos seus soldados. Pergunto-lhe se a possibilidade que o atormentava quando falámos pela última vez em Setembro, o fantasma de um corredor xiita entre Bagdad e a Síria e o Irão, passando por Mossul, já foi dissipada. Evita responder. E quando Gilles Hertzog lhe conta a história dos cristãos que confiam apenas no governo regional do Curdistão, é lacónico: “Cabe-lhes a eles e à comunidade internacional a decisão de assumirem as suas responsabilidades — ou não.” A verdade, que me será transmitida horas depois por um seu conselheiro, é que ele passou toda a batalha de Fazlya em contacto com o embaixador norte-americano no Iraque, exigindo apoio aéreo para os seus peshmerga. A razão para o seu mau humor, para não dizer raiva, é que se sente abandonado pelos seus aliados — não está longe de considerar ter cumprido a sua parte do pacto e, para ele, a guerra terminou.
Por que razão o apoio aéreo prometido não chegou a Fazlya? Porque é que, ao arrepio de todas as regras de envolvimento, nem um avião descolou das bases em Irbil e Qayyarah? Porque é que, quando um helicóptero Apache acabava, não longe dali, de socorrer um soldado americano gravemente ferido, não foi possível encontrar outro aparelho para dar uma forte ajuda aos peshmerga encurralados? Em Washington e em Paris alguns dirão que a falha trágica se deveu à cadeia de comando. Alguns apontarão o dedo à alteração de itinerário, quando a coluna militar se apercebeu de que a estrada estava minada e que tinham de encontrar outro caminho. Mas aqui, em Irbil, a explicação mais sustentada é menos clemente. Somos os melhores, dizem os curdos. Saltávamos de vitória em vitória, enquanto o exército iraquiano perdia, novamente, duas vilas conquistadas na véspera. Portanto, os nossos aliados ocidentais decidiram ouvir o que queriam. Eles queriam que todas as partes fossem bem sucedidas de igual modo: os curdos, o exército iraquiano de maioria xiita e as milícias sunitas criadas para tranquilizar os árabes de Mossul. E, neste sábio equilíbrio que negociaram com Bagdad e com os seus patrocinadores iranianos, no quadro do compromisso assumido pelos norte-americanos em não deixarem os peshmerga acelerar o passo para evitar que, no momento certo, estes ganhassem uma vantagem que teria um preço alto mais tarde — a independência do Curdistão e a alegada desestabilização do Iraque e de toda a região —, não seria necessariamente mau ver a nossa coluna ser travada em Fazlya.
A explicação é provavelmente demasiado simples. Mas lembro-me de um antecessor de Barack Obama ter enviado o malogrado Richard Holbrooke prevenir o Presidente Izetbegovic da Bósnia que deixaria de beneficiar de cobertura aérea norte-americana, se insistisse no seu objectivo deplorável de entrar em Banja Luka. E todos nos lembramos dos problemas que um certo general De Gaulle teve em obter, de outro Presidente norte-americano, permissão para que uma divisão francesa livre entrasse na Paris libertada. Talvez não seja absurdo imaginar capitais aliadas, fechadas nos seus velhos esquemas soberanistas e dispostas a tudo, ou quase tudo, para agradar a uma potência novamente reabilitada (Irão) ou para preservar uma pseudonação (Iraque), para não ficarem demasiado endividadas aos olhos de um povo que não hesitaria, na hora de ajustar contas, em reclamar a sua justa parte dos frutos da vitória (esse desgraçado povo curdo, que há mais de um século é o bode expiatório das nossas farsas).
Se for este o caso, se o grande jogo das chancelarias é este, se persistirmos em pedir aos peshmerga que abram as portas de Mossul mas não entrem, e se o regresso dos cristãos à planície de Nínive está dependente destes miseráveis acordos, então a batalha terá começado muito mal — e a derrota moral do Daesh será menos clara do que nos querem fazer crer.