E se a superpotência que garantiu a ordem internacional resolvesse deixar de o ser?

São as eleições mais pesadas de consequências desde a II Guerra. Podem acelerar o fim da ordem liberal que a América criou há 70 anos. Conseguem provocar calafrios nos aliados e pesadelos no establishment da política externa. Clinton leva para a Casa Branca, se lá chegar, uma pesada herança.

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1. Thomas Wright, investigador da Brookings, não tem dúvida em afirmar que as eleições presidenciais de 2016 “são as mais pesadas de consequências para a ordem internacional desde a II Guerra Mundial”. Robert Zoellick, que foi o representante americano para o Comércio na era Bush, reconhece que o próximo Presidente “iniciará o seu mandato no momento em que a ordem do pós-guerra, que os EUA se empenharam em estabelecer há 70 anos, está a fracturar-se”. A escolha não é, portanto, indiferente. Num texto publicado no Financial Times, Zoellick lembra que o sucessor de Obama vai ter de contar com uma opinião pública que se interroga cada vez mais sobre se os Estados Unidos devem continuar a servir de “polícias” do mundo. É, ainda assim, mais optimista quanto à disposição dos americanos. Cita um estudo da Pew Research de Abril passado, segundo o qual 57 por cento dos inquiridos acredita que os EUA “devem tratar dos seus próprios problemas” e “deixar os outros países tratar dos seus da melhor maneira que conseguirem”. Acrescenta, no entanto, que essa disposição sem sequer é original, emergindo periodicamente desde os anos 60. O que é mais importante é que uma maioria afecta aos dois partidos apoia o combate ao Estado Islâmico, cerca de 77 por cento consideram que a NATO é boa para a América e há ainda uma maioria mínima que apoia o comércio internacional. Ou seja, ainda há uma margem de manobra para Clinton, se for ela a eleita.

2. A maioria dos analistas americanos já deixou há muito de subestimar o “efeito Trump” nas relações internacionais. Pela primeira vez desde a II Guerra, há um candidato presidencial, que chegou a ter possibilidade de ganhar, que se situa fora do amplo consenso político sobre o lugar e o papel dos Estados Unidos no mundo e sobre as grandes orientações da sua política externa e de segurança. Trump não é apenas um isolacionista. Propõe um “regime de aluguer” segundo o qual os aliados teriam de pagar por inteiro a factura da sua segurança, que os EUA garantem. Do Japão à Europa (a NATO é “obsoleta” e “cara”), passando pela Coreia do Sul. Mais vale, defende o candidato republicano, que os amigos dos Estados Unidos se dotem da bomba nuclear, nomeadamente o Japão e a Coreia do Sul, em vez de contarem com a protecção americana. A sua “doutrina” internacional resume-se a uma nova forma de relacionamento com os “homens fortes” que governam os países pouco amigos da ordem liberal, assente numa sólida palmada nas costas. Putin é o seu preferido. Agradeceu-lhe a “invasão” dos mails de Clinton, desafiando-o a continuar. Acusa-a de querer um confronto com Putin na Síria, correndo o risco de provocar a III Guerra Mundial. E nem sequer esconde a sua cumplicidade com Moscovo. Quando John Kerry interrompeu as mais recentes negociações com a Rússia por causa de Alepo, o seu homólogo russo, Sergei Lavrov, classificou de muito grave a decisão americana e deixou cair a ameaça de um confronto “nuclear”. Poucos dias depois, Trump anunciava a III Guerra Mundial de Clinton contra a Rússia. Uma tal presença de uma potência exterior “não tem precedente” na história das eleições americanas, diz Tim Frye, da Universidade de Columbia, citado pela AFP. Quanto aos “homens fortes”, o candidato não é exigente. Vão do Presidente chinês (que acaba de ser consagrado oficialmente o novo “homem forte” da China, depois de Mao e de Deng), ao seu amigo Putin, recuando até Saddam Hussein. É esta perigosa excentricidade que alimenta os pesadelos do establishment da política externa americana e que causa calafrios aos aliados da América. Trump conseguiu deixar o Partido Republicano sem reacção. Rob Crilly escreve no Telegraph que a sua campanha “está cheia de cadáveres dos pesos pesados do Partido Republicano, que subestimaram aquilo que pensavam que era um mero reality show de uma estrela da televisão com um cabelo engraçado e rapidez nos insultos”. Acordaram tarde.

3. Hillary Clinton herdará esta nova e poderosa tendência populista e isolacionista da qual Trump foi o (péssimo) intérprete e terá de viver com ela. Também herda de Obama uma nova visão do mundo que não compartilha integralmente mas em relação à qual manterá, no essencial, a continuidade. “A sua visão da política externa coloca-a solidamente no centro do pensamento estratégico americano, incluindo o velho consenso sobre a aliança transatlântica”, escreve Jeremy Shapiro. O problema é que vai encontrar uma Europa dividida, que acaba de perder o Reino Unido, que se arrisca a perder a corrida por um lugar na primeira fila, reservado aos actores principais, pouco virada para ajudar os EUA na preservação de uma ordem internacional que garanta os princípios essenciais das democracias. E onde, é bom dizê-lo, também proliferam os amigos de Putin. Como todos os Presidentes antes dela, dirá aos europeus que têm de fazer mais pela sua segurança e pela segurança internacional. A Europa reagiu mal à decisão de Obama de virar a prioridade estratégica dos EUA do Atlântico para o Pacífico. Hillary apoiou esta mudança e foi ela, em grande medida, que a executou, mostrando a Pequim que os EUA não tencionam vir-se embora. Mas a China continua lá e Hillary terá de encontrar maneira de manter um equilíbrio muito difícil entre a cooperação e a contenção do seu poder crescente. Os conflitos latentes nos mares da China do Sul e de Leste, que Pequim reivindica aos países ribeirinhos e ao Japão, continuarão a ser um exercício de alta tensão.

4. A Síria é o pesadelo de Obama e, porventura, o seu maior fracasso em matéria de política externa, quando decidiu não envolver o exército americano em mais uma guerra no Médio Oriente, sem fim à vista e sem resultado garantido (vide Iraque e Afeganistão). Cometeu o erro de acreditar que ainda podia contar com Putin para uma solução política do conflito. Deixou um vazio de poder que o Presidente russo tratou de ocupar, e um conflito entre os principais actores regionais – aliados da América (Turquia e Arábia Saudita) ou seus adversários (Irão), em luta pela hegemonia regional. Decidiu concentrar esforços no combate ao Estado Islâmico. Sabe-se que a antiga secretária de Estado (bem como o seu sucessor, John Kerry) defendeu uma reacção mais dura, quando Assad passou a “linha vermelha”, utilizando armas químicas que mataram 1400 civis. E sabe-se também que teria preferido uma atitude mais prudente, quando a Primavera Árabe derrubou Mubarak no Egipto. A Síria será um tremendo quebra-cabeças. Putin continua a “provocar” a Europa e os EUA, agora com o envio de uma frota naval para o Mediterrâneo Oriental, obrigando a NATO a reforçar a sua presença nos países europeus mais vulneráveis às ameaças de Moscovo. Dos Bálticos à Roménia, passando pela Polónia.

A vitória de Clinton, se vier a concretizar-se, começará a dissipar a nuvem negra que Trump fez pesar sobre o mundo, mas não dispensa a resposta à questão fundamental: como salvar a ordem internacionalista e liberal que os Estados Unidos garantiram nos últimos 70 anos? Como tranquilizar os aliados no Atlântico e no Pacífico sobre o compromisso americano com a sua segurança? Como gerir a transição para um mundo em que novos poderes não democráticos emergem com a força suficiente para desafiar a hegemonia americana (mesmo que ainda não para derrotá-la)? A única coisa que é certa é que, depois das guerras de Bush e depois da crise financeira, terá de convencer uma opinião pública pouco sensível ao mundo exterior e às responsabilidades da América.

Clinton levará consigo para a Casa Branca uma enorme experiência. Conhece os seus principais interlocutores. Está no centro do mainstream da política externa, ainda mais do que Obama, que tentou construir uma ordem internacional em que os EUA continuam a ser “indispensáveis” mas já não “excepcionais”. Ela ainda acredita no “excepcionalismo” da América. Como escreve de novo Thomas Wright, “haverá uma viragem para corrigir a prioridade dada por Obama aos desafios de natureza global (…) no sentido de uma política mais atenta às ameaças regionais, vendo-as como fundamentais para os interesses americanos”. Chama-lhe de “regionalismo geopolítico”. Obama teve alguns resultados, o mais importante dos quais foi, porventura, o acordo de Paris sobre as alterações climáticas, conseguindo encontrar um terreno comum com Pequim. O desarmamento nuclear, que era outro dos seus grandes desígnios, acabou por chocar de frente com a nova versão agressiva do nacionalismo russo, depois de ter conseguido um acordo com o Irão, decisivo para travar a corrida à bomba atómica nos países vizinhos. A crise ucraniana obrigou-o a regressar à Europa para responder às ambições territoriais de Moscovo, redobrando o empenho na NATO. Putin não lhe perdoa o facto de nunca ter reconhecido ao seu país o estatuto de grande potência. Hillary não terá um só momento de descanso. Se ganhar, será ela a ter de enfrentar uma desordem internacional própria dos momentos de transição. Se perder, nem vale a Pena pensar nisso.

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