O lugar-comum é uma arma de destruição maciça

Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso encenaram Os Últimos Dias da Humanidade, obra-prima de Karl Kraus, evitando domar o monstro feito das vozes da sociedade vienense que na sua atroz banalidade ajudaram a conduzir à I Guerra Mundial.

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A plateia do Teatro São João foi coberta para poder funcionar como palco nesta adaptação FOTO: Fernando Veludo
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A plateia do Teatro São João foi coberta para poder funcionar como palco nesta adaptação FOTO: Fernando Veludo
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A plateia do Teatro São João foi coberta para poder funcionar como palco nesta adaptação FOTO: Fernando Veludo

Subiu esta quinta-feira à noite ao palco do Teatro Nacional de S. João (talvez seja mais exacto dizer que subiu à plateia, coberta para o efeito por uma plataforma onde decorre toda a acção) a primeira parte de Os Últimos Dias da Humanidade, do escritor austríaco Karl Kraus, uma peça que o próprio autor estimava só poder ser representada num teatro de Marte, já que o público terrestre não a conseguiria suportar, quer pela sua desmedida extensão, quer por ser feita das palavras que geraram a guerra e, por isso, ser “sangue do seu sangue”.

Das 209 cenas da versão original, os encenadores Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso, com a colaboração de Pedro Sobrado e João Luís Pereira, do departamento de edições do TNSJ, seleccionaram cerca de metade, que em alguns casos sofreram ainda cortes significativos. Mesmo assim, o que resta chega para seis horas de representação, divididas em três partes — Esta Grande Época, Guerra é Guerra e A Última Noite — e obriga um já de si considerável elenco de 21 actores a desdobrar-se em quase 200 personagens.

Até 18 de Novembro, as três partes em que se reformataram os cinco actos da peça original (aos quais se somam um prólogo e um epílogo) ir-se-ão revezando no Teatro São João, estando depois prevista para dia 19 uma verdadeira prova de resistência para actores e espectadores, com uma interpretação integral que, incluídos dois intervalos, durará nada menos do que oito horas, das 15h às 23h. No sábado anterior, dia 12, o tradutor de Os Últimos Dias da Humanidade, António Sousa Ribeiro, a jornalista Cândida Pinto e os historiadores José Pacheco Pereira e Rui Bebiano participarão na conferência Laboratórios do Apocalipse, organizada pelo TNSJ e moderada por Bruno Monteiro.

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Após a guerra, Kraus recusou várias propostas de produção da sua gigantesca peça, mas ele próprio escreveu mais tarde uma dramaturgia abreviada, na qual prescindiu de um par de personagens que aparecem quase sempre em diálogo e são recorrentes ao longo do texto: O Eterno Descontente, espécie de alter-ego do autor, e O Optimista, que dá ao primeiro as deixas para os seus discursos. Nuno Carinhas nota que também seria possível fazer o contrário e reduzir a dramaturgia aos diálogos do Eterno Descontente e do Optimista, mas ele e Nuno M. Cardoso não seguiram nenhum destes caminhos e propuseram-se “respeitar o lado monstro da obra”.

Isto é, cortaram, mas tentando não sacrificar a espantosa diversidade de registos do texto, uma variedade que não reside apenas na profusão de vozes convocadas, mas no catálogo de formas dramáticas que a peça integra: “Há coisas que vão do drama burguês a um teatro épico avant la lettre, mas também alegorias ao estilo do teatro medieval, com cavalos que falam e forças naturais que intervêm”, nota Pedro Sobrado.

Os ensaios só começaram em Agosto, um tempo francamente curto para os actores interiorizarem esta imensa colagem de vozes numa peça que, sublinha Nuno M. Cardoso, é “feita de fragmentos, de vozes, sem evolução das personagens”. Mas a pré-história desta encenação pode situar-se em Junho de 2013, quando os dois encenadores levaram ao Serralves em Festa leituras de Os Últimos Dias da Humanidade. Mais tarde, ao dinamizar no TNSJ um projecto chamado Ginásio de Actores, Nuno M. Cardoso pôs estudantes de teatro e jovens profissionais a trabalhar com o texto de Kraus, e muitos deles acabaram neste elenco, a contracenar com um núcleo de actores mais experientes.  

“Foi lá acima e desenrascou-se”

Kraus disse que, nesta peça, quis pôr o seu tempo entre aspas, isto é, quis citá-lo literalmente. As falas mais deliciosamente inverosímeis são quase sempre transcrições fiéis de jornais, cartas e outros documentos da época. Um bom exemplo disso é Schalek, uma correspondente de guerra inebriada com a frente de batalha (interpretada por Sara Barros Leitão), que se limita a repetir, enquanto personagem, o que a jornalista real escreveu nas suas reportagens. Numa das cenas desta primeira parte, a intrépida Schalek pergunta a um tenente cujo sargento acabou de morrer: “Ora diga-me, em que é que está a pensar agora, o que é que lhe vai na alma?”. Soa-lhe familiar? Esta é definitivamente uma peça que não se recomenda a jornalistas demasiado susceptíveis.

Para lá do pretexto do centenário da I Guerra e do gosto de Nuno Carinhas por peças “não muito acabadas, com impurezas”, foi também a óbvia actualidade do texto que motivou “os Nunos”, como algum do pessoal do TNSJ se refere economicamente à dupla de encenadores. “Isto não está localizado na História, tem ecos muito presentes”, observa Carinhas, argumentando que, cem anos depois, as questões de cidadania que Kraus levanta, ou a sua crítica aos meios de informação, não perderam pertinência. E lembrando que “uma frase muito ouvida na peça é ‘foi lá acima e desenrascou-se’”, sugere que também “nessa movida de interesses e oportunismos não se vê mudança nenhuma”.

António Durães, a quem coube a dura tarefa de dar corpo ao Eterno Descontente — é o único dos 21 actores que só desempenha um papel —, concorda que “a actualidade da peça é assustadora” e que isso não facilita a vida aos actores. “É que, no confronto com o passado, estamos constantemente a falar do presente, as coisas estão a acontecer”, observa. Mas se o presente se intromete no passado, há também o reverso da medalha: “Cem anos na história da humanidade não significam nada, mas para nós, que estamos a fazer esta peça, é um tempo longínquo, que fica muito para trás das nossas vidas, de que nos esquecemos, e trabalhar este material, trazer esta história novamente para a nossa mesa, comer com ela, conviver com ela, não é fácil”.

Vendo no Eterno Descontente, cujas falas tanto se resumem a breves tiradas irónicas como se estendem por dezenas de páginas de indignada retórica, “uma extensão do próprio Kraus”, Durães atribui à sua personagem o papel destinado ao Coro nas tragédias gregas. “O Eterno Descontente chega, reflecte, previne, adivinha, e se há dom que o Kraus teve foi o de ser capaz de antecipar muitas das coisas que nos atormentam há cem anos”, diz o actor, para quem uma das ideias centrais da peça é de que a decadência da linguagem é uma das causas da guerra. “A humanidade tornou a linguagem uma coisa imediata, sem pensamento, e isso facilita que a seguir à palavra suceda um gesto qualquer que dá azo a um conflito”.

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Karl Kraus estimava que a sua peça só podia ser representada num teatro de Marte, já que o público terrestre não a conseguiria suportar

Há, de resto, um diálogo em que o Optimista pergunta ao Eterno Descontente se “está então em condições de estabelecer uma relação palpável entre a língua e a guerra”, e este responde que “aquela língua que mais se cristalizou na frase feita e no lugar-comum também tem a disposição para achar irrepreensível em si própria tudo aquilo que, nos outros, é digno de reparo”.

O tradutor da peça, António Sousa Ribeiro, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que já tinha publicado uma primeira versão parcial de Os Últimos Dias da Humanidade na Antígona, e que agora concluiu e reviu o seu trabalho para esta encenação (a edição integral irá ser publicada pelo TNSJ), confirma que “aquilo que Kraus interpreta como degradação da linguagem é um fio condutor fundamental” da peça, e lembra que já quando o autor lançou a sua revista, Die Fackel, em 1899, assumira como programa “drenar o vasto pântano dos lugares-comuns”. E Kraus, acrescenta, “vai associar cada vez mais ao jornalismo este empobrecimento da linguagem, que destrói a imaginação, tornando os seres humanos capazes de ouvir falar das piores atrocidades sem compreenderem o que estas representam para as pessoas concretas e dispondo-os para a violência e para aceitação passiva da guerra”.

Mas Kraus também não poupa os muitos escritores e intelectuais austríacos do seu tempo que alinharam na incendiária retórica nacionalista, e que figuram na peça com os seus próprios nomes. Uma das cenas mais divertidas da primeira parte é o diálogo entre O Assinante [do jornal Neue Freie Presse, que Kraus abominava], interpretado por João Cardoso, e a personagem do Patriota (Marcello Urgeghe), a propósito do poeta Hans Müller (Miguel Loureiro), que em Berlim “deu uma beijoca em plena rua a um simples soldado”, e que escrevia entusiásticos artigos da frente de combate confortavelmente instalado em Viena. “Naquele contexto”, diz Sousa Ribeiro, “a cultura tornou-se uma arma de destruição maciça”.

Para o tradutor de Os Últimos Dias da Humanidade, Kraus é o maior autor satírico do século XX, e a sua sátira, explica, combina as duas grandes tradições do género, a que vem de Horácio, centrada na ironia, e a sátira indignada, de cariz patético, que remonta a Juvenal. Essa alternância entre ironia e pathos está bem presente no espectáculo do TNSJ, onde momentos divertidíssimos e tiradas da mais fina ironia convivem com alguns discursos inflamados do Eterno Descontente, que escarnecem sem pretender provocar o riso.

Nesta encenação, e ao contrário do texto original, a acção começa já depois do assassinato do arquiduque Francisco Fernando, com um extenso telefonema em que o director de protocolo da corte austro-húngara, Nepallek, se diverte a lembrar ao seu interlocutor tudo o que foi feito para garantir que o funeral do herdeiro do trono tivesse o mínimo de pompa possível. É um notável one-man show do actor Pedro Almendra a abrir esta primeira parte, que inclui várias outras cenas hilariantes, como a do professor Zehetbauer (um dos vários papéis de João Castro), que põe a turma a cantar o hino patriótico Cuidai do Turismo!.

É também no primeiro acto que está a cena em que Kraus dá um tom mais caricatural à sua crítica da imprensa, com três repórteres que recebem a actriz Elfriede Ritter (Teresa Arcanjo), recém-chegada da Rússia, e usam as suas palavras para a pôr a dizer o contrário do que efectivamente disse.

Se na primeira parte o palco, montado sobre a plateia, é uma plataforma simples, que os espectadores vêem de cima, a partir da tribuna e das frisas, mas também de uma estrutura erguida no extremo oposto da sala (os actores estão sempre, por assim dizer, entre dois fogos), na segunda parte o cenário complica-se com a introdução de uma série de estrados, que servem para simular uma visita (ela própria simulada) às trincheiras, mas também, por exemplo, para hierarquizar no espaço os vários estratos da sociedade vienense.

O momento mais notável desta segunda parte é provavelmente a conversa de quarto entre o conselheiro Schwarz-Gelber e a sua esposa. Num ensaio incluído no manual de leitura da peça organizado pelo TNSJ, Robert Calasso cita esta cena como exemplo de “comicidade aterradora” e não hesita em afirmar: “Nenhum dos grandes dramaturgos do século XX concebeu algo de comparável. E talvez só Ernst Lubitsch tivesse podido filmá-lo adequadamente”.

No terceiro acto, prepare-se para um discurso do Eterno Descontente que é tão longo que se achou melhor que Durães o dividisse com outros actores, e também para o alucinado final, onde Kraus dá voz a cavalos e cães, a soldados mortos e até a um filho por nascer. E, cumprido o apocalipse, a última voz a ouvir-se é, claro, a de Deus, que diz apenas uma pequena frase, que não repetiremos aqui, embora Ele próprio estivesse a repetir o imperador alemão Guilherme II.

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