Uma família argentina
A história verídica de uma simpática família que arredondava o pé de meia dedicando-se a raptos e assassínios: O Clã.
Sem a marginalidade e a idiossincrasia “autorísticas” de Lucrecia Martel ou Lisandro Alonso, e apontando mais a uma lógica de “filme de qualidade” para o “grande público”, Pablo Trapero não é um tipo desprovido de talento.
De entre os filmes dele que estrearam em Portugal guardamos boa recordação de Carancho, recriação da noite de Buenos Aires fora dos circuitos turísticos e das “tanguerias”, e de um ambiente socialmente pouco próspero que retinia com uma certa justeza. A fronteira com essa justeza não se perde em O Clã, que evoca os anos 80 argentinos e a época da transição para a democracia a partir de um caso verídico: uma simpática família, de boa posição social, que arredondava o pé de meia dedicando-se a raptos, pedidos de resgate e assassínios. É esse “o clã”, liderado pelo pater famílias, um homem com ligações à ditadura militar e a algumas das suas práticas mais sinistras – esse eco do passado recente é omnipresente ao longo do filme, através dos amigos e contactos de Arquimedes (assim se chama o protagonista), e da sugestão de que ele e as suas actividades são “protegidas” pelas autoridades policiais e judiciais. Acompanhando a história durante alguns anos, até ao momento da investigação e da descoberta dos crimes, em surdina vai passando uma memória da mudança para um outro tempo, como se se retratasse também a extirpação da influência da época ditatorial sobre a época democrática. Essa maneira de pegar num caso particular para dar uma porção de um quadro mais vasto é o aspecto mais inteligente de “O Clã”, possibilitando pensar que Trapero está para a Argentina como outro Pablo (Larraín) está para o Chile, ambos perscrutando a história recente, e as suas persistências, dos respectivos países natais.
Esse é o aspecto mais curioso do filme, que depois sofre com a sua narrativa demasiado descritiva, e sobretudo demasiado certinha, num cinema sem riscos, nem rasgos, figurativos ou dramáticos, e demasiado concentrado na dupla face de Arquimedes, homem de modos suaves e rosto doce mas capaz da maior violência, que se torna um efeito, um cliché. O que contribui para conferir a O Clã uma dimensão mais visivelmente “fabricada” e calculista do que acontecia em Carancho, por exemplo, a sua energia sufocada num ambiente de “estufa” (aquela casa, a reconstituição dos anos 80), sem espaço para desvios ou surpresas a partir do momento em que a narrativa se põe em marcha. Não é desagradável, não é “falhado” (pelo contrário), é só que se contenta com pouco: a sua própria eficácia.