Bem-vindos a Baltimore, a ratoeira da América
Rat Film, estreia fulgurante do realizador Theo Anthony, é um olhar político sobre uma cidade que tem feito manchetes por causa da sua violência racial — e da sua população de ratazanas. Está no Doclisboa
A 12 de Abril de 2015, agentes da polícia de Baltimore prenderam o jovem negro Freddie Gray. Uma semana depois, após passar alguns dias em coma, Gray viria a morrer de ferimentos sofridos no momento da detenção e durante o transporte para a esquadra, sem que o departamento policial da cidade tivesse conseguido explicar adequadamente como tinha sido ferido. As manifestações, os protestos e os motins que se seguiram foram dos momentos mais públicos do debate sobre a violência policial contra a comunidade negra norte-americana que tem estado activo ao longo dos últimos anos nos Estados Unidos. E é impossível não pensar nele enquanto vemos Rat Film, de Theo Anthony (n. 1989), um dos momentos imperdíveis do concurso do Doclisboa deste ano (segunda passagem esta terça, 25, às 14h, na Culturgest): porque o fotógrafo e cineasta americano reside na cidade, cobriu as manifestações e não faz outra coisa que não seja filmar Baltimore nesta sua primeira longa-metragem.
No entanto, “o que surgiu primeiro foi exactamente o primeiro plano do filme,” diz ao PÚBLICO enquanto toma um café nas residências do Intendente onde o festival o instalou. “O plano da ratazana a tentar saltar para fora do caixote do lixo. Foi literalmente o princípio do filme. Cheguei a casa, vi a ratazana no caixote, equilibrei o iPhone no caixote e filmei, e a partir daí as coisas começaram a ganhar embalo.”
E, perguntará o leitor, o que tem uma ratazana normal – Rattus norvegicus, como o álbum dos Stranglers – a ver com Baltimore e os protestos contra a violência policial? “O filme nunca fala directamente dos protestos, mas estas coisas não aparecem por acaso”, explica Anthony. “Rat Film nasceu de eu viver em Baltimore e de querer perceber porque é que a cidade tem o aspecto que tem. É uma cidade muito segregada, com uma escala geográfica muito mais pequena do que Detroit ou Nova Iorque, e essa escala permite ver as divisões sociais muito mais nitidamente. No espaço de dois quarteirões, passamos das zonas mais endinheiradas para ruas cheias de casas abandonadas. E quando começamos a investigar a história da cidade, percebemos que isso não é acidental – a cidade foi planificada desse modo, e isso propagou-se até hoje.”
Anthony descreve Rat Film como “uma tentativa desesperada de traçar um esquema da história da cidade, de usar essa história para falar do presente”. A partir da ratazana original do caixote do lixo, as pesquisas do realizador levaram-no a uma equipa de oito desinfestadores contratados pelo município para exterminar a população de ratazanas da cidade, e daí às razões da existência de um problema de ratazanas, e daí à compreensão de que a cidade havia sido planificada no século XX segundo divisões sociais e raciais… “Não sabia o que o filme ia ser quando o comecei,” confessa o realizador, “mas parece-me que a melhor maneira de o descrever é que era um tumor, que foi crescendo e crescendo e crescendo até um ponto em que já não podia crescer mais e tinha de ser retirado”.
É inevitável pensar na ratazana como uma metáfora da população de Baltimore, até porque uma das variantes do Rattus norvegicus foi manipulada geneticamente e deu origem aos ratos usados como cobaias em experiências de laboratório – um pouco como a própria cidade foi sendo manipulada pelos legisladores. “Mas não quero que as pessoas saiam do filme com uma conclusão tão simplista!”, avisa Anthony. “Ainda não sei exactamente o que é que a ratazana representa no filme. Honestamente, posso dizer que o que me interessou no animal tem precisamente a ver com a possibilidade de poder pegar nesta metáfora muito usada, muito gasta, e de a levar para locais nada óbvios. A ratazana era um veículo extremamente maleável para explorar uma série de metáforas e os modos como elas funcionam, ou não funcionam.”
Acima de tudo, Rat Film é uma tentativa de fazer um filme político que não seja politicamente correcto, e que esteja consciente dessa incapacidade de dar respostas. “Nem sei o que é a correcção política!”, ri-se Anthony. “Vejo os dois lados da questão, porque há gente politicamente incorrecta que é completamente ignorante e gente politicamente correcta que gosta de viver numa câmara de eco alheada das coisas. Não estou interessado em nada disso, mas estou constantemente a questionar a minha própria abordagem política e ética. Tento fazer filmes políticos ou sociais que mostram como essas questões fazem organicamente parte do tecido da realidade. O que me motiva é ver as ligações entre as pessoas, as imagens e os locais, e tentar traçar um mapa dessas ligações, de um modo que subverta as expectativas de quem se senta a ver o filme.”