Peter Watkins: um dos mais desconhecidos dos grandes cineastas do mundo
Em retrospectiva integral, o Doclisboa revela um dos mais desconhecidos dos grandes cineastas do mundo – um inglês formado na BBC que quis abolir as fronteiras entre o documentário e a ficção, sempre colocando o espectador e a si próprio em xeque.
“Chantal Akerman, John Cassavetes, Douglas Sirk, Frederick Wiseman”… São os cineastas preferidos do montador e realizador Robert Greene (Kate Plays Christine), nomes em busca de “uma combinação entre o pensamento e a emoção, com o desejo de nos fazer pensar em tudo e de nos fazer sentir tudo ao mesmo tempo”. Ao telefone da universidade do Missouri onde lecciona sobre cinema documental, contudo, Greene coloca um nome acima desses todos. “Ninguém o conseguiu fazer como Peter Watkins”, diz. “Edvard Munch é o meu filme preferido de sempre. E surpreende-me sempre que o vejo, mostra-me as imensas possibilidades do cinema de um modo que poucos filmes conseguem.”
Ao telefone de França poucos dias depois, Patrick Watkins, filho de Peter Watkins, fala dessa ideia de múltiplas possibilidades. “O meu pai compreendeu muito cedo o que se abria à sua frente,” diz, “o impacto que o cinema podia ter no público. Teve a sorte de viver num período de invenção constante – era inspirado pela Nouvelle Vague francesa, pelos neo-realistas italianos, pela escola documental britânica… Estava tudo em aberto. E começou a trabalhar na BBC numa altura em que a televisão ainda estava a inventar formas, em que havia uma grande experimentação dentro do mainstream.”
Porquê, então, esta sensação que Peter Watkins (n. 1935) é um segredo bem guardado, e que a retrospectiva integral que o Doclisboa lhe dedica este ano é um momento de descoberta e revelação imperdível?
Talvez porque o britânico, que abandonou o Reino Unido em 1967 e vive desde então em exílio europeu, não filma há mais de 15 anos (o seu último filme, La Commune, data de 1999). Talvez porque ao longo dos últimos anos se tem remetido ao silêncio, declinando entrevistas e aparições públicas, mantendo contacto com o mundo através do seu site oficial (http://pwatkins.mnsi.net), onde publicou notas detalhadas sobre a criação, produção e recepção dos seus filmes, bem como um longo ensaio sobre o actual momento dos media globais (entretanto expandido para um livro, The Media Crisis, que já viu tradução em 15 países). Talvez porque a sua obra foi durante décadas de acesso difícil, perdida em controvérsias e limbos legais – algo que começa agora a mudar, graças aos pacientes esforços do próprio e de alguns cúmplices e fãs que têm pugnado pela divulgação do seu cinema e negociado os direitos de exibição e edição em DVD, com o filho Patrick (que estará em Lisboa a acompanhar a retrospectiva) como “porta-voz” e coordenador oficioso. Ou talvez porque Watkins seja o modelo do artista radical e idealista, intensamente político, que persegue a sua visão de modo apaixonado e intransigente. Robert Greene descreve-o como “confrontacional”, “intocável” no modo como questiona a relação do filme com o seu espectador, “extremo” no modo como não recua perante nada.
Culloden, a primeira longa de Watkins, rodada em 1964 para a BBC, recriava a última batalha militar travada em solo inglês, perto de Inverness, em 1746. E fazia-o como se fosse uma reportagem noticiosa contemporânea, com um entrevistador fora de campo a fazer perguntas às forças em combate. Essa abordagem aparentemente anacrónica, recorrendo ao enquadramento do jornalismo para trabalhar a reconstituição de época ou abordar a ficção especulativa e rodando maioritariamente com equipas pequenas e elencos não profissionais, existia já em embrião nas suas premiadas curtas amadoras, The Diary of a Forgotten Soldier (1959) e The Forgotten Faces (1961), mas tornar-se-ia a partir de Culloden na base do seu cinema inquieto. Nem ficção nem documentário, nem narração convencional nem jornalismo, mas tudo isso ao mesmo tempo, numa corda bamba que, mais do que assumida, era procurada.
A aclamação de Culloden abriu a Watkins a possibilidade de aplicar a mesma lógica ao pesadelo da bomba atómica. “Watkins não fez The War Game como um desafio às fronteiras entre a ficção e a não-ficção,” diz Greene. “Fê-lo para explicar aos ingleses e ao governo inglês o que podia acontecer, para lhes dizer 'acordem! Já!'. Era uma peça de jornalismo radical.” Mas The War Game, docu-ficção meticulosamente investigada sobre as consequências de um ataque nuclear ao Reino Unido, foi interditado de emissão pela BBC por ser “demasiado horrível para ser exibido na televisão”. Ou, melhor, por revelar a ignorância do público britânico perante as verdadeiras consequências de uma guerra nuclear, bem como a vontade do estado de o manter nessa ignorância e de fazer crer que a sociedade tal como a conhecemos poderia sobreviver pacatamente à queda da bomba.
A BBC só exibiria o filme pela primeira vez 40 anos depois, em 1985, mas uma lacuna contratual permitir-lhe-ia ter vida nos écrãs de cinema um pouco por todo o mundo, sendo premiado em Veneza e chegando a vencer o Óscar de Melhor Documentário - muito embora, tecnicamente, fosse uma ficção. Mas “o incidente da BBC” levou Peter a afastar-se da estação. E o “padrão” estava lançado: a partir de então, a grande maioria dos filmes de Watkins foram boicotados ou incompreendidos, pouco ou nada difundidos; e o realizador passou a transportar a reputação de “difícil”, de “rebelde”, de “carga de trabalhos”. Algo confirmado pelo insucesso comercial da sua primeira ficção assumida, Privilege (1967), sátira escuríssima e visionária da indústria do entretenimento como ópio das massas manipulado pelo estado (e precursor esquecido da Laranja Mecânica de Kubrick). Esse fracasso, e as portas que ele fechou, levou-o a decidir nunca mais trabalhar em Inglaterra, partindo para um exílio auto-infligido que ainda dura.
Mesmo rodando no estrangeiro, Watkins foi perseguido pela controvérsia, com as suas distopias inquietantes (The Gladiators, de 1969, e Punishment Park, de 1971) e cada vez mais activistas rejeitadas pela crítica, pelo público ou mesmo pelos produtores. E ainda estavam por vir as suas “maratonas” de “geometria variável”: a sua biografia do pintor Edvard Munch feita em co-produção entre a Noruega e a Suécia (1974) existe em duas montagens diferentes (consoante pensadas para sala ou para TV); The Journey (1987), um filme sobre o estado da corrida ao armamento produzido pelo movimento pacifista sueco e pelo National Film Board canadiano, foi rodado um pouco por todo o mundo, com 14 horas e meia de duração repartidas por 19 “episódios” de 45 minutos; as cinco horas e meia de La Commune foram rodadas em França em co-produção com o canal ARTE…
Não esperem daqui um cineasta “fácil”, parece tudo isto dizer-nos. E Robert Greene confirma. “Watkins não é um cineasta elegante,” resume o cineasta e académico. “Não procura a transcendência do modo que muitos outros autores supostamente difíceis fazem. É um cineasta que se questiona incansavelmente a si próprio e que questiona o espectador. Quem faz um filme como The Journey, que é um ataque deliberado a todas as convenções tradicionais, não está interessado em trabalhar dentro de qualquer sistema. E o preço que teve de pagar foi esse.”
“Culloden e The War Game foram muito divulgados,” diz Patrick Watkins, “e daí para a frente é verdade que o reconhecimento do meu pai como cineasta radical ficou mais circunscrito a alguns países, como França, onde a maioria dos seus filmes teve estreia comercial. Mas ao mesmo tempo é-lhe hoje muito difícil fazer filmes, muito mais do que era há 40 ou 50 anos. É verdade que existe um novo interesse no seu cinema, ajudado pela edição em DVD de muitos dos filmes, e um reconhecimento mais alargado. Mas apesar dos seus escritos sobre o panorama mediático serem publicados em livro, por mais que os filmes estejam a ser vistos e falados mais do que alguma vez o foram, ninguém parece estar disposto a arriscar... E ele não sente que esteja a ter qualquer impacto ao nível social.”
Essa frustração de que o filho fala parece inerente à própria história do realizador. “É preciso lembrar que Peter é um homem da televisão,” recorda Patrick. “Foi onde o meu pai começou e para a qual fez a maioria dos seus filmes. Tinha o sonho utópico da televisão como uma ferramenta para a democracia, uma linguagem que falasse para muita gente diferente. Claro que hoje em dia é uma utopia que parece praticamente morta, mas é o sonho dele, e é por isso que ele tem essa relação de amor e ódio com a televisão. O que o enfurece mais é que os seus filmes não sejam mostrados na televisão ou no cinema. O trabalho dele é muitas vezes alinhado com o cinema de vanguarda, ou apresentado em galerias e museus - o que não deixa de lhe agradar, mas nunca foi a sua intenção original.”
Para Robert Greene, a intenção era outra. “Lembro-me de ver os seus filmes pela primeira vez como estudante, e de os achar das melhores coisas que alguma vez tinha visto, apesar de serem tão pouco conhecidos,” explica o realizador americano. “Era extremamente radical misturar deste modo a ficção e a não ficção – uma coisa que se faz desde o princípio do cinema, mas que eu nunca tinha visto até então desta maneira tão agressiva. O que Watkins faz é demonstrar que existem outras maneiras de «importar» ideias de outras áreas, de outras artes, para o cinema, de um modo pós-moderno mas não irónico. Em Edvard Munch, por exemplo, ele entrevista pessoas que não são actores a quem pergunta as suas opiniões sobre o casamento, as relações, as desigualdades sociais, e nesse aspecto está a fazer um documentário; mas aquelas pessoas estão ali a representar personagens, e ao mesmo tempo ele está a fazer uma voz-off que é ao mesmo tempo jornalística e falsamente jornalística… O seu uso do som e da imagem, a sua mistura de ficção e não-ficção, é algo que demonstra as imensas possibilidades do cinema. E conseguir que isso tudo resulte no espaço de um mesmo filme é absolutamente radical.”
Peter Watkins conseguiu-o em todos os seus filmes.