Se for mesmo falsa, esta pintura enganou muita gente
Um S. Jerónimo atribuído a Parmigianino pode estar envolvido num escândalo que inclui um falsário dotado, um coleccionador duvidoso, uma leiloeira importante e grandes museus internacionais.
É mais um episódio no escândalo que tem vindo a surpreender o mercado da arte e que envolve um falsário ou uma rede de falsários que a polícia francesa está a investigar. Um S. Jerónimo até aqui atribuído ao ciclo do pintor Parmigianino, ou mesmo a este artista italiano, está agora sob suspeita. Quem o garante é a Sotheby’s, a importante leiloeira que o vendeu em 2008 por quase 850 mil dólares (770 mil euros ao câmbio actual) e que se prepara para submeter esta pintura, supostamente do século XVI, a uma bateria de testes semelhante à que lhe permitiu concluir há duas semanas que o retrato de Frans Hals cuja transacção mediara em 2011 é, afinal, falso.
A notícia é avançada esta terça-feira pela publicação especializada The Art Newspaper, que com a “congénere” francesa Journal des Arts tem vindo a acompanhar, desde o Verão, a investigação das autoridades de Paris que envolvem o coleccionador e negociante de arte Giuliano Ruffini e obras atribuídas a artistas como Frans Hals (1582/83-1666), Lucas Cranach, o Velho (1472-1553) e Orazio Gentileschi (1563-1639). Uma investigação que deverá alargar-se, dizem alguns dos galeristas e académicos que têm vindo a ser ouvidos pela imprensa internacional, e pôr a descoberto a maior fraude dos últimos 100 anos no mundo da arte, implicando vários mestres da pintura antiga e um lote de 25 obras que estará avaliado em qualquer coisa como 220 milhões de euros.
O S. Jerónimo que está agora em causa foi vendido pela Sotheby’s como pertencendo ao círculo de Parmigianino (1503-1540). Em 2014, o coleccionador privado a quem pertencia emprestou-o ao Museu Metropolitan (Met) para uma exposição que começou em Abril desse ano e só terminou em Fevereiro do seguinte. Os especialistas deste museu de Nova Iorque, um dos mais importantes do mundo, analisaram a pintura e decidiram, então, reatribuí-la ao próprio artista italiano, descrevendo-a como “uma poderosa representação do santo penitente”, possivelmente executada em Parma ou Bolonha por volta de 1528-30.
Uma porta-voz do Met explicou agora ao Art Newspaper que, antes da exposição, a obra foi cuidadosamente examinada pelos conservadores do departamento de pintura do museu, que convidaram outros especialistas na obra de Parmigianino a analisá-la. Naquela altura, garante, “o único ponto de disputa era a autoria – se teria sido pintada por Parmigianino ou por um artista próximo dele”.
A leiloeira deverá agora submeter o S. Jerónimo a uma série de exames que poderão passar pela reflectografia de infravermelhos (técnica que permite aceder ao desenho subjacente) e pela análise completa dos pigmentos usados. Recorde-se que no caso do retrato do pintor holandês Frans Hals, que a Sotheby’s vendeu por 9,4 milhões de euros ao coleccionador americano Richard Hedreen como autêntico, foi precisamente esta análise forense às tintas que levou os peritos da empresa Orion Analytical, contratada pela leiloeira, a concluir que se tratava de um falso – as tintas usadas continham materiais sintéticos produzidos pela primeira vez no século XX, o que faz com que, naturalmente, não possa tratar-se de um retrato executado 300 anos antes.
Longe do fim
O escândalo que envolve estas obras sob suspeita e museus de referência como o Met, a National Gallery de Londres e o Louvre, em Paris, está longe do fim. Se é verdade que ainda não acabou para o retrato holandês de Hals e para a Vénus com um Véu de Cranach, a obra que desencadeou a investigação das autoridades francesas e cuja autoria também está a ser questionada, para o Parmigianino mal começou. Escreve o Art Newspaper que o debate entre especialistas está a transformar-se numa batalha que pode ter sérias implicações legais e financeiras.
A leiloeira teme agora ter de voltar a reembolsar um coleccionador por causa deste escândalo que está a tomar proporções cada vez maiores.
Na ficha do S. Jerónimo publicada no catálogo do leilão de 2008, a Sotheby’s reconhece que a pintura, que aparece referenciada em pelo menos nove artigos e livros, umas vezes como um Parmigianino, outras com atribuição incerta, permaneceu desconhecida das publicações especializadas até 1999, ano em que Mario Di Giampaolo (1941-2008), especialista em desenho italiano do século XVI, co-autor de vários volumes sobre o artista, defende a sua autoria.
Num artigo da revista Prospettiva, Di Giampaolo diz que o S. Jerónimo foi muito provavelmente pintado em Bolonha por volta de 1530 e relaciona-o com duas outras composições executadas na mesma época e na mesma cidade. Desde então, continua a leiloeira na entrada do catálogo em que diz ainda que a obra esteve também exposta como sendo de Parmigianino na Galeria Nacional de Parma e no Museu de História de Arte de Viena em 2003, iniciou-se um intenso debate entre historiadores, com uns a apoiarem a teoria e outros a porem-na em causa. A atribuição de uma obra a determinado artista, já se sabe, não é uma ciência exacta.
“Independentemente da autoria, a extrema qualidade, o virtuosismo técnico e as emoções intensas deste S. Jerónimo destacam-no como um exemplar excepcionalmente bom do maneirismo do Norte de Itália no século XVI”, pode ler-se no texto que começa por referir-se a esta representação do santo eremita como “uma imagem impressionante e poderosa”.
O debate promete continuar, mas, agora, não é apenas a autoria da pintura que está em causa, é a sua autenticidade.
Giuliano Ruffini, o coleccionador que já foi dono deste S. Jerónimo, lembra que nunca disse que a pintura era autêntica. E insiste que são os historiadores de arte, galeristas e conservadores os responsáveis pela atribuição. Esteja ela certa, ou não.