Mãe de Madaya: a nova heroína digital da Marvel é uma mãe síria
Quase 2 milhões de sírios sobrevivem sob cerco. Esta mãe, o seu marido e cinco filhos vivem numa cidade dos arredores de Damasco onde dezenas já morreram à fome. A ABC descobriu-a e nunca mais a largou. Dalibor Talajic desenhou-a.
Nos livros de história vão um dia estar os nomes de muitas cidades sírias. Neles, vai poder ler-se sobre gente que morreu (provavelmente, serão poucos os nomes e muitos, e muito redondos os números) e gente que sobreviveu. Entre os sobreviventes vão estar pais e mães que resistiram por causa dos filhos. Porque ser pai numa guerra é isso mesmo. Madaya Mom pode ser uma improvável heroína da Marvel mas poucos super-heróis serão mais merecedores do título.
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Nos livros de história vão um dia estar os nomes de muitas cidades sírias. Neles, vai poder ler-se sobre gente que morreu (provavelmente, serão poucos os nomes e muitos, e muito redondos os números) e gente que sobreviveu. Entre os sobreviventes vão estar pais e mães que resistiram por causa dos filhos. Porque ser pai numa guerra é isso mesmo. Madaya Mom pode ser uma improvável heroína da Marvel mas poucos super-heróis serão mais merecedores do título.
“Ela agora é um símbolo. E é sempre uma boa notícia quando os símbolos prevalecem”, diz Dalibor Talajic, o croata que é autor das 37 pranchas que compõem esta parceria da televisão americana ABC com a Marvel Comics.
O projecto é maior do que a banda desenhada que dele resultou e começou com uma jornalista a tentar fazer o seu trabalho. Dar voz a quem não tem e mais sofre no mundo. Madaya é uma pequena cidade de pouco mais de 40 mil habitantes, 25 quilómetros a nordeste de Damasco, a capital síria. Era uma estância de férias, conhecida pelas frutas e vegetais frescos e pelas fontes de água naturais.
Madaya é um dos símbolos da tragédia que se abateu sobre os sírios nos últimos anos – cercada por Bashar al-Assad, apoiado pelo Hezbollah libanês, organizações de direitos humanos como os Médicos Sem Fronteiras contabilizaram pelo menos 67 mortes em Madaya por fome e malnutrição severa durante o último Inverno. A ONU fala no uso “da fome como arma” e diz que estes são “crimes de guerra”. Em Janeiro, 60 camiões com comida e medicamentos enviados pela Cruz Vermelha e várias ONG entraram em Madaya poucas horas depois de um menino de nove anos e cinco homens com mais de 45 terem sucumbido à fome.
Ter fome
A fome é o grande inimigo da Madaya Mom. As bombas, os atiradores furtivos, as minas são outros. O desespero é talvez o único inimigo comparável à fome. Esta mãe vive com o marido e com os seus cinco filhos, um bebé, alguns com menos de dez anos, duas adolescentes. Antes do inferno, o marido era agricultor, agora os problemas podem ser dar demasiada comida a crianças com demasiada fome. “Hoje, comemos sopa de arroz e feijão. Os nossos estômagos já não estão habituados a comer. As crianças têm fome mas estão a ficar doentes, os seus corpos já não conseguem digerir e absorver a comida por terem fome há tanto tempo.”
Madaya está sob cerco desde Junho de 2015. O ano passado, a ABC tentou, como muitos outros, obter autorização para visitar a cidade. Face à recusa, a produtora Rym Momtaz tentou outra abordagem. Conseguiu entrar em contacto com uma mãe e começou falar com ela ao telefone e a trocar SMS em árabe. Daqui nasceu um blogue no site do canal. Depois, a parceria com a Marvel Comics (que, como a ABC, é do grupo Disney) e estas 37 pranchas, uma BD digital disponível online e que a protagonista já pôde espreitar (algumas ilustrações romperam o cerco).
“Quando começámos a pensar neste projecto eu disse-lhe que a Marvel estava interessada e ela não podia acreditar que as pessoas que fizeram o Homem-Aranha sabiam quem ela era e estavam interessadas na sua história”, conta Momtaz num documentário. “Quando ela sair, os desenhos são para ela”, diz Talajic.
Textos e peças jornalísticas, a BD, o documentário e não só: a ABC ainda preparou conteúdos educativos para os professores poderem falar na Síria aos seus alunos através do quotidiano da mãe de quem só saberemos o nome quando o cerco cair e isso não significar um risco acrescido para ela e para a sua família.
Ser pai
Talajic tinha 18 anos quando o seu próprio país, a Croácia, e o conjunto dos Balcãs entraram em guerra. “A nossa guerra foi horrível e selvagem, mas comparada com isto foi um passeio no parque”, diz numa conversa por chat a partir de Zagreb, onde vive com a família. “Sempre que falo com alguém sublinho o mesmo facto: muitos milhões de pessoas disseram ‘chega’ e saíram”, afirma. São pelo menos cinco milhões de sírios a viver hoje como refugiados. “Não foram centenas, não foram milhares… são milhões!!! O mundo não está a levar isto a sério. De todo…”
O croata não conhece esta mãe, só sabe dela o que ela contou à ABC e o que sabe da guerra em Madaya e na Síria. Mas quando lhe pedimos para falar connosco, na sexta-feira, pediu se podia demorar umas horas por estar com os seus filhos. “Para mim, esta história é sobre ser pai. Independentemente das circunstâncias. Sendo pai posso identificar-me muito fortemente com as acções da Mãe de Madaya. Ela coloca-se em último na sua lista de prioridades. Seja ao deixar de comer ou simplesmente por organizar a vida de maneira a que os filhos sintam a guerra e as suas consequências diárias o menos possível.”
Há dias em que isso é tão difícil. Como o dia em que as filhas regressaram à escola, um mês depois de esta ter sido encerrada, e a escola foi atingida por disparos de artilharia. “Chegaram a casa histéricas, disseram ter visto os amigos em pedaços diante delas. Quando chegaram quase não conseguiam falar, estavam petrificadas. O professor delas ficou gravemente ferido e uma das amigas das minhas filhas perdeu uma perna.”
Azuis e vermelhos
E o que faz uma mãe, num dia assim, um dia que começou com as filhas “tão felizes por voltarem à escola”? Abraça-as e a seguir chora sozinha, provavelmente. As pranchas de Talajic têm pouca cor, mas a sua utilização é certeira. Quando a mãe tenta tranquilizar as filhas, há preto, branco e muitos tons de cinzento; só depois, chega o vermelho acastanhado que é o mesmo que ele usa para o sangue. Aqui, a mãe está cercada por esta cor, no momento seguinte são só os seus olhos pintados.
“Elas não conseguem parar de falar sobre isto, estão tão traumatizadas e assustadas. Não quero que os irmãos mais novos as oiçam falar deste acontecimento terrível, mas as raparigas continuam a repetir como pisaram o sangue dos amigos.”
“Podem chamar a Madaya a Cidade dos Mortos. Tantos estão mortos… E nos olhos daqueles que não estão vê-se a morte.”
O azul é a alegria. E a alegria tanto pode ser a memória de um pomar e de gente a sorrir enquanto apanha fruta das árvores ou dos serões em que a filha mais nova dava espectáculos a cantar enquanto os irmãos mais velhos filmavam. “Tem uma voz bonita? Nem por isso, mas tem presença!” Tanto o azul como o vermelho acastanhado pintalgam as cores de um Inverno tão duro, duro de neve e de frio a valer e de destruição e de falta de comida e de electricidade e de filhos doentes e de uma mãe doente sem ter pensar em tratar de si.
Vencer a guerra
“Lembras-te de A Vida É Bela do Roberto Begnini? Esse filme é realmente uma caricatura, mas seguramente ilustra muito bem até onde um pai vai para salvar tanto a vida como a alma de um filho”, resume Talajic, autor, entre outros de Deadpool. “Antes de mais, esta é a história de uma mãe e mulher dedicada que quase ignora os horrores da guerra e os ultrapassa realmente com a sua determinação e estado de espírito… Isso sim, é notável.”
As descrições desta mãe são do último Inverno. Agora, começa a estar frio outra vez na Síria. Entretanto, continuou-se a morrer, de fome, de bombas, de doenças fáceis de tratar, de ir a um hospital tratá-las (dezenas de hospitais foram atingidos nos últimos meses), de calor até. Está quase a voltar a neve e as aventuras da mãe de Madaya para aquecer os filhos, este ano terá menos recursos (no blogue, ela descreve o dia em que partiram o roupeiro de madeira, não o maior, esse já tinha ido: “E nós temos sorte por termos móveis de madeira, outros nem isso”).
À mãe da história e às outras, de Madaya e do resto da Síria, que o Inverno seja benevolente, que a comida consiga chegar com regularidade nos camiões que ainda a carregam e que a ONU tenta fazer chegar a quem mais precisa, que as bombas e os disparos não acertem na escola dos vossos filhos. Há pelo menos 1,9 milhões de sírios a viver sob cerco.
Perguntamos a Tajalic se gostava de poder conhecer a mãe que desenhou. “Um dia, adoraria conhecer a Mãe de Madaya. Na verdade, não sei o que lhe diria. Se teria coragem. Mas adorava vê-la. Vê-la quando ela estiver bem.”