Síria deixa entrar ajuda em Madaya, onde há pessoas "a morrer à fome"
Cerco à cidade pelas forças de Bashar al-Assad deixou mais de 40.000 pessoas sem comida e sem pontos por onde escapar. ONU diz que recebeu "relatos credíveis" sobre pessoas a morrer à fome.
As atenções internacionais sobre os horrores da guerra na Síria centraram-se nos últimos dias numa cidade perto da fronteira com o Líbano, onde 42.000 pessoas estão cercadas há quase seis meses por forças do regime de Bashar al-Assad. Esta quinta-feira, as Nações Unidas anunciaram que o Governo sírio concordou em aligeirar o cerco e abrir as portas para a entrada de ajuda humanitária em Madaya, uma cidade em que "há pessoas a morrer à fome e a ser mortas quando tentam fugir".
Os relatos que chegam de Madaya dão conta de uma situação insustentável, com famílias a tentar sobreviver alimentando-se de folhas e até de cães e de gatos. As redes sociais têm sido determinantes na chamada de atenção para Madaya, com a partilha de várias imagens em que surgem crianças transformadas em autênticos esqueletos, e outras, mais velhas, transportadas em carrinhos de bebé por já não se conseguirem deslocar pelos seus próprios meios.
"Já não há gatos ou cães vivos na cidade. Até começam a escassear as folhas das árvores que temos comido", disse ao canal Al-Jazira, por telefone, um dos habitantes da cidade, Abu Abdul Rahman. "Descrever a situação como sendo trágica é pouco quando vemos a realidade no terreno."
Esta quinta-feira, num anúncio inesperado, o departamento da ONU responsável pela distribuição de ajuda humanitária às populações da Síria avançou que o Governo sírio tinha permitido o acesso a Madaya, no Sudoeste do país, junto à fronteira com o Líbano, mas também às cidades de Foua e Kefraya, no Norte, mais perto da fronteira com a Turquia.
No comunicado, a agência das Nações Unidas dedica a quase totalidade do texto às preocupações com a situação em várias cidades cercadas na Síria – tanto pelas forças do regime como pelos combatentes da oposição –, e não avança pormenores nem datas sobre a distribuição de ajuda humanitária: "A ONU congratula-se com a aprovação do Governo da Síria de permitir o acesso a Madaya, Foua e Kefraya, e está a preparar-se para entregar ajuda humanitária nos próximos dias."
Yacoub El Hillo, coordenador da ONU na Síria, e Kevin Kennedy, que coordena a entrega de ajuda humanitária aos sírios afectados pela guerra que começou em 2011, não comentam as imagens de crianças a morrer à fome que têm circulado pelas redes sociais – e que têm sido republicadas por vários jornais um pouco por todo o mundo –, mas dizem que as Nações Unidas "receberam relatos credíveis sobre pessoas a morrer à fome e a ser mortas quando tentam fugir".
"A última vez que Madaya recebeu uma caravana [com ajuda humanitária] e em que foram resgatadas pessoas com ferimentos foi em Dezembro, mas a cidade ficou inacessível desde então, apesar dos vários pedidos de acesso", disseram os responsáveis das Nações Unidas. Quanto a casos em particular, o comunicado relata "a informação de que um homem de 53 anos morreu à fome no dia 6 de Janeiro de 2016 [quarta-feira], enquanto a sua família de cinco elementos continua a sofrer de má nutrição severa".
Devido ao cerco imposto pelas forças do regime de Bashar al-Assad, não há relatos em primeira mão no terreno por parte de jornalistas independentes – a informação que sai de Madaya é geralmente obtida ou por telefone ou através de declarações de activistas próximos de um dos vários grupos de rebeldes que combatem contra o Exército sírio.
Mas as descrições feitas por uns e outros dão conta de um cenário horrível, com a morte a espreitar em cada esquina: "Morrer subitamente em bombardeamentos do Exército sírio é mais misericordioso do que a morte lenta que enfrentamos todos os dias", disse um activista dos direitos humanos que vive em Madaya, Manal al-Abdullah, ao site Al-Monitor, via Skype.
"Estamos a morrer na enorme prisão que é Madaya. Chegámos a um beco sem saída depois do falhanço do acordo de cessar-fogo. Eles não nos deixaram sair, nem deixaram entrar comida. Não há solução à vista para a crise de fome. Pedimos ao regime e à oposição que resolvam os seus problemas políticos longe dos civis. Não podemos aguentar esta situação por mais tempo", disse Manal al-Abdullah.
Mas por entre as dezenas de testemunhos e as muitas e terríveis imagens partilhadas nas redes sociais, há quem alerte para a possibilidade de a provação dos habitantes de Madaya ter origens mais complexas do que o cerco das forças leais a Bashar al-Assad.
Numa série de mensagens no Twitter, a jornalista libanesa Rana Harbi, que se apresenta como "alérgica a islamistas e a islamófobos", deu esta quinta-feira a sua versão dos acontecimentos, apontando o dedo também aos grupos mais extremistas que lutam contra Assad e que controlam o interior da cidade sitiada.
"Madaya está sob controlo de 600 militantes (60% Ahrar al-Sham, 30% Nusra, 10% FSA [Exército Livre da Síria]. Os grupos terroristas controlam a distribuição de comida em Madaya, puseram os alimentos num armazém e estão a usar os civis para fazerem chantagem", escreveu Rana Harbi, que apresenta ainda o que diz serem provas de que as imagens partilhadas nos últimos dias como sendo de habitantes de Madaya foram tiradas no ano passado em outras localidades, na Síria e no Iraque – num artigo publicado no início da semana, o site norte-americano Vice retirou mais tarde as imagens de crianças vítimas de má nutrição por "ter sido informado de que as fotografias podem não ter sido tiradas em Madaya".
Seja qual for a verdadeira situação em Madaya – e a causa do sofrimento dos seus habitantes –, as Nações Unidas sublinharam esta quinta-feira que "cerca de 4,5 milhões de pessoas vivem na Síria em áreas de difícil acesso, incluindo quase 400.000 em 15 locais cercados, sem acesso à ajuda que pode salvar-lhes a vida e de que tanto necessitam."