Barragem do Tua já encheu, mas contrapartidas para a região ainda andam no ar
Durante cinco anos, fez-se tudo pelo paredão da barragem e muito pouco pelas medidas compensatórias. Um caldo de inércia e desconfiança paralisou o processo. Uma história do Portugal interior.
Cinco anos e mais de 300 milhões de euros depois, as águas do rio já inundaram a garganta do vale onde a EDP construiu uma barragem de Foz Tua e a produção de energia está pronta a arrancar. Ao contrário das contrapartidas que a empresa teve de financiar por destruir uma parte da linha de caminho-de-ferro que há 140 anos ligou Foz Tua a Mirandela e por inundar um dos mais belos vales do país. Cinco anos depois de serem anunciadas, a maior parte das obras continua sem ver a luz do dia. Os três eixos fundamentais do programa de compensações atrasaram-se anos – o sistema de mobilidade para o vale, que combinará barcos e comboio, foi adjudicado apenas em Fevereiro, o centro de acolhimento que será um museu da memória do vale só foi contratado há duas semanas e o parque natural produziu apenas protocolos, brochuras e percursos pedestres.
Nos discursos oficiais, tudo parece bem. A EDP “reafirma que está a cumprir com as medidas identificadas” na Declaração de Impacte Ambiental (DIA), que fixou as contrapartidas para poder avançar com a barragem. Os autarcas avisam que em causa estava um plano original que implicou a criação de uma agência intermunicipal, o primeiro parque natural regional e uma série de exigências burocráticas. A comissão de acompanhamento da obra, que reúne a EDP, autarcas e ambientalistas, dá igualmente o seu beneplácito ao processo, apesar de no último mês a representação dos ecologistas ter abandonado o seu lugar por considerar que a comissão “não dispõe sequer de documentos em tempo útil para poder acompanhar o que quer que seja”, nas palavras de Ana Brasão.
A questão que agora se discute é a de saber se a obra pode ser licenciada pela Agência Portuguesa de Ambiente (APA) sem que as contrapartidas exigidas à EDP estejam integralmente cumpridas. Em Maio deste ano, quando a EDP concluiu o paredão da barragem e deu início ao enchimento da albufeira, revisitou os contratos e mandou parar o enchimento. Mas, um mês mais tarde, reverteu a sua decisão por considerar que “as medidas compensatórias se encontravam suficientemente desenvolvidas”. A APA sugere numa resposta ao PÚBLICO que o centro de acolhimento ficará pronto quando a barragem entrar em produção e que as ligações de barco e comboios para fins turísticos e para a mobilidade quotidiana da população local estão garantidas a partir da próxima Primavera.
A pergunta que fica no ar perante estas dúvidas é a de saber como foi possível chegar até aqui. Ou, por outras palavras, como é que a região do Tua demorou cinco anos a aproveitar as compensações da EDP. Para se entender todo este processo há que regressar à origem da história e a uma mudança de atitude da eléctrica perante as comunidades onde instala os seus aproveitamentos. A começar, a EDP tinha de garantir a mobilidade no vale e disponibilizou-se a investir dez milhões de euros. Depois, obrigou-se a financiar um centro de acolhimento, onde já terá gasto mais de dois milhões. Pelo caminho, libertou 1,6 milhões para a intervenção no património artístico e cultural da região. E, pela primeira vez, a empresa concedeu 3% “da receita anual do empreendimento” ao Fundo da Biodiversidade, sendo este obrigado a devolver 75% das verbas ao Tua para a “criação e gestão de uma área protegida de âmbito regional” e para a “conservação da natureza e biodiversidade na região”.
O caderno de encargos mais difícil era o da mobilidade. A DIA obrigava a EDP a estudar a construção de um teleférico para subir o desnível do paredão da barragem e até de uma linha férrea alternativa de modo a “assegurar o serviço de transporte público da linha férrea do Tua no troço a inundar”. Depois dos primeiros estudos, concluiu-se que o teleférico não fazia sentido e que a construção de uma nova linha estava condenada à inviabilidade técnica e económica. Optou-se por uma combinação barco/comboio para o turismo e deixou-se para mais tarde uma solução para o transporte quotidiano.
Mas, ainda assim, sobrava uma questão: quem articularia a contratação e a execução do sistema de mobilidade, dos centros de acolhimento ou dos investimentos no património? E quem iria gerir o dinheiro do Fundo da Biodiversidade, que começou a ser transferido em 2012? No património, a solução foi fácil: foram transferidos 1,58 milhões para a Direcção Regional da Cultura para poder intervir em obras indicadas pelos autarcas. Para todas as outras operações nasceu um organismo novo, a Agência para o Desenvolvimento do Vale do Tua, na qual cinco autarquias (Alijó, Carrazeda de Ansiães, Mirandela, Murça e Vila Flor) dispunham de 51% dos votos e a EDP 49%.
É aqui que os autarcas começam a tomar conta da situação. José Silvano, na altura presidente da Câmara de Mirandela, tinha sido um dos mais ferozes críticos da barragem e, para surpresa de muitos, torna-se director da agência. “Resolvi participar na solução de contrapartidas. Entre a barragem fazer-se e ficarmos sem nada e contribuir para que a região pudesse ficar com alguma coisa, escolhi ir para a agência”, diz. Depois das eleições autárquicas de 2013, Silvano recebeu a companhia de Artur Cascarejo, ex-presidente da Câmara de Alijó, que não se pôde recandidatar devido à lei da limitação de mandatos. Cascarejo, requisitado ao Ministério da Educação e com um suplemento salarial pago pela agência, ficaria responsável pela instalação do Parque Natural Regional do Vale do Tua (PNRVT).
A EDP resmungava em privado com as escolhas, mas encontrava-se nas mãos dos autarcas. A criação da agência era a solução ideal para se aliviar dos encargos da execução das contrapartidas. A verdade é que os primeiros anos da agência, criada em Abril de 2011, foram auspiciosos. A EDP começou a transferir 470 mil euros por ano (estava obrigada a pagar à região mesmo antes de a barragem entrar em funcionamento) e em 2014, no relatório e contas (o único disponível no site da agência), José Silvano afirmava: “Tenho a certeza que em 2015, em conjunto com o nosso parceiro estratégico, a EDP Produção, já não estaremos só a projectar o futuro desta região, mas estaremos a construir e a gerir esse mesmo futuro”.
Entre esses projectos estava precisamente o da mobilidade turística e quotidiana. Para 2015 estava igualmente previsto “o início das obras do Centro Interpretativo do Vale do Tua” e Artur Cascarejo anunciava a pretensão de “avançar com o processo das ‘Portas de Entrada’ do parque natural em cada um dos cinco concelhos”. Dois anos depois, as “portas” continuam por construir.
Não se percebe bem o que foi feito ao longo de cinco anos pela agência e pelo Parque. O PÚBLICO pediu à EDP actas das reuniões da agência na sua qualidade de parceiro mais poderoso, mas a empresa escusou-se fazê-lo. Certo é que foram lançadas três edições de um concurso para financiar projectos de empreendedorismo, actividade que é considerada um sucesso por alguns, mas que Fernando Barros, presidente da Câmara de Vila Flor (e por inerência actual líder da agência), admite não ter tido “a correspondência que pensávamos”.
Depois, durante mais de dois anos, o encargo de avançar com um centro interpretativo mobilizou uma equipa dirigida por Eduardo Beira, da Universidade do Minho, que contava com académicos internacionais e produziu 11 livros e dois projectos que acabaram por ser chumbados pela Direcção Regional da Cultura do Norte – Eduardo Beira não quer falar sobre o seu envolvimento na obra. O Parque motivou a celebração de protocolos, a publicação de guias ou a criação de circuitos, mas está ainda longe de cumprir as suas promessas. E a mobilidade hesitou entre estudos e concursos desertos que acabaram num ajuste directo.
José Silvano, visto como o motor da agência até ao momento em que foi eleito deputado pelo PSD nas últimas legislativas, considera que “o único atraso que houve foi o do plano de mobilidade”. Um atraso justificado com a regulamentação burocrática e legal exigida nos concursos públicos. Fernando Barros reconhece que as contrapartidas “não estão tão avançadas como gostaríamos”, mas nota que os atrasos são “normais”. Foi necessário “desenvolver a ideia da agência”, foi preciso criar o primeiro parque natural regional do país e dá conta de “muito trabalho de backoffice que não se vê”. E foi preciso gerir as tensões entre os autarcas que, em casos como o de Alijó, têm contestado a forma como o processo tem sido gerido – o presidente do município, Carlos Jorge Magalhães, recusa pronunciar-se sobre estas questões e, apesar de várias tentativas, o PÚBLICO não conseguiu obter declarações do autarca de Carrazeda de Ansiães.
Com a EDP a passar os cheques “nos prazos combinados”, como reconhece Fernando Barros, os atrasos das obras no vale do Tua tornaram-se para a empresa um constrangimento que a levou a assumir um maior protagonismo na gestão da agência no último ano. Os riscos de incumprimento da DIA eram enormes e, mesmo com contratos na mão, a falta de obras em concreto poderia ser motivo para uma recusa de licenciamento da APA. Mas esse perigo está afastado. O que sublinha a pertinência da pergunta que autarcas, gestores e governantes fazem: o que se andou a fazer durante cinco anos fora do paredão da barragem.