Um ballet blanc para o século XXI
Quinze Bailarinos e Tempo Incerto é, nos últimos tempos, uma das propostas artísticas que melhor se adequa e optimiza o elenco da CNB.
Como trazer um ballet blanc até ao século XXI? Como revisitar os arquétipos do romantismo novecentista, o feminino inatingível das ballerinas de etéreos tutus de tule branco elevadas sobre sapatilhas de ponta, eternizado pela sublime Marie Taglioni em La Sylphide (1832)? Este imaginário serviu de gatilho ao multifacetado artista plástico João Penalva (Lisboa, 1949) - um inesperado regresso à dança portuguesa (reside em Londres, e foi bailarino de Pina Bausch, Gerhard Bohner e Jean Pomares nos anos 70) - e ao coreógrafo Rui Lopes Graça (Torres Novas, 1964).
Graça e Penalva depuraram em absoluto aquele universo, dele retendo a atmosfera obscura e onírica. A abrir, a imagem de um homem: imóvel, descalço, e apoiado sobre uma perna, sustém a outra no ar, num developpé clássico a preceito. A malha branca colada ao corpo evidencia as linhas límpidas do movimento, em forte contraste figura-fundo com a elegante e sóbria cena enegrecida, apenas delimitada por uma sucessão de panos laterais. O mote está lançado: este ballet blanc, não se baseará em tules vaporosos, canónicas “pontas”, ou questões de género.
De idêntico figurino branco (a espaços, a surpresa de um tom amarelo), catorze bailarinos e bailarinas se lhe juntarão, em intrincadas sequências a solo, par, trios ou grupos. Variações de padrões coreográficos, sobre dinâmicas, níveis e direcções, num muito aprumado vocabulário académico-clássico, são depressa desmanchados por breves apontamentos: a acção sinuosa de um ombro ou uma ondulação da anca, trazem um sotaque próprio ao idioma da peça.
Subidas do ciclorama, revelam uma superfície espelhada e um curioso efeito multiplicador das figuras em cena (reminiscências, quiçá, de um estúdio de dança), iludindo a profundidade do espaço – muito bem apoiado pela luz de Nuno Meira que, de súbito, pode retrair ou expandir o rectângulo do proscénio.
Mas a esta dança abstracta, não narrativa, é acrescentado um contratexto: a sonoplastia encomendada a David Cunningham (Irlanda, 1954) leva-nos por outras viagens mentais: o trovejar de uma chuva torrencial, ruídos do caos urbano, a vibração em crescendo de sinos de igreja, um crepitar de lareira ou o grasnar das aves, convocam todo um mundo exterior, a articular-se ou justapor ao que vemos.
Por vezes a peça parece hesitar entre um registo meditativo e oscilações energéticas acentuadas; a dado ponto, há ideias a tanger a repetição. A direcção plástica, sonora e coreográfica formam, porém, um trígono coeso e encantatório.
A conexão do ballet novecentista ao século XXI poderia, porventura, ter explorado outros caminhos; será, sobretudo, a dança do século XX, a ser chamada à colação: entrevemos, aqui, as combinações aleatórias da dupla Cunningham/Cage; as cristalinas composições em cascata de Lucinda Childs; as espectaculares expansões baléticas e suas imprevisíveis síncopes, truncadas de gestos de abandono, de William Forsythe. Os quinze bailarinos entregaram-se com fervor a um notável desempenho, no qual foram ganhando clara desenvoltura.
Quinze Bailarinos e Tempo Incerto é, nos últimos tempos, uma das propostas artísticas que melhor se adequa e optimiza o elenco da CNB.