Amanda Levete: “A época dos edifícios icónicos está a passar”
O MAAT esteve para ser revestido a cobre, mas acabou mais discreto coberto por azulejos. A EDP, diz a arquitecta, nunca pediu um edifício icónico para Lisboa.
A primeira coisa que Amanda Levete sublinha é que o novo edifício do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT) só estará mesmo terminado em Março, “conforme planeado”.
A arquitecta britânica que desenhou o MAAT para a Fundação EDP começou a vir a Lisboa no final de 2009, quando conheceu o presidente executivo da EDP, António Mexia, e o sítio à beira do Tejo onde o novo museu seria erguido. A encomenda oficial, porém, chegou através de um convite directo sem concurso de arquitectura já em 2011, e a primeira proposta, apresentada logo nesse ano, mostrava um edifício revestido a cobre. “Parecia lindo e dourado, mas quanto mais vínhamos ao local, mais percebíamos que tínhamos exagerado.” Levaram um ano a convencer Mexia que tinham de ser mais discretos e que o azulejo era o material certo para Lisboa.
Amanda Levete afirma que nunca teve uma conversa sobre a necessidade de fazer um edifício icónico com o presidente da empresa de energia. Também “nunca houve uma pré-determinação de trabalhar com curvas”, diz Maximiliano Arrocet, um dos directores do atelier AL_A que dirigiu o projecto em Lisboa. As formas fluidas são o resultado do desejo de mover as pessoas de uma maneira muito informal e festiva.
O contexto de uma obra de arquitectura, explicam os dois, também pode passar por querer ser diferente, um contraponto, e é preciso ver que nesta zona de Belém o que existe é rio e mais rio: a malha urbana está cortada por uma via rápida e pela linha do comboio. Se houvesse planos conhecidos para enterrar o comboio, este teria sido um projecto completamente diferente, explicam nesta entrevista feita na véspera da inauguração do novo MAAT ao público.
Depois desta pré-inauguração, “um gesto generoso” para coincidir com a Trienal de Arquitectura de Lisboa e começar por apresentar o novo edifício à cidade, só a Galeria Oval do novo MAAT, uma espécie de átrio do espaço expositivo com 1000 metros quadrados, se manterá aberta com a obra site-specific de Dominique Gonzalez-Foerster. Até aqui, ainda sem a construção da ponte que passará por cima da linha de comboio, uma grande obra de engenharia com um vão de 60 metros, o MAAT custou 20 milhões de euros.
Como é a experiência de ver o edifício do meio do rio, da perspectiva do barco?
Amanda Levete — Tivemos muito em conta a vista do outro lado do rio. Quando fizemos um dos nossos primeiros renders [imagens digitais], era com a perspectiva da outra margem. É exactamente como tínhamos imaginado e foi muito bom ver isso.
Quando pensaram no edifício dessa perspectiva, nessa imagem, qual era o resultado que esperavam?
A. L. — Não estávamos à procura de uma imagem, mas das ideias que dão forma ao edifício. Ideias sobre o contexto: estar à beira-rio com esta bonita luz do Sul, que muda durante o dia e com as estações; como usar o desenho do edifício para reconciliar a beira-rio com o resto da cidade, cuja ligação está cortada [pela linha de comboio], o que é muito invulgar.
Visto do rio, parece que a topografia do lugar se levantou e nasceu um edifício. Como é que pensaram, sem uma explicação muito contextualista, na presença do edifício à beira-rio?
A. L. — Era importante que fosse muito baixo. Mas é impossível não falar do contexto, porque a arquitectura ergue-se a partir daí e da relação com a central eléctrica. Portanto, alguma coisa baixa, que parece que vem da paisagem, que não cortasse as vistas, quer da cidade para o rio, quer do rio para a cidade. Essa suavidade é um contraponto ao edifício industrial muito forte, extremamente bonito, e que não queríamos desafiar. É por isso que está num idioma muito diferente.
Maximiliano Arrocet — Quando começámos, foi muito importante, antes de sabermos a forma exacta, termos discutido que, na nossa imaginação, ao criar um espaço público, estávamos a esticar a calçada como no Terreiro do Paço. É por isso que a cobertura é em lioz e em moleanos.
Esse foi um gesto claro, mas a geometria teve milhares de variações. Antes de sabermos onde a ponte ia ficar, ou a altura exacta do edifício [14 metros] — sabíamos que ia ser baixo, mas tentámos dez metros, 12 metros —, fizemos muitos modelos.
E, claro, quando estávamos do outro lado do rio, para responder à sua pergunta, foi quase imediato perceber que íamos ter um gesto semelhante àquele que temos agora, mas não sabíamos exactamente como ia ser. A conversa sobre que material usar veio como resultado.
Disseram na apresentação do edifício que o vosso pensamento conceptual foi guiado em primeiro lugar pela desconexão do lugar com a cidade. Pode explicar qual foi a solução?
A. L. — A solução foi criar um espaço público na cobertura, um espaço aberto. A responsabilidade de um museu é ir além das suas fronteiras e um dos grande valores da EDP é contribuir não só com um projecto capital, mas com algo em que as pessoas se possam encontrar, celebrar, estar juntas.
A ideia de usar a cobertura como este lugar permite-nos, uma vez lá, voltar as costas ao rio e olhar para Lisboa. É uma perspectiva que ninguém tinha, a não ser que estivesse do outro lado do rio ou num barco. Se estiver mesmo no limite da cobertura à beira-rio, já não se vê a linha de comboio, nem os carros, é por isso uma relação muito directa. E, claro, que depois temos uma literal que é a ponte [que sairá da cobertura para o outro lado da linha de comboio].
A ponte que vai ser construída, com um vão em forma de boomerang que é um arco de 60 metros, é uma grande obra de engenharia. E esse gesto faz parte da extensão da circulação. A circulação flui com facilidade: é a ideia de que os espaços públicos são arrastados para dentro do edifício, somos arrebatados para lá.
M. A. — Foi chave que pudéssemos ter terreno na outra ponta da ponte, porque neste momento é um beco usado como parque de estacionamento. Agora vai ter um projecto de arquitectura paisagista, por isso a experiência do MAAT começa em Belém.
Se virmos o edifício da cidade, ao nível da rua, é uma imagem muito diferente do sorriso que nos recebe do rio. É quase um edifício cego. Estamos nas traseiras do edifício?
A. L. — Sim, completamente. Isto é uma via rápida, não é agradável andar aqui. O edifício apresenta uma face muito modesta e não revela nada do drama que temos do outro lado.
Estávamos a falar da necessidade de ligação à cidade...
A. L. — ... não acredito que a via rápida seja uma ligação à cidade. Aí, estamos ao lado do que corta a ligação com a cidade.
M. A. — Se a cidade tivesse planos para enterrar a linha e fazer um túnel, teria sido um projecto completamente diferente. É ali que estão todos os portões de garagem, por onde os artistas e as obras vão entrar.
Mas é translúcido, teremos luzes. É algo que pode ser visto por quem passa à velocidade do carro.
Disse numa entrevista que não desvalorizava o valor do pensamento conceptual, mas que para si o fascínio da arquitectura é ver as ideias realizadas, lutar contra os problemas e ultrapassá-los. Quão diferente é o museu de como o imaginou na primeira vez?
A. L. — [Gargalhada] Tantos problemas.
M. A. — Uma das coisas chave para nós, por causa da linguagem que usamos, era que o espaço de criação [de exposição] fosse livre de colunas. A solução estrutural também foi muito importante para conseguirmos fazer isto. Com a Afaconsult, que são uns fantásticos engenheiros portugueses, trabalhámos mesmo como uma equipa para tornar real aquele cantilever [espaço em consola, sem pilares].
A. L. — É uma zona sísmica e temos de ter uma forma estrutural muito forte. A elipse é uma forma estruturalmente forte. O outro grande desafio em termos de engenharia é que queríamos manter o edifício baixo — podia ter sido dois metros mais baixo, mas isso significaria que os espaços no pavimento térreo estariam abaixo do nível do Tejo. É muito contra-intuitivo entrar num museu e andar para baixo, por isso usamos como vantagem o facto de se descer para criar um espaço tridimensional, em que a circulação pela rampa e escada alongadas façam parte da experiência da Galeria Oval.
Mas a construção fez-vos repensar e redesenhar partes importantes do edifício?
M. A. — Claro. Porque a chave para fazer o cantilever, e isto apareceu mais tarde, foi a ideia de um arco reclinado que é puxado por duas espessas paredes e por esse anel elíptico em betão que compõe a Galeria Oval. Isso foi fundamental, porque nós não tínhamos a certeza de como resolver isso estruturalmente, e esse foi o conceito chave para ter o espaço sem colunas.
A. L. — De certa maneira, isso foi uma melhoria que conseguimos, porque numa fase inicial tínhamos colunas. Fizemos um modelo, olhámos para as vistas e era completamente antitético do que estamos a fazer. Por isso pedimos aos engenheiros para reverem completamente a estrutura e eliminarem as colunas. E eles conseguiram.
M. A. — Depois tivemos uma solução intermédia em que tínhamos uma grande treliça, que eliminava as colunas, mas a transparência seria um problema quando abríssemos o restaurante para o rio, porque este espaço estaria entre estas grandes diagonais.
A. L. — A outra coisa que mudou durante a fase de desenho é que originalmente imaginámos o revestimento com placas de cobre. Parecia lindo e dourado, mas quanto mais vínhamos ao local, mais percebíamos que tínhamos exagerado. De facto, o que precisávamos era algo de muito neutro, que tal como a água apanhasse as luzes diferentes.
O desafio foi então convencer o António [Mexia] de que as placas de cerâmica seriam uma solução melhor. Ele, compreensivelmente, estava completamente cativado pelas imagens que tínhamos criado. A dada altura estávamos a trabalhar em dois esquemas paralelos, à nossa custa, porque sabíamos que a primeira estava errada. Levou-nos um ano a convencer o António.
Começaram a pesquisa à volta dos azulejos juntamente com o projecto para o Museu Victoria & Albert (V&A)?
A.L. — É verdade que desde que ganhámos o concurso para o V&A [2011] ficámos muito obcecados com cerâmica. O V&A tem uma das maiores colecções de cerâmica do mundo, com um conhecimento espantoso do curador-chefe da colecção. E foi através dessa obsessão, quando percebemos que nos tínhamos enganado com o cobre, que mudámos para a cerâmica. Os projectos andaram mais ou menos em paralelo e uma das empresas que procurámos para fazer as placas em porcelana do pátio do V&A foi a Cumella [Barcelona], que fez as placas aqui.
Mas no V&A usam-na no chão.
A. L. — Começámos também com cerâmica e depois mudámos para porcelana com a nossa investigação. A base de cerâmica da porcelana é tão bonita, com o branco ligeiramente azul. A porcelana é totalmente vítrea, não absorve qualquer água, e é mais dura do que o granito e o mármore, mas nunca tinha sido usada como um pavimento público, por isso envolveu uma enorme pesquisa.
M. A. — A selecção da cerâmica foi completamente diferente por causa dos requerimentos da fachada. Estudámos o mercado europeu para fazer a escolha certa. É uma cerâmica branca muito fina e em relação à superfície fizemos muita pesquisa, porque queremos que ganhe um efeito craquelé. Vai acontecer com o tempo, mas já podemos ver nas placas que apanham mais sol o efeito a aparecer com as variações de temperatura.
A ideia é que o museu tenha duas leituras: aquela que vemos de longe, com os efeitos da água reflectida, e a mais de perto, em que as pessoas vão perceber que há uma qualidade que é quase manufacturada.
A. L. — Se olhar de perto, vê que tem ilmenite, um óxido de titânio, que ajuda a aumentar os efeitos da luz. São levemente dourados. O craquelé também tem que ver com o efeito da luz na superfície da água — é como tentarmos imaginar isso na fachada.
Nos azulejos mudaram a forma para um trapézio, alguns são 3D e têm esse craquelé que introduz uma dimensão temporal. Têm dito que os azulejos são uma das coisas que fazem com que o edifício se relacione com a cidade, com as tradições locais...
M. A. — ... para nós o lioz (e o moleanos) — que é usado de duas maneiras, em calçada e em lajes maiores — e a cerâmica são as duas coisas ligadas à tradição.
O que perguntava é o que significa trabalhar com o contexto local, ser contextualista? Esta é uma questão muito presente na arquitectura portuguesa contemporânea, com a força da Escola do Porto.
A. L. — Este local é muito diferente da maioria dos locais onde se está a criar no contexto de uma rua. Aqui o nosso contexto tem de ser o rio. Temos o rio de um lado e a via rápida do outro.
De um lado quase que temos uma ausência de contexto, porque não temos a malha urbana. E, claro, o contexto, como já disse, era também a Central Tejo. Não queríamos crescer em altura e, de facto, nem nos era permitido. O contexto, às vezes, é um contraponto. Não significa imitar, mas ser diferente.
Olha-se para qualquer das fantásticas praças italianas e pensa-se que é muito coerente e muito contextual, mas são estilos completamente diversos e, no entanto, funciona. O contexto também é o diálogo entre velho e novo, entre rio e edifício, entre edifício e cidade.
As formas são muito orgânicas, fluidas, mesmo lá dentro. O programa expositivo fez-vos mudar algum dos desenhos?
A. L. — O programa era muito ambicioso: ia ser um museu virado para a experimentação com três disciplinas muito diferentes, arte, arquitectura e tecnologia. Não havia propriamente um pedido para fazer espaços determinados.
O que esteve sempre lá foi esta ideia dos espaços públicos fluírem para dentro do museu. Esse espaço de circulação pode ser usado como espaço de exibição, porque a interconectividade era mesmo importante.
Este museu pode definir-se pela vontade de eliminar as fronteiras entre disciplinas e queríamos que a disposição do espaço reflectisse isso. É também preciso perceber que isto é só uma parte de um campo mais vasto: os espaços na Central Tejo são extraordinários e industriais, mas são mais convencionais, mais espaços whitecube. Já têm isso como parte do portfólio do centro de arte e nós propusemos algo alternativo, que encorajasse um debate diferente.
O que é que é um museu hoje em dia? Como é que deve ser um museu?
A. L. — Deve criar mais envolvimento e estabelecer uma relação menos didáctica com o visitante. Interessa-nos como é que o edifício vai ser apropriado pelo público, pelos artistas, por cientistas, como vai mudar com o tempo, porque é muito flexível, muito fluido.
Quais foram as alterações introduzidas com a entrada de Pedro Gadanho para director do museu?
M. A. — A certa altura, 50% do edifício era espaço de apoio, mas dissemos que não fazia qualquer sentido. As proporções do edifício mudaram completamente.
A. L. — Nessa altura tínhamos aqui guardada a colecção EDP. Mas sentimos que era um local tão de primeira e que o armazenamento, um grande tema para os museus, podia ser noutro lugar.
M. A. — O Pedro ajudou a consolidar o campus e muitos dos detalhes dos espaços de exposições. Isto é um processo de sete anos. Foi um programa que evoluiu muito numa colaboração entre muita gente.
O que é que este projecto significou para o trabalho do atelier? O que é que aprendeu com o projecto de Lisboa?
A. L. — Tudo o que fazemos, seja realizado ou não, torna-se parte do nosso reportório. Desenhámos isto em paralelo com o V&A — ambos são enterrados, focam-se intensamente nos espaços públicos, dando-lhes um estatuto igual ou superior ao do próprio edifício —, mas formalmente são projectos muito diferentes.
Em ambos se sublinha a maneira como pensamos, esta noção da extensão da fronteira entre o edifício e o espaço público.
António Mexia disse que as formas fluidas que trouxeram são muito diferentes das da arquitectura portuguesa, que são muito direitas. Essa é a vossa leitura? Como é trabalhar numa cidade diferente, com uma tradição de arquitectura contemporânea diferente?
A. L. — Não vejo muito isso assim. Isso estava muito na cabeça do António. Em termos da genealogia da nossa actividade, tivemos esta encomenda depois dos Future Systems [terem acabado], porque com a morte do meu sócio Jan Kaplický formámos o atelier AL_A. Este é o primeiro edifício cultural que fazemos e podemos dizer que é uma espécie de transição, porque os Future Systems tinham mais uma preocupação com a forma.
Aqui é mais orientado conceptualmente, urbanisticamente e contextualmente. É assim por causa da geografia particular do sítio e deste desejo de mover as pessoas de uma maneira muito informal e festiva. O edifício não é resultado de uma preocupação formal.
M. A. — Nunca houve uma pré-determinação de trabalhar com curvas.
A. L. — O V&A não é assim.
M. A. — A geometria é algo que está lá para nós a explorarmos a favor dos projectos. Foi algo em que trabalhámos muito.
Geralmente quando uma marca encomenda um edifício está à espera de um edifício icónico, uma imagem que possa ser associado à própria marca. Isso foi uma preocupação, o que é que a EDP pediu exactamente?
A. L. — O António nunca referiu “icónico”. Não tivemos essa conversa.
Acho que a época dos edifícios como ícones, e não é para menosprezar o que foi feito no passado, está a passar.
Se olhar para a genealogia dos edifícios de onde eu venho, o Centro Pompidou, por exemplo, é um edifício extraordinário, que virou tudo ao contrário, mas também era icónico na sua expressão. E era também muito radical na maneira informal como se relacionava com o espaço público. Nunca teríamos Bilbau sem o Pompidou, sem o pensamento da democratização do espaço público com aquela grande praça inclinada.
Os arquitectos não gostam da conversa à volta do icónico, mas isso não quer dizer que não estejam a trabalhar num edifício que se quer afirmar como um marco na cidade...
A.L. — Este edifício é muito diferente dos outros edifícios daqui. Tem um carácter muito particular. Mas não é visível da cidade e esse é um ponto chave. Só é visível se olharmos da zona ribeirinha, é por isso que acho que icónico não é a maneira certa para o descrever. Mas tenho a certeza que vai ser um destino e um marco.