Maria Eugénia, a mulher à frente de um império de rocha
Foi educada para ser mãe numa família de elite do Porto, mas tornou-se a maior proprietária de empresas de pedreiras de ardósia do país e entrou na produção de vinho. Quando morreu em 2011, aos 87 anos, era a mulher com mais idade à frente de um conselho de administração.
Naquele dia de Março de 1982, Maria Eugénia Lencastre Ribeiro da Silva Nunes de Matos sai do escritório da Casa Carregosa, no Porto, com 10 mil acções ao portador da Empresa das Lousas de Valongo (ELV). Acabava de comprar por 13 mil contos uma sociedade à beira da falência e ensombrada pela greve.
A empresária de 59 anos vai sozinha à Rua das Flores formalizar o negócio. Entrega à corretora Maria Cândida Rocha da Silva, que seria mais tarde a presidente do Banco Carregosa, um cheque em troca de 9688 acções da empresa. As restantes 312 acções já eram suas. Faziam parte da herança do sogro, Jorge Nunes de Matos, grande industrial do Porto e um dos proprietários da Herdade da Comporta, que acabaria por vender à família Espírito Santo.
A compra da ELV, com os seus 90 trabalhadores, é um tiro no escuro. Sobretudo para uma mulher, nascida em 1923 numa família da elite do Porto, educada para ser mãe e sem qualquer formação empresarial. Mas a morte do marido mudaria tudo e lançaria Maria Eugénia no mundo dos negócios.
Para comprar a empresa de ardósias quando o escudo desvalorizava de dia para dia e a inflação nacional tocava os 22%, a empresária usa uma estratégia simples. Na carta escrita aos sócios da ELV, oferece 200 mil dólares pela totalidade das Lousas de Valongo. Mas depois paga em escudos, 13 mil contos, pela sociedade até então controlada pela família Tait, agente da Mala Real Inglesa, que a adquirira aos descendentes dos britânicos que em 1865 começaram a explorar esta rocha na região.
“Contou-me que propôs a aquisição em dólares, para que o valor parecesse mais alto”, adianta ao PÚBLICO Maria Emília Pereira Fernandes, professora da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, que a entrevistou em 2006 para a sua tese de doutoramento sobre as mulheres no mundo empresarial.
Este torna-se o mais importante negócio da gestora, que traz novo vigor à firma centenária. Mais tarde tenta dominar o mercado da ardósia em Valongo, adquirindo mais três companhias de comercialização desta rocha portuguesa, que hoje, em conjunto, exportam 4 mil toneladas por ano para todo o mundo.
Mas em 1982, com o país à beira de um resgate do Fundo Monetário Internacional, o cenário era outro. “A firma tinha imensos problemas e estava quase sem verbas”, recorda Rui Nunes de Matos, o mais velho dos cinco filhos de Maria Eugénia, à frente da sociedade desde a sua morte, em 2011. “A anterior administração teve que vender terrenos para poder pagar aos trabalhadores os subsídios de férias e de Natal”, adianta o gestor de 67 anos. Uma falta de liquidez que a contestação interna dos mineiros agravara.
Pôr fim à sombra da greve
Meses antes de mudar de mãos, a mais antiga sociedade de exploração de ardósias do país enfrenta uma greve que deixa a produção nos mínimos. Os mineiros e operários lutavam por aumentos de salários, num braço-de-ferro com a administração, gerida por Gustavo Andresen, cunhado de Maria Eugénia e irmão da poetisa Sophia de Mello Breyner.
Para acabarem com o protesto, os mineiros que trabalhavam no subsolo da Pedreira da Milharia exigiam 19 contos de ordenado. Os do exterior pediam 17 contos.
“Durante a greve, só se trabalhava à sexta e à segunda-feira”, diz Manuel Augusto, que integrou a comissão de trabalhadores da ELV. A escolha destes dois dias era intencional: “A lei da época obrigava os patrões a pagar o sábado e o domingo a quem trabalhasse à segunda e sexta-feira. Trabalhávamos dois dias por semana mas recebíamos quatro.”
A estratégia permite-lhes arrastar a luta por sete semanas, entre Abril e Maio de 1981, com os dirigentes do Comité Distrital do Porto do PCTP/MRPP a incitá-los a não “capitularem perante os patrões”. Os funcionários acabam por aceitar o aumento de 10% contraproposto pela administração, mas a tensão continua no ar.
Assim, a prioridade de Maria Eugénia quando chega às Lousas é “pôr fim ao ambiente de greve”, tentando criar “um espírito de colaboração” que será determinante para recuperar a empresa, lembra Rui Nunes de Matos.
O filho estava ao seu lado no primeiro encontro com os funcionários. A nova proprietária é bem recebida, apesar de ser mulher num meio de homens e de ter deixado claro que o tempo das paralisações acabara. Depois dessa conversa “nunca mais houve barulhos”, descreveria a empresária à investigadora Maria Emília Fernandes, acrescentando que os trabalhadores ficaram “muito divertidos” por verem uma senhora a liderar a pedreira.
Começam os lucros
Sob a direcção de Maria Eugénia, as Lousas ganham fôlego. “Quando chega à empresa, começam os lucros”, resume José António Simões Cortez, antigo bastonário da Ordem dos Engenheiros e que foi director técnico da ELV. E logo em 1982 as vendas são superiores a 35 mil contos, conseguindo-se os primeiros ganhos para amortizar o passivo: 3500 contos (o equivalente a 17.500 euros).
“Era uma verdadeira senhora, uma gestora exigente, que sugeriu alterações importantes para tornar a firma rentável”, afirma o especialista em minas.
A empresária comanda as operações através do escritório no Porto, onde trabalha com a filha mais nova, Ana Isabel. O filho Rui vai todas as tardes à pedreira. À empresa familiar junta-se mais tarde o marido de Ana Isabel, Rui Teotónio Pereira, que hoje é administrador da empresa.
A produção começa a ser mecanizada. Na altura, a ardósia era extraída do subsolo através de poços verticais que podiam chegar aos 100 metros de profundidade. Os mineiros desciam numa estrutura de chapa, a que chamavam “caixão”, até aos patamares que iam abrindo na rocha para trabalhar. Lá dentro, com martelos de ar comprimido, rachavam e desmontavam o minério em blocos, que eram trazidos à superfície com ajuda de gruas.
Todos estes passos são modernizados. Simões Cortez recorda “grandes melhorias” como o início da utilização do fio helicoidal (fios de aço torcidos) para cortar a ardósia ou a aquisição de roçadoras com diamante industrial, que “permitiram aumentar em três ou quatro vezes a capacidade de desmonte da lousa”.
Na fábrica, a pedra era novamente cortada, polida e transformada em placas para chão ou telhados e em mesas de bilhar, um produto exclusivo da empresa. “Moderniza-se tudo”, adianta Zeferino Rebelo, 86 anos, torneiro mecânico reformado da ELV. “Quando em 1945 comecei a trabalhar nas Lousas, havia dois homens para cada máquina. Quando saí em 1986, havia homens a trabalhar com quatro e seis máquinas.”
Ao mesmo tempo, Maria Eugénia encontra soluções simples para outros problemas da fábrica. “Todas as manhãs descia um cesto para o fundo da mina com pão, leite ou café”, conta Manuel Baptista, que foi funcionário das Lousas durante 45 anos. Era o pequeno-almoço que a empresária passou a dar aos mineiros para atenuar os efeitos do álcool e assim reduzir o risco de acidentes de trabalho no interior da empresa.
Uma memória extraordinária
Com a nova gestora, a forma de extracção da ardósia na Pedreira da Milhária também é radicalmente alterada: começa a ser explorada a céu aberto. Os poços das pedreiras são cobertos ainda nos anos 1980 e a exploração das jazidas passa a ser feita em sentido inverso, da superfície para o fundo.
A mudança permite-lhe reaproveitar pedreiras já esgotadas. Mas traz outras duas grandes vantagens: os mineiros deixam de trabalhar debaixo de terra, passando a retirar a ardósia numa cratera à superfície, e os blocos de pedra de várias toneladas em vez de serem içados são descarregados directamente para camiões, que descem até ao local da extracção.
“A minha mãe não tirou um curso superior, mas era inteligentíssima e estudava os assuntos a fundo”, explica Ana Isabel Teotónio Pereira, 60 anos, responsável pelas exportações da ELV.
Maria Eugénia controla toda a produção, pede opiniões e discute os assuntos. “Sabia os nomes e as funções dos empregados. Tinha uma memória extraordinária que lhe seria útil toda a vida”, justifica.
Já em pequena espantava a família com as suas capacidades. “Aprendeu a ler sozinha com três ou quatro anos”, continua Ana Isabel. “Os meus tios estudavam em casa e ela ficava debaixo da mesa a ouvir as lições dos irmãos mais velhos.”
É na casa da Foz que uma preceptora alemã lhe ensina a língua. Mais tarde falaria também inglês, italiano e francês, que se tornaram úteis no desenvolvimento dos negócios de exportação, já que 95% da ardósia que sai da pedreira vai para o estrangeiro.
Com o curso de piano do Conservatório do Porto e o sétimo ano no Colégio de Nossa Senhora do Rosário concluídos, sonha seguir Medicina, mas o pai, David Ribeiro da Silva, não considerou apropriado que a filha continuasse a estudar. Casa aos 24 anos com Manuel Nunes de Matos, empresário, filho do industrial Jorge Nunes de Matos. Os filhos nascem todos de seguida: Rui em 1949, Eugénia em 1950, depois Benedita em 1953, Teresa em 1954 e Ana Isabel dois anos mais tarde.
A família vive na enorme casa com 36 divisões na Rua do Breiner, que pertencia ao sogro e Maria Eugénia ajudava a gerir. Tinha uma agenda social intensa, jogava canasta e bridge e até participava em torneios. Vestia-se na Candidinha, a mais famosa costureira do Porto, que ia a Paris às colecções de alta-costura e trazia os modelos para Portugal, recorda a filha mais nova.
Mas a sua vida mudaria radicalmente após a morte do marido, com cancro, em Janeiro de 1961.
Uma empresária tardia
Aos 37 anos, viúva e com cinco filhos pequenos, atirar-se-ia aos negócios. Inicialmente dedica-se à distribuição de bebidas numa empresa herdada do marido, que tinha a representação da companhia Cockburn Smithies para o distrito do Porto.
Trabalha durante a semana e aos sábados. Faz contratos e vendas, sempre impecavelmente vestida pela Candidinha, recordam-na. E o negócio vai crescendo. Incompatibiliza-se então com o sócio do marido e extingue a sociedade.
É com o contrato com a Cockburn que funda, ainda na década de 1960, a Sociedade Comercial do Breiner. Assim que tenta registar a empresa, os serviços não a deixam colocar na firma o nome Breiner, o mesmo da rua onde tinha o escritório. Maria Eugénia não desarma. “Contou-me que se deslocou ao Ministério da Economia para resolver a situação. Ali falou com um funcionário e conseguiu a autorização que pretendia”, diz a investigadora da Universidade do Minho, que a entrevistou aos 82 anos por ser então a mulher com mais idade à frente de um conselho de administração nos registos da Associação Empresarial Portuguesa.
A sua determinação à frente da Sociedade Comercial do Breiner traz-lhe outros trunfos. Obtém o contrato para a distribuição da União das Adegas do Dão e das Águas do Cruzeiro para o Norte do país. E consegue também o exclusivo de distribuição de bebidas para o estádio das Antas.
Nessa altura já vive com os filhos na praia da Granja, onde gostava de passar férias e tinha comprado uma casa. Apesar de não guiar, vai todos os dias trabalhar de carro para o Porto. “A minha mãe ia de boleia com um morador na Granja que trabalhava na Drogaria Moura. Ele levava-nos a todos quando ia para o emprego de manhã e trazia-nos à noite”, recorda Rui.
A Sociedade do Breiner fecha em 1971, depois de problemas com o director de um dos contratos que representava. Até ao ano quente de 1974 Maria Eugénia dedica-se a investir na bolsa e é após a revolução e o fecho das bolsas de valores de Lisboa e do Porto que volta ao mercado das bebidas. Mas desta vez como viticultora e produtora de vinho do Porto.
É na Quinta da Fírvida, no Douro, que herda depois da morte da mãe, Maria da Glória, no final de 1973, que a empresária dá novo alento às vinhas, vendendo as uvas à Adega Cooperativa de Santa Marta de Penaguião.
Na ressaca da revolução de Abril e numa altura em que a produção de vinho está em baixa, muitas quintas no Douro mudam de mãos. E em 1978 Maria Eugénia agarra uma oportunidade para alargar o negócio.
Compra a Quinta dos Avidagos e começa a fazer o seu próprio vinho do Porto para as caves de Gaia. A estas juntaria depois a exploração de outras duas quintas no Douro: a do Torrão e a Quinta da Varanda, em Lamego, que pertenciam a um tio e das quais se torna herdeira, depois de uma disputa judicial com um irmão.
Aproveita depois o boom da produção de vinho tinto que resultou da atribuição da denominação de origem controlada (DOC) a todos os vinhos produzidos no Douro. E em 2001, além de Porto, começa a produzir vinho de mesa.
Hoje, a marca Quinta dos Avidagos tem vinho tinto, branco e rosé e continua a pertencer à família. “Vendemos 100 mil litros de Porto e contamos chegar este ano às 200 mil garrafas de vinho de mesa, 60% delas para exportação”, remata Rui Nunes de Matos, que, conjuntamente com as quatro irmãs, é proprietário da sociedade Quinta dos Avidagos, que explora as quatro quintas herdadas da mãe.
Dominar o mercado
A estratégia de expansão usada no Douro será replicada por Maria Eugénia nas pedreiras de ardósia. Depois das Lousas de Valongo, compra mais três empresas de extracção e venda de pedra na região. Para a professora da Universidade do Minho, “era uma mulher com uma visão a médio e longo prazo. Tinha uma concepção de negócio como algo que se vai fazendo, construindo”.
Em 1991, a empresária adquire a Companhia Portuguesa de Ardósias, que pertencia a uma empresa britânica de mesas de bilhar, a BCE Holdings. No ano seguinte, compra a Sociedade Lousífera do Outeiro aos ingleses da família Wall. Finalmente, em 1995, torna-se proprietária da Fonseca, Costa e Companhia Lda, controlada por um empresário holandês.
Maria Eugénia passa então a dominar mais de 15 hectares de área extractiva na Pedreira da Milhária e mais de 100 hectares ao longo da faixa de ardósia de Valongo. Na região, só a empresa Pereira Gomes, fundada na década de 1960, lhe ameaça o monopólio.
“Foi uma pessoa de acção, determinada e trabalhadora”, diz o advogado Fernando Aguiar Branco, pai do ex-ministro da Defesa, que esteve ao seu lado durante mais de três décadas como presidente da Assembleia Geral das Lousas. “Ouvia os outros antes de decidir e era sempre prudente nas decisões”, diz o jurista de 93 anos.
Outro advogado que a acompanhou nos negócios diz que a sua estratégia para as pedreiras teve mais uma importante virtude. “Com estas aquisições, foram resgatadas para mãos nacionais as empresas de ardósia em Valongo que tradicionalmente estavam na posse de estrangeiros”, salienta Timóteo Moreira, que ainda hoje representa empresas da família Nunes de Matos.
Na altura, já Maria Eugénia se instalara nos escritórios feitos de ardósia, junto à pedreira, onde chega sempre depois das dez horas com o motorista que a ia buscar à Granja. Tinha hábitos rígidos. Mal entrava, sentava-se à secretária e acendia um cigarro. Almoçava pontualmente às 13 horas, voltava a sentar-se a trabalhar e só se levantava às 17h, para regressar a casa.
Gostava de viajar e chegou a ir a uma feira ao Japão para promover a ardósia nacional, que hoje é exportada para países como França, Alemanha, Dinamarca ou Espanha. Mas quando se generaliza a proibição de fumar a bordo, em 2000, recusa-se a voltar a andar de avião.
Maria Emília Pereira Fernandes não tem dúvidas de que “foi uma mulher única” no seu tempo, porque “exerceu uma liderança efectiva num negócio muito masculino e masculinizado”. A empresária, conclui a investigadora, “não estava destinada a este papel. Foi forçada e exercê-lo, mas fê-lo com gosto”.
Mesmo depois de aos 82 anos lhe diagnosticarem um cancro nos pulmões, continuou a trabalhar todos os dias na empresa de ardósias “e ia fazer os tratamentos sem dizer a ninguém”, recorda Ana Isabel.
Maria Eugénia só deixou de ir aos escritórios de Valongo aos 86 anos, um ano antes de morrer, em 2011. As empresas de ardósia e as quintas de produção de vinho continuam hoje nas mãos dos cinco filhos. E o seu legado promete continuar na próxima geração: dois dos seus 12 netos trabalham nas empresas da avó.
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