A solidão é o que resta da impossibilidade de partir
Ao terceiro livro foi de vez: o islandês Jón Kalman Stefánsson veio a Portugal para participar no Folio, festival literário de Óbidos. Depois de uma sessão animada pelo humor e ironia, entrevistámo-lo já num outro registo.
O islandês Jón Kalman Stefánsson (n. 1963) escreveu uma trilogia – Paraíso e Inferno (2013), A Tristeza dos Anjos (2014), e agora O Coração do Homem, todos publicados pela Cavalo de Ferro – e cuja acção decorre em vários lugares da costa islandesa, em finais do século XIX, em pequenas comunidades piscatórias na orla de uma baía que, dizem, é “tão larga que a vida não a consegue atravessar”. O frio, o gelo, a escuridão, as tempestades sombrias, o vento e o mar árctico, parecem acompanhar todos os pensamentos das personagens. Como se ao lado dos peixes e dos companheiros afogados que lhes habitam os sonhos, e lhes acenam na madrugada com barbatanas em vez de mãos, houvesse sempre lugar para um contrapeso que os prendesse à cruel realidade.
“Não escrevi um retrato histórico”, diz Stefánsson ao Ipsilon. “Isso não me interessava, mas sim perceber o coração dos homens ontem e hoje.” Vivem em aldeias submersas na miséria, na fome, nas doenças, nas duríssimas condições climáticas – lugares onde tudo parece ter sido negado aos habitantes, menos o amargo sofrimento. Como se Stefánsson quisesse aventurar-se em descobrir quanto sofrimento é que afinal o coração humano consegue suportar, e fá-lo amparado pelas vozes fantasmagóricas dos mortos. Escrever sobre quão difícil é estar vivo.
A procura de sentido para a ideia da existência de um Deus bom e todo-poderoso que permite o sofrimento dos homens, quando lhe seria tão fácil evitá-lo, foi a agulha da bússola que guiou o autor islandês na escrita da trilogia cuja publicação agora termina (os romances podem ser lidos de maneira independente, apesar de se continuarem cronologicamente). Mais do que histórias em que os gritos dos mortos se misturam com os dos vivos, compondo um coro trágico que não cessa de evocar a inevitável desolação da existência, a irremediável solidão dos homens, esta trilogia é sobretudo um hino ao poder redentor das palavras e também da amizade. Toda a trilogia parece querer sublinhar esse poder salvífico da palavra.
Jón Kalman Stefánsson confessa ter começado a escrever aos 15 anos. Teve de escrever uma história na escola, e “alguma coisa aconteceu”, diz, “foi como se me estivesse a encontrar comigo pela primeira vez. Depois nunca mais parei, e fui-me aventurando durante muito tempo pela poesia. Qualquer coisa acontece quando se cria. Antes as pessoas acreditavam que eram os deuses quem falava através dos poemas. A magia e a poesia são quase a mesma coisa.” Mas agora escreve romances, sempre à mão. Escreveu onze. “Acho que escrevo romances porque deixei de ser capaz de escrever poesia”, confessa, “mas a técnica que usava na escrita dos poemas uso-a agora ao escrever prosa.”
Solidão
A prosa de Stefánsson, bem como de outros autores islandeses, carrega toda uma tradição que remonta às rímur (elemento essencial da poesia popular de tradição oral, cujos autores são camponeses) e às célebres sagas medievais. Ele cristaliza a longa tradição nórdica ao mesmo tempo que lhe inventa novas roupagens, fundindo, para isso, elementos da mitologia nórdica com outros de carácter contemporâneo. Os romances da trilogia ambientam-se naquela singular atmosfera de elementos naturais ferozes e opressivos, de uma Natureza não subjugada pelo Homem (de fogo e de vento, de gelo e de rios indomáveis), tão característica da Islândia, e que ao mesmo tempo nos remete sempre para a memória lírica do mito, para um tempo dominado por uma sombria e avassaladora solidão onde ecoam as sagas e os seus heróis trágicos. Essa solidão é um elemento essencial em O Coração do Homem (bem como nos outros dois volumes da trilogia). Jón Kalman Stefánsson concorda e justifica: “Durante séculos não se conseguia sair da ilha, nem chegar, desde Outubro a Março, por causa do gelo os barcos nem se aproximavam. A solidão é o que nos restou do conflito entre o desejo de partir e a impossibilidade de o fazer. Por isso os islandeses inventaram os elfos, e outros seres fantásticos para contarem histórias uns aos outros e sobreviverem aos seis meses de escuridão de Inverno árctico… quando não havia electricidade (risos). Agora isso chama-se ‘realismo mágico’, que acaba por ser a maneira mais lógica de pensarmos, uma maneira desesperada de tentar perceber o mundo.”
Sobre influências na sua escrita, e mencionando apenas o nome de Knut Hamsun – que considera o maior escritor do século XX – diz: “Todo o escritor é uma ilha rodeado pelo oceano da literatura que o influencia. É difícil falar de influências porque muitas vezes elas são diferidas. Somos influenciados por escritores que nunca lemos porque estes já influenciaram aqueles que estamos a ler.”
O volume agora publicado, O Coração do Homem, poderia ser lido como uma espécie de manifesto (em forma de romance) sobre a fragilidade da vida, e também sobre como por vezes permitimos que a vida estagne, que se torne mais dificil. “O inferno é estar morto e apercebermo-nos de que não nos importámos com a vida enquanto tivemos a oportunidade de o fazer.”
O ‘rapaz’ continua a ser a personagem principal, e outras chegam dos dois livros anteriores, como o carteiro Jens, ou o capitão cego Holbein. A história inicia-se com uma sombria tempestade que apanha três homens que carregam um esquife para ser enterrado. Dois salvam-se e são tratados em casa do médico da aldeia próxima. A vida parece continuar a dar ao rapaz “grandes trabalhos para o enxovalhar”. Ao longo da trilogia o rapaz nunca é nomeado. Stefánsson conta que se apercebeu do facto quando já escrevera dezenas de páginas. Mas se ele “não tivesse um nome, teria todos os nomes, e assim ficou.”
O leitor segue a tristeza e privação, a vida e a morte, acompanhando as descobertas do rapaz, e os três livros podem ser entendidos como uma espécie de trilogia de “romances de formação”, mas que ao mesmo tempo se misturam com “livros de viagem” através de uma natureza hostil, de enormes paisagens desoladas, austeras e terrivelmente frias, que os homens enfrentam rudemente de maneira quase obstinada até à exaustão.
Parece não se passar um dia nas vidas daqueles homens em que não ouçam o mar, o mar imensamente pesado, uma “criatura gigantesca que respira”. A relação deles com os elementos naturais é narrada e descrita de forma magistral; há histórias que se cruzam, personagens que chegam e saem carregando os seus fracassos e desejos, vozes de mortos que entram pela narrativa adentro, o que evidencia ainda mais a linguagem poética de Stefánsson. Com o autor islandês atravessamos o desespero silencioso da condição humana, numa despudorada cartografia afectiva das nossas angústias. E também de muitos dos nossos demónios.
Para Stefánsson um escritor deve escrever sempre como se fosse o último texto. Deve procurar dar um sentido ao mundo e pôr-se todo naquilo que escreve. E cabe ao leitor tornar vivo aquilo que lê. A literatura é o lugar onde escritor e leitor se encontram. Diz Stefánsson: “A força de um poema é a mesma força com que Napoleão conquistou a Rússia, disse um poeta polaco. Mas é o leitor quem liberta essa força. A literatura só tem poder se tiver leitores que libertem a sua força.”
Sobre a recente divulgação da literatura nórdica fora da Escandinávia, que parece surgir como um ‘efeito colateral’ da saga Milleniumm, de Stieg Larsen, e depois de Stefánsson se ter mostrado surpreendido por ser lido em Portugal, quisemos saber como via a moda dos policiais nórdicos, em especial escritos por autores islandeses, sendo a Islândia um dos países do mundo com mais baixa taxa de criminalidade. Respondeu com humor e ironia: “Os nórdicos são poucos, não se podem matar uns aos outros como noutros lugares. Poderíamos desaparecer. Mas somos humanos, precisamos de matar. Então matamos pessoas nos livros, tal como noutros lugares se matam pessoas nas ruas. Mas é também uma maneira de assustar os turistas, que na Islândia agora são aos milhões.”