“Comemoradores” da República
No seu discurso, tudo o indica escrito pelo seu próprio punho, o professor Marcelo Rebelo de Sousa pressupôs consumada a identificação entre a Democracia Constitucional e a República.
“Os portugueses são maus comemoradores”, disse o antigo Presidente Jorge Sampaio ontem na Praça do Município de Lisboa. Referia-se à ausência de participação popular nas comemorações do 5 de Outubro, após as quais foi interpelado por um jornalista. A ausência da dimensão cívica da comemoração prender-se-á, em primeiro lugar, com a fragilidade da cultura histórica, transversal à sociedade portuguesa, agravada entre as classes dirigentes que parecem viver num espécie de eterno presente. Hobsbawm escreveu que a destruição da memória histórica era um dos fenómenos mais lúgrubes do nosso tempo.
Mas há factores particulares que dificultaram a sobrevivência da memória da República de 1910. A ditadura e o autoritarismo moveram-lhe um processo sistemático de segmentação e descrédito. Os construtores da democracia encararam-na com incomodidade, quando não com desconfiança ou mesmo hostilidade. E, de facto, o regime instituído pela Constituição de 1976 não foi estruturado, em nenhum aspecto fundamental do modelo de governo, sob inspiração da Constituição de 1911: nem na orgânica do processo eleitoral, nem no método de eleição do Presidente da República, nem na opção unicameral do Parlamento, nem na articulação dos órgãos de poder soberano. Os pais fundadores da Democracia pós-1974 foi noutra experiência e noutros textos que procuraram inspiração.
Como se explica então a relativa unanimidade do discurso político – bem expressa nas declarações de ontem – em torno da matriz republicana do actual regime?
No seu discurso, tudo o indica escrito pelo seu próprio punho, o professor Marcelo Rebelo de Sousa pressupôs consumada a identificação entre a Democracia Constitucional e a República. Deu exemplos, tirados dos princípios do republicanismo: a limitação dos mandatos, a legitimação pelo voto, a independência do poder político. A apelou ao revigoramento de uma ética republicana como combate à desconfiança ou desafecção dos cidadãos em relação à democracia.
Em suma, crise da democracia reaproximou, mais do que a memória histórica, a Democracia da República e dos seus valores.
Uma monarquia podia viver de uma tradição e uma aristocracia da vontade de poder. Uma República só pode viver da dedicação dos seus cidadãos porque é feita por eles. Isso faz dela o mais poderoso elemento de coesão nacional, face à crise. E, quem sabe, se não será outra vez no quadro do Estado-Nação, onde o republicanismo se armou ideologicamente, que não redescobriremos a res publica, sem o que não saberemos desafiar a incerteza?
Historiador. Chefe da Casa Civil do antigo Presidente da República Jorge Sampaio