O piano de Vijay é jazz mas também é hip-hop

Elevado nos últimos anos ao estatuto de um dos fundamentais nomes do jazz mundial, Vijay Iyer toca esta sexta-feira em trio na Culturgest. Momento certo para ouvir um pianista que reclama tanto Thelonious Monk como Jay Dilla para a música que faz.

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FOTO: Bart Babinski

A história, lenda ou não, é conhecida. Quando Miles Davis anunciou à sua banda que iam gravar Human nature, de Michael Jackson, o baterista Al Foster fez a trouxa, abandonou a sessão de estúdio e nunca mais tocou com o trompetista. Para Davis, aquele era apenas mais um standard, igual a qualquer outro retirado do cancioneiro norte-americano - no álbum You’re Under Arrest, resgataria não apenas Human nature mas também Time after time, de Cindy Lauper, ao reportório pop. Passados quase 30 anos, o pianista indo-americano Vijay Iyer gravaria também a sua versão da balada funk Human nature no álbum em trio (Accelerando, 2012) que lhe valeu a inédita distinção pela Downbeat enquanto Melhor Artista, Pianista, Pequena Formação, Álbum e Compositor Revelação do ano.

Para Iyer, a justificação é semelhante à de Davis. “Se olharmos para os três álbuns do trio”, diz ao Ípsilon, “há muitas referências que não pertencem às canções da Broadway ou aos chamados standards de jazz clássicos.” E tanto aderem à elasticidade do seu conceito Jackson ou Stevie Wonder, como M.I.A. ou Flying Lotus. Confesso fã de Flying Lotus e J Dilla, Iyer importa para a formação do clássico trio de piano no jazz uma efervescência rítmica mais própria do hip-hop, interessado que está em explorar uma porosidade musical que não abdica de reclamar uma clara inscrição na linguagem dos trios de Bill Evans, Duke Ellington ou Bud Powell para integrar linguagens mais sintonizadas com o presente. “Não é assim tão estranho estar atento a outras formas de abordar o ritmo”, defende. “Quando se ouve alguns destes produtores e beat makers de música electrónica, eles também olham para toda essa tradição; o Dilla tem um conhecimento enciclopédico da música afro-americana do século XX.”

No essencial, garante Vijay Iyer, a secção rítmica que gravou consigo Historicity, Accelerando e Break Stuff ou que esta sexta-feira o acompanhará em Lisboa, na Culturgest (Stephan Crump, contrabaixo, Justin Brown, bateria), não difere grandemente de uma secção rítmica que acompanhasse Miles Davis, James Brown ou Michael Jackson, ou que seja criada numa drum machine ou num computador. “Andam todas atrás do mesmo: criar um certo sentido de movimento.”

Pode dizer-se que é também atrás de movimento que Vijay Iyer anda. Não apenas ao intitular o seu segundo álbum Accelerando e pedindo de empréstimo conceitos da Matemática e da Física (disciplinas em que se formou em Yale), mas sobretudo garantindo uma circulação total entre músicas de diferentes proveniências. Iyer distancia-se da forma como as lojas virtuais (e físicas) organizam a sua oferta musical de acordo com géneros. “É uma forma de dirigir a nossa atenção e de criar fronteiras artificiais”, reclama. “E convencemo-nos que não podemos aceder a algo que se encontra do outro lado dessa fronteira. Mas as coisas não são tão fracturadas quando a indústria musical nos quer fazer crer.”

Para o pianista, interessa-lhe estar “vivo e em movimento”, andar pela cidade (Nova Iorque) atento a todos os sons que possam existir na música das suas ruas, e não recusando ideias ou sugestões melódicas que possam ser provenientes de lugares mais inesperados.

ECM, MacArthur e Harvard

A universalidade das propostas musicais de Iyer é exemplar nos primeiros quatro álbuns que o pianista e compositor lançou pela ECM, desde que assinou pela editora alemã em 2014: o disco em trio Break Stuff, considerado como uma revolucionária abordagem ao já muito estafado formato de piano, contrabaixo e bateria; Mutations, dividido entre peças a solo e uma longa suite para quarteto de cordas, piano e electrónica, revelador de uma outra ambição do músico; a banda sonora para o filme Radhe Radhe: Rites of Holi, em que Vijay se dedica a criar pontes com a música das duas origens (os pais, indianos, emigraram para os Estados Unidos na década de 60); e o sublime disco em duo com o trompetista Wadada Leo Smith A Cosmic Rhythm with Each Stroke, estimulado pela obra da artista plástica Nasreen Mohamedi - “o Wadada adorou a ideia, depois de conhecer a obra, a vida, os escritos e o espírito dela, e tornou-se numa inspiração para o álbum”, diz Vijay.

Se a paleta de interesses musicais do pianista parece quase infinita e alinhada com uma editora em que - pelo menos - o jazz, a música clássica e as músicas locais de várias geografias coexistem sem quaisquer sobressaltos, tem sido sobretudo a sua fidelidade ao modelo do trio a conquistar a crítica. Talvez porque já não se espera um discurso agitador de um modelo repetido até à exaustão. Sobretudo quando Vijay, que num só ano assinou pela ECM, ganhou a prestigiada bolsa da MacArthur Foundation e foi convidado para leccionar em Harvard, apenas aos 23 anos decidiu abandonar a matemática e a física para investir a sério na música. Foi praticamente em trio que começou a mostrar-se, ainda no final dos anos 80, inspirado por discos como Money Jungle (Duke Ellington, Charles Mingus e Max Roach), Live at the Pershing & the Spotlight Club (Ahmad Jamal) ou Thelonious Monk Plays Durke Ellington.

“Os constrangimentos podem ser libertadores”, diz, tomando o trio como exemplo. “No sentido em que, por vezes, ao limitarmos as nossas opções acabamos por ir muito mais fundo. Ter uma moldura e um contexto claro ajuda a tomar decisões.” E decisões, no seu caso, significa esboçar uma estratégia de ataque mínima, “um equilíbrio entre aquilo que foi preparado e a disponibilidade para aquilo que cada momento revela”. Daí que Vijay Iyer esclareça que, aos 44 anos e com uma robusta discografia de 21 álbuns, nunca avança para um álbum ou um concerto com um plano-mestre. Leva consigo vários micro-planos, uma série de fragmentos compostos, usados para estabelecer um conjunto de pontos de referências e regras básicas. Um pouco como desenhar um mapa com locais de passagem obrigatórios, mas em que os caminhos têm de ser improvisados na hora.

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