Os homens e a lascívia
Estamos no circuito das “vaquejadas”, o equivalente Nordestino dos “rodeos” americanos, estamos entre bois e manequins, estamos entre o real e o feérico – o sexo é o elemento que faz a ligação neste filme de estranho poder, Boi Néon.
Objecto estranho, este Boi Néon, sempre a jogar com procedimentos contraditórios, maioritariamente silencioso para depois alguma coisa nos explodir na cara, cheio de elipses e não-ditos que depois se “sublimam” nalgumas das cenas de sexo mais explícitas e, como dizer, “inevitáveis” (no sentido em que não há como escapar delas) dos últimos tempos. Mas é o procedimento nuclear do filme, este investimento numa dimensão muito física, muito descritiva e muito ligada à terra, rimada aliás pelos movimentos de câmara, quase sempre laterais, como se não houvesse para onde subir e vencer a força da gravidade, entrecortada por breves interrupções feéricas (o “néon”), espécie de suspensão do “realismo” que vem ao encontro dos anseios e dos suspiros das personagens – e de certa forma, o sexo é o elemento que faz a ligação entre esses dois planos.
Estamos no circuito das “vaquejadas”, a modos que o equivalente Nordestino dos rodeos americanos, e esse circuito, como o de qualquer circo, é itinerante, sempre a montar e desmontar a tenda à medida que avança de povoação em povoação. Seguimos um trio de personagens que trabalham nos bastidores, um homem e uma mulher que às vezes se comportam como um casal que se calhar já foram (é bastante bonita a impressão de intimidade “des-erotizada” do plano em que ele lhe tira as medidas para fazer uma fatiota), e a filha dela, prestes a entrar na adolescência e já com os primeiros indícios (e birras) da proverbial “idade do armário”). O trabalho dele é preparar os animais, os bois e os cavalos que serão o centro do espectáculo, mas a sua aspiração é mais sofisticada, sonha em ser estilista numa grande cidade brasileira. Enquanto isso não acontece, vai fazendo a mão a desenhar as indumentárias que a mulher usa nos sideshows nocturnos das “vaquejadas”, quando a arena fica parecida com uma discoteca de província, com música de dança duvidosa, bois fluorescentes, e ela dança vestida com uma cabeça de boi, algures entre o mau gosto de um cabaret manhoso e a elevação mística de uma divindade egípcia.
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Bois e manequins, como revela talvez o melhor plano do filme (o travelling lateral sobre os despojos do espectáculo da noite anterior, o chão cheio de papelinhos coloridos, e depois uma série de manequins tombados), a moda como coisa que está “além” – há uma cena muito divertida, quando o protagonista “arruína” a revista porno de um colega seu, pintando indumentárias sobre as fotos das mulheres despidas, talvez porque isso, o porno, o sexo, seja ainda demasiado “real”. Não são os “lusty men” de Nick Ray, mas são, à sua maneira, igualmente “lusty”, e quase tão lacónicos como Robert Mitchum: as cenas de grupo, quando as personagens se misturam com figurantes que não chegam a ser personagens, e conversam por exemplo sobre as diferenças entre leite de vaca e leite de burra, têm aquele tom misteriosamente cativante que costuma acontecer quando um filme tão dominado como este abre a porta a uma impressão de surpresa e espontaneidade. Não chega a ser “etnográfico”, porque sentimos sempre que os “códigos” de Mascaro se sobrepõem aos “códigos” da realidade descrita no seu filme. Mas é essa sobreposição, com a folga suficiente para deixar entrar a fantasia, para criar um “buraco” que permanece por preencher e fica sempre, de maneira àspera, refractário às explicações psicologizantes, que instaura o estranho poder de Boi Néon.