Os relatos prévios à entrada na Transnístria eram demovedores. Episódios de tráfico de armas, de órgãos humanos, uma polícia livre para torturar arbitrariamente, corpos eternamente perdidos nas águas do rio Dniestre, subornos obrigatórios a guardas na fronteira…
A hesitação em penetrar neste “far-west” foi alguma. Mas cedo os relatos se revelaram tão exóticos quanto o próprio território. Uma “Eurodisney” temática da União Soviética, um híbrido perdido no tempo, onde tudo e todos parecem renegar a ideia de que a foice e o martelo já caíram Kremlin abaixo.
Na Transnístria, a bandeira nacional ainda ostenta os antigos símbolos da URSS, Lenine olha o horizonte com esperança, numa imensa estátua em frente ao Parlamento e Yuri Gagarin é um herói incontestado da “Guerra das Estrelas”.
Por todo o lado, tanques soviéticos, aviões de guerra, estrelas de cinco pontas que encabeçam edifícios e nomes de ruas que celebram grandes vitórias da Revolução de 1917 englobam qualquer visitante numa redoma, numa viagem no tempo, aos idos de um tempo onde o Muro de Berlim estava ainda intacto.
Passar por uma fronteira que não existe
O conflito entre a Transnístria e a Moldávia estende-se desde 1992, altura em que uma curta guerra civil foi interrompida com a ajuda do 14.º exército russo, lá instalado, aos revoltosos do lado de lá do Dniestre. Os soldados russos permaneceram, alguns deles quase disfarçados de capacetes azuis da ONU, a velar por um território que, ao contrário da Moldávia, não tem qualquer pretensão em juntar-se à União Europeia, mas antes voltar a fazer parte da Mãe Rússia.
E o que tem Nicholas Cage a ver com a Transnístria? No filme “Lord of War”, encarna Yuri Orlov, uma personagem inspirada em Viktor Bout, lendário traficante de armas que obtém a maior parte do seu arsenal bélico desviando-o, precisamente, do 14.º exército russo, na confusão do pós-queda do império soviético.
Chegar à Transnístria é muito mais fácil do que parece. É recomendável um guia desde a capital da Moldávia, Chisinau, até à capital da Transnístria, Tiraspol. A opção pela informal Marisha revelou-se acertada. A passagem pela tal fronteira que não é reconhecida por mais ninguém no mundo foi bastante mais tranquila do que o previsto e nem houve guardas a vasculharem mochilas nem ninguém encantado com possíveis euros.
Um papel preenchido com dados pessoais, que deve ser guardado até ao fim da estadia, uma conversa em russo com a guia Tanya, que se percebe perfeitamente ser sobre o que levará alguém a querer ali entrar de livre vontade, e já está. Quem quiser ficar mais do que dez horas no “país”, deve dirigir-se ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, para legalizar a sua estadia.
Lá dentro, depois de um tour muito programado aos principais pontos de interesse deste lugar onde, aconteça o que acontecer, não terá qualquer representação diplomática, um almoço no Andy’s Pizza, que poderia bem estar numa qualquer esquina de Nova Iorque.
Quando estávamos prestes a regressar, juntou-se a nós um rapaz, de nome Oleg, que insistia em contrariar as informações que a guia nos fornecia. Imaginámos que pudesse ser um espião russo, um agente do KGB, alguém que nos levasse para uma cadeira de interrogatório sobre a qual nos tinham advertido tantos blogs e relatos sobre a Transnístria.
Mas não. Era apenas o Oleg, técnico informático do Museu Nacional de Tiraspol, afoito para conhecer estrangeiros e que muito convictamente nos informou de que já tinha estado em Portugal, “mas na Europa ainda não.” Na Transnístria, é preciso encarar a realidade com uma certa dose de distanciamento.