O espaço público das cidades está em constante mutação. Renova-se e adapta-se à medida que são criadas novas necessidades, fruto de novos hábitos e rotinas levadas a cabo por quem nelas habita ou por quem as visita. A Rua das Flores, no coração do Porto, tradicionalmente conhecida pelos armazéns de têxteis, retrosarias ou cutelarias, é exemplo disso. Durante anos deixada ao abandono, ganhou um novo fôlego, há um par de anos para cá depois da transição para rua pedonal, e tornou-se numa das artérias com maior afluência de locais e turistas que visitam e procuram os novos espaços comerciais que surgiram em massa nesta nova versão das Flores. Renovação e adaptação são conceitos também associados à arte. Face à dificuldade em se posicionarem, com regularidade, debaixo do holofote de um palco ou de uma sala, há uma série de artistas que encontraram esse lugar nesta rua, estrategicamente localizada entre a Estação de São Bento e a Ribeira. 

Ainda da parte da manhã, Sérgio Henrique, que encontrou o seu espaço nas Flores em Fevereiro do ano passado, é um dos primeiros artistas “residentes” a chegar. Toca handpan, um idiofone da categoria dos instrumentos de percussão, que ecoa pela rua, agora um pouco menos, desde que a autarquia proibiu o uso de amplificação. Marca o tempo com um chocalho, enquanto mostra o reportório original para uma pequena plateia que se junta para assistir. Essa plateia é uma das várias que se vai juntando em torno do músico, durante o tempo em que lá permanece durante o dia, mais ou menos, seguindo uma espécie de lógica de fenómeno de imitação, mal uma primeira pessoa se aproxime para assistir. O relógio é marcado pela sombra, que quando é substituída pelo sol dá o sinal de saída para o almoço (já à hora do lanche), altura em que dispensou uns minutos para falar com o PÚBLICO. “Por hoje está feito”, afirma em tom de missão cumprida.

Sérgio, 32 anos, tem formação de piano. Começou a tocar quando era ainda uma criança. De uma forma natural foi explorando outros instrumentos até chegar ao handpan que aprendeu a tocar de forma autodidacta para se dedicar à percussão árabe. Faz parte de um duo e de um quinteto de fusão que se enquadra no espectro das músicas do mundo. Não é género que seja rentável por “estas bandas”, como explica, por isso, se queria continuar a viver como músico, teria que encontrar uma solução. Encontrou. Foi para a rua tocar. É um passo que diz exigir alguma reflexão e estofo. “Conheço músicos de conservatório que quando dão pela primeira vez esse passo chegam às lágrimas”, refere. No seu caso não foi assim tão dramático. Encara a questão com naturalidade e assume o palco da rua como outro qualquer, com um factor extra que é a liberdade: “Sinto-me mais realizado do que alguns amigos músicos que estão a dar aulas. Têm um patrão e continuam a ganhar mal”. Não sente qualquer estigma entre pares por ter escolhido a rua ou pelo menos diz não pensar nisso. Não o afecta.

Prefere não falar em números quando questionado sobre quanto pode ganhar um músico por dia. Diz apenas que, pelo menos no seu caso, é possível sobreviver com o suor do seu trabalho. Embora relativize, tendo em conta que essa questão está sempre dependente do estilo de vida e dos gastos que cada um tem. Durante o cerca de ano e meio em que toca na rua foi percebendo que o público pode variar de acordo com a estação do ano. “No Verão, apesar de haver mais gente a passar e a assistir, é a altura em que ganho menos”, explica dizendo que o nível sócio-cultural e também económico dos turistas (franja que mais contribui) é mais baixo nessa altura do que no resto do ano.  

Estar quase todos os dias na rua, durante uma série de horas seguidas é também uma oportunidade e uma porta aberta para poder experimentar e desenvolver a técnica: “O sonho de qualquer músico é poder ter disponibilidade para ensaiar o maior número de horas possíveis por dia. Eu acabo por ter essa oportunidade”, refere. Para Sérgio, que toca sobretudo de improviso, o tempo que passa na rua permitiu-lhe crescer enquanto instrumentista e a ganhar competências que não tinha.

Um pouco mais abaixo, em direcção ao Largo de São Domingos, está Álvaro Martinez de 52 anos, que toca guitarra clássica. Partilha da mesma opinião de Sérgio: “Aqui tenho oportunidade para praticar e desenvolver a minha técnica”.  Álvaro acumula uma vasta experiência musical. O primeiro contacto com a guitarra clássica deu-se aos 13 anos, quando começou a aprender a tocar. Tem formação académica no instrumento em questão e leccionou a disciplina de Educação Musical no ensino básico. Fez parte de algumas bandas de rock desde os anos 1980, enquanto “metia uma perninha” em alguns grupos de música de baile: “Em Portugal, para os músicos, sempre houve mais oportunidades a nível financeiro neste estilo de música”, afirma.

Mais recentemente surgiram alguns contratempos que o levaram a optar por tocar na rua. Face a algumas dificuldades financeiras, escolheu a Rua das Flores, quando um dia, em passagem, deu conta do movimento de pessoas que existia e da presença de artistas de várias áreas que conseguiam captar a atenção dos transeuntes. Em Março, tomou pela primeira vez a iniciativa e estreou-se nas Flores. Apesar de ter tido como maior motivação um momento de maior fragilidade financeira, recusa-se a perpetuar a imagem estereotipada do “artista de rua pedinte”. “Cá não há grande tradição de artistas de rua, mas noutras cidades internacionais são vistos como outro artista qualquer”, afirma, acrescentando que “finalmente” as coisas estão a mudar. Contudo, diz que ainda há que separar algum “trigo do joio”, tendo em conta que diz haver quem se apresente na rua sem estar preparado: “É preciso encarar esta actividade com seriedade. O que se pede é que no mínimo se ensaie o reportório”. De qualquer forma acredita que há lugar para todos. Quem se encarrega de fazer essa triagem acaba por ser o público, que, na rua, diz ser “implacável”.           

Na Rua das Flores não estão só músicos. Dos cerca de uma dezena de artistas, quase todos há pouco tempo na rua, que vão flutuando pela artéria com mais regularidade, há quem trabalhe com teatro de marionetas, artes circenses ou desenho, como é o caso de Vítor Costa. Nascido no Brasil, arquitecto de formação e profissão, ocupa as horas livres que tem a desenhar na rua. Estudou arquitectura no Porto, onde se sente em casa, e há quatro anos voltou ao Brasil, onde esteve a trabalhar num gabinete de arquitectura, até Fevereiro deste ano, altura em que regressou à Invicta, onde ainda trabalha como arquitecto num gabinete que co-fundou. Vítor desenha paisagens, ruas ou elementos icónicos da cidade. Ainda no Brasil, “talvez com saudades de casa, desenhei um mural alusivo ao Porto na parede da minha sala. Quando regressei pensei que podia dar seguimento a essa actividade”. Usa apenas uma caneta e um bloco de folhas. Os desenhos são quase todos a preto e branco ou em sépia. Nalguns casos conjuga também outro elemento - a talha dourada - como é o caso de uma paisagem da Ribeira que faz parte do seu conjunto de trabalhos, que é usada para cobrir o rio. O trabalho que faz na rua já lhe garantiu várias encomendas por parte de alguns estabelecimentos, inclusivamente, situados na própria rua onde desenha. Para poder estar mais à vontade enquanto está na rua, já tentou tirar uma licença. No entanto, no Porto não há licenças para artistas de rua. A autarquia, questionada pelo PÚBLICO sobre o assunto, não conseguiu dar uma resposta até ao fecho da edição.

Comerciantes dividem-se

De uma forma geral a presença dos artistas de rua é bem vista pelos comerciantes das Flores. Há quem parta do princípio de que podem ser uma mais valia para o comércio por entenderem ser peça fundamental para a animação da rua, o que poderá funcionar como factor de atracção de mais gente. Acreditam que os turistas que ocupam as esplanadas gostam da animação que é trazida e, de certa forma, apoiam a ideia de a rua ser associada às artes.

Na maior parte dos casos os artistas têm uma boa relação entre eles e com os lojistas, acabando por ser eles mesmos clientes dos estabelecimentos da rua. Tanto artistas como comerciantes dizem haver respeito mútuo entre todos, salvo raras excepções.

São essas excepções que não agradam a alguns comerciantes, que não convivem tão bem com a presença de alguns elementos. Nestes casos, fazem uma distinção entre artistas de rua e pessoas que consideram não cumprir os requisitos para o ser. No entanto, há quem reconheça que esse é um dos riscos inerentes a uma actividade difícil de legislar e na generalidade acreditam que é preferível assumir esse risco do que afastar todos os outros que consideram dar um colorido especial às Flores.