O melhor da América na esquadra de Hill Street
A Balada de Hill Street nasceu de um pedido a Steven Bochco para escrever mais uma série de polícias.
A imagem exterior é a de uma esquadra real em Chicago. As cenas de rua foram filmadas em Los Angeles. Mas a série passa-se numa cidade imaginária e retrata sem nomear uma parte da América dos anos 1980, com os seus pequenos e grandes criminosos: os que o são por necessidade ou por ganância.
A Balada de Hill Street nasceu de um pedido a Steven Bochco para escrever mais uma série de polícias. Ele aceitou mas apenas porque os produtores concordaram em como esta não seria apenas mais uma para acrescentar à lista de séries do género que já escrevera. Bochco recebeu carta branca e liberdade criativa e usou-a não apenas no conteúdo, mas na forma, em planos contínuos ou de câmara ao ombro, que de tão próximos das personagens revelam as imperfeições que vão dentro delas, e tornam natural cada reencontro com o espectador no ecrã.
Pela simplicidade, coerência e eficácia com que as histórias são contadas ao longo dos mais de 140 episódios das sete temporadas da série que passou nos Estados Unidos entre 1981 e 1987, A Balada de Hill Street ficou para sempre connosco: pela lealdade que une colegas, no trabalho e na vida, pelo respeito para com o cidadão desprotegido e o desprezo por corruptos e criminosos sem respeito pela vida humana. (“Não podemos salvar o mundo”, diz o agente Andy Renko. “Nem melhorá-lo”, diz com desalento a advogada Joyce Davenport. Porém, todos os dias é o que tentam fazer na esquadra de Hill Street.)
Pela música de Mike Post na balada do genérico ao som da qual acreditamos que quem no elenco vemos a sorrir são verdadeiros polícias, e não actores. São autênticos, e um espelho daquilo que gostaríamos que o mundo fosse. Ou pode ser? É uma das reflexões deixada por esta série premiada com dezenas de Emmys e Globos de Ouro, de criação e interpretação, que passava semanalmente na RTP 1 nos anos 1980, e que a RTP Memória recuperou na década de 2000, diariamente.
O professor de televisão Robert Thompson, num artigo no Washington Post, em 2006, escrevia que "A Balada de Hill Street começou a mudar a televisão há 25 anos” e citava a escritora Joyce Carol Oates que, muitos anos antes, resumira na perfeição a singularidade desta série, ao dizer: “É uma das únicas séries de televisão actuais que conseguem ser emocionais e intelectualmente provocadoras, tal como um bom livro.”
Os maus aqui não são os polícias, que também não são totalmente bons, mas são quem dá o melhor exemplo, numa sociedade quase impiedosa, dividida por questões de raça ou de classe. São pelo menos melhores que empresários ou governantes que se deixam comprar, melhor que outros polícias que se deixam, esses sim, corromper. Guardam as suas forças para os outros. Nas suas fragilidades, são grandes heróis de feitos desconhecidos.
Sejam eles agentes de farda ou à paisana, detectives, sargentos, tenentes ou o próprio comandante da esquadra, o respeitado capitão Frank Furillo, que também reconhece quando erra; sejam eles mais calmos ou intempestivos. Sejam eles polícias à secretária, como o agente Leo Schnitz que acompanha um toxicodependente detido na esquadra. Nas suas visitas aos calabouços, é com o olhar que quer agarrá-lo à vida. “Tu vais ficar bem. Vais conseguir. Já estás no teu 53.º dia.”
Mais do que retratar uma profissão de risco, A Balada de Hill Street mostra uma profissão com custos, mas preferível a “uma profissão sem nenhuma consequência humana” – nas palavras da muito dedicada Joyce Davenport naquilo que pode ser entendido como uma referência à sua profissão de advogada oficiosa mas também à de polícia.
Muito acontece na rua, mas muito se passa no ambiente intimista dos gabinetes ou corredores da esquadra e nos carros durante as rondas. A Balada de Hill Street tem humor e realismo, mas também melancolia. Ao som da premiada música de Mike Post (com um Grammy pela melhor composição instrumental), no genérico, o que vemos é o manto branco do amanhecer como expressão dessa calma melancolia urbana a anteceder a urgência das chamadas, a estridência de sirenes na rua e telefones na esquadra.
A mesma melancolia que fica depois da morte do actor Michael Conrad (durante a quarta temporada da série) que personifica o sargento Esterhaus, que pelas 7h de todas as manhãs, no "Roll Call", atribui missões aos seus polícias. E que todos os dias pede a todos para olharem para ele antes de dizer: “And be careful out there” (“Tenham cuidado lá fora.”)
Como os ladrões que prendem ou as vítimas que salvam, também os polícias têm uma história. Não foi só a Academia que os formou.
Tudo nestas personagens é verdadeiro. Seja a tentação (quase consumada) dos agentes Bobby Hill e Renko de ficarem com os 28 mil dólares de um assalto em que o ladrão foge mas a mala com o dinheiro fica, seja o momento em que recuam e entregam o dinheiro na esquadra para ser recuperado em benefício do município.
“Um rapaz morreu nesta esquadra. O que é preciso fazer para que sinta isso profundamente no seu coração?”, pergunta a irmã de um detido que morreu numa cela no interior da esquadra ao capitão Frank Furillo. Quando ele lhe diz – “Lamento profundamente a vossa perda” – ela responde – “Não acredito que esteja a ser verdadeiro.” Nós acreditamos.
Esta série é publicada à segunda e à terça-feira. Próxima: Agora Escolha