Os 54 dias que mudaram a esquerda
Livro de Márcia Galrão e Rita Tavares, lançado esta quinta-feira, recolhe “dados e testemunhos que vão ajudar a ‘fixar’ a história” do primeiro acordo de Governo da esquerda portuguesa, escreve Pacheco Pereira, no prefácio
Esta é, ainda, “uma história em aberto”, alerta Rita Tavares, jornalista do Observador que, com Márcia Galrão (da revista Visão) iniciou, em Janeiro, as primeiras entrevistas a cerca de 50 protagonistas que participaram na construção de um acordo inédito: o que permitiu viabilizar um Governo do PS, minoritário, num parlamento em que os partidos de esquerda, todos somados, têm maioria absoluta. Este livro conta, dia a dia, alguns dos momento principais da construção dessa aliança: de 4 de Outubro, dia das eleições legislativas, a 26 de Novembro de 2015, o dia em que tomou posse o XXI Governo Constitucional.
Por isso mesmo, esta é “uma primeira colecção de testemunhos” e um “primeiro apontamento sobre este momento histórico”, reforça Márcia Galrão. Feito com as dificuldades que o jornalismo político enfrenta ao observar o presente. Pouca disponibilidade dos protagonistas para revelar detalhes significativos e até “algum receio de contar coisas que possam melindrar o outro lado, os parceiros”, conta Márcia Galrão que, apesar de tudo, pôde observar alguma mudança à medida que o tempo ia passando e o Governo ganhava hábitos de coesão com a sua maioria heterogénea: “Aquilo que nos contavam em Janeiro era menos do que aquilo que nos contaram em Junho…”
“A excepcionalidade do acontecimento merece um trabalho, para que este livro dá uma importante contribuição, de imediata recolha testemunhal e documental”, escreve Pacheco Pereira no seu prefácio ao livro Como Costa Montou a Geringonça em 54 Dias (ed. Lua de Papel, 334 páginas). Ainda que “não concorde com algumas conclusões e análises”, Pacheco Pereira admite que este livro “ficará por muito tempo como a história mais detalhada deste acordo e deste Governo”. “Conhecendo os protagonistas, os meios, os partidos, as circunstâncias, a interferência mediática, não penso que a ‘coisa’ seja muito mais sofisticada e muito menos, que seja mais conspirativa do que aqui é contado”, avalia o historiador.
Sendo uma experiência inédita, e logo uma que “mudou o contexto político em Portugal”, como defende Pacheco Pereira, continuará a ter pontos de interrogação, até para as autoras que dedicaram os últimos meses a preencher os espaços em branco: “Há sempre muitas coisas que gostaríamos de saber”, admite Rita Tavares.
Ainda assim, o livro é bastante esclarecedor sobre a existência de uma cultura política na cúpula do PS e do PCP propícia a entendimentos, e a contactos “informais” que antecederam as eleições. São importantes, a esse respeito, as revelações do histórico dirigente do PCP, e conselheiro de Estado, Domingos Abrantes. Rita Tavares e Márcia Galrão tentam ainda explicar o que motivou um dos aparentes paradoxos daqueles dias: a vontade determinante, expressa pelo PCP, logo na noite das eleições, de contribuir para uma solução que afastasse a direita (PSD e CDS) do Governo, e a aparente dificuldade que o partido colocou à assinatura de um compromisso. As autoras sublinham ao PÚBLICO que essa foi uma das suas descobertas mais interessantes – a forma como se manifestou, ao longo deste processo, a “lógica do PCP”, com as suas regras próprias em matérias como a “confiança” e o papel “da palavra” na negociação política.
Do acordo não houve sequer uma fotografia – uma complicada guerra de nervos que este livro conta – mas agora há um registo, com maior nitidez, do tempo em que António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa passaram a negociar as políticas e compromissos que mantêm o actual Governo.