Um fenómeno de culto antes de os fenómenos de culto terem sido inventados

Duarte e C.ª não se levava muito a sério e essa é a principal explicação para ter sido um dos maiores êxitos da história da produção televisiva nacional.

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Podia ter escolhido uma série de desenhos animados (Conan, D’Artacão, Willy Fogg, As Cidades do Ouro, Tom Sawyer), o programa do Vasco Granja, o programa do Vasco Brilhante, as tardes na praia com Luís Pereira de Sousa, os Soldados da Fortuna, o Dempsey e Makepeace, o Lovejoy, O Misterioso Dr. Cornelius, o Domingo Desportivo, o jogo NBA da semana, o Music Box do Adam Curry e do Nino Firetto, um filme, uma novela, um anúncio... Bolas, via muita televisão quando tinha dez anos. E só havia dois canais (em rigor, canal e meio, porque a RTP2 só abria durante a tarde).

Com esta lista na cabeça, a escolha só podia ser, no entanto, uma. Produto genuinamente português, a oscilar entre o raramente sério e o profundamente ridículo com intenção: Duarte & C.ª, a melhor série policial alguma vez feita em Portugal, pioneira e nunca repetida. Tenho os DVDs, mas nunca os vi com atenção e acho que não lançaram todos os episódios. Portanto, isto vai ser muito de memória, usando o Google como cábula ocasional para coisas factuais, como alguns nomes e algumas datas, e um ou outro pormenor de produção contado para efeitos de recuperação nostálgica.

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Para começar a falar de Duarte & C.ª, tem obrigatoriamente de se falar do seu irmão mais velho e mais sisudo (e do mesmo "pai", Rogério Ceitil), Zé Gato, este sim um policial que tentou ser sério, sobre um polícia (interpretado por Orlando Costa) que é "um tipo inteiro" que "corre pelos cantos mais sujos desta terra". Apenas uma série e 13 episódios em 1979 para Zé Gato, cujo último episódio já nem teve a participação do titular da série. Foi um ensaio para o que viria a ser Duarte & C.ª, uma espécie de episódio-piloto não assumido que se chamava O agente americano em que Rui Mendes era um agente do FBI que sofria de narcolepsia e fazia parelha com António Assunção, um inspector da polícia portuguesa, para tentar frustrar uma conspiração internacional para assassinar os congressistas de uma conferência do FMI.

A história, para o caso, não é importante. Basta dizer que serão dos 50 minutos mais bizarros da produção televisiva nacional e que inclui, entre outras coisas, dois momentos de playback de Mendes e Assunção numa boite de cheia de espelhos e sofás com Lookin' after n.º 1, dos Boomtown Rats, e Heart of glass, dos Blondie, em que Helena Isabel aparece a fazer de Debbie Harry (é estar atento à RTP Memória, que a série está a passar outra vez). Estava encontrado o registo de comédia policial e a dupla certa para o fazer. Com meios de produção tão limitados, o melhor era mesmo que a coisa não fosse levada a sério. Quanto mais exagerado na caricatura, melhor.

Não haverá muitos exemplos de séries portuguesas policiais que tenham tido uma vida tão longa como Duarte e C.ª, que durou cinco temporadas para um total de 39 episódios entre 1985 e 1989. Conta as aventuras de Duarte (Rui Mendes), "um aventureiro destemido" que "enfrenta o perigo com um sorriso nos lábios, detective privado de poucos méritos e muita bazófia, e do seu assistente da gravata minúscula e sempre com mais vontade de ler A Bola do que de trabalhar, o Tó (António Assunção), bem mais terra-a-terra que aquele que trata sempre por "chefe". 

Não preciso do Google para me lembrar do nome do primeiro episódio. O Roubo dos Planos da Pólvora. O genérico é a parte séria. Um e depois o outro, e depois os dois ao mesmo tempo, a sacarem de uma pistola e a disparar. Como nas séries e filmes americanos. Duarte é o primeiro a aparecer, a escrever à máquina na sua agência de detectives privados. O escritório é logo invadido por dois gangsters armados, e pertence a um deles a primeira linha de diálogo: "Se te apanhamos novamente a seguir o boss, nenhum pelinho do teu nariz fica identificável."

Começa o desfile de personagens inesquecíveis. O Duarte e o Companhia (o Tó) são apenas dois entre muitos. Logo aparece a Joaninha (Paula Mora), a prima da província do Tó, que é a secretária da agência e que, várias vezes, safa os dois detectives de apuros. Sabe escrever à máquina, um pouco de estenografia e teve três anos de francês, mas também desfaz quem se meter como ela. As mulheres são, aliás, o sexo forte da série. A ciumenta (com razões para isso) mulher do Duarte (Ema Paul) também não leva desaforo para casa, tal como a sogra do Duarte, que anda sempre com um tijolo na mala.

Os códigos dos policiais e filmes de gangsters são a base da paródia, e O Padrinho uma referência incontornável. Havia cenas de luta coreografadas, mas não havia sangue e nunca ninguém morria, algo que ficou desde a primeira hora definido pelo criador e realizador Rogério Ceitil. "Era um dos princípios do Ceitil, não havia sangue e ninguém morria. Por uma questão de uma certa moralidade, aquilo era quase uma banda desenhada", contou Rui Mendes numa entrevista. 

Os "maus" não eram verdadeiramente maus, eram caricaturas de maus. Havia gangs rivais, cada um com o seu "padrinho", a batalhar pelo direito de serem os representantes da Máfia em Portugal. Lúcifer (Guilherme Filipe) queriam que o chamassem de "padrinho" que lhe beijassem a mão e até metia algodão nas bochechas à lá Marlon Brando no filme de Coppola, mas não tinha pontaria nenhuma a disparar. Lúcifer é uma das personagens mais memoráveis da série, mas não nos podemos esquecer do seu rival Átila (Luís Vicente), do enorme Rocha (António Rocha) e do seu farfalhudo bigode igualzinho ao de Fernando Chalana, do "chinês" (Francisco Cheong) e do seu bordão ("eu não sele chinês, eu sele japonês"), do capanga português com nome italiano Albertini (Alberto Quaresma), do Professor Ventura (Canto e Castro) ou do incontornável Citroën 2CV vermelho que até anda sozinho (um KITT à portuguesa).

Via-se que Duarte & C.ª era uma série feita com poucos meios. Nem todos os membros do elenco, por exemplo, eram profissionais (e eram todos muito mal pagos, como admitiu Rui Mendes), mas isso até contribuia para o espírito da coisa, ao mesmo tempo simples e mirabolante. Imaginação e paródia em doses certas, a quebrar o molde do que se fazia na ficção nacional. E aqui a comédia estava na dianteira, com os programas de Herman José e um objecto como Gente Fina é Outra Coisa, para além deste Duarte e C.ª, a sobreviverem ao tempo mais do que qualquer coisa em registo dramático, mais pelo seu valor intrínseco, que pela sua dimensão kitsch (e quanto menos falarmos de Os Homens da Segurança, aquela série policial passada em Tróia, melhor).

Foi suficiente para marcar toda uma geração que cresceu nos anos 1980 e que não tinha muito para onde se virar que não fosse uma limitada oferta de televisão, um ou outro filme no cinema, e um ou outro filme alugado no videoclube. À escala portuguesa, Duarte e C.ª foi um fenómeno de culto antes dos fenómenos de culto terem sido inventados. 

Esta série é publicada à segunda-feira e à terça-feira. Próxima: A Balada de Hill Street

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