Hitler e a Alemanha nazi: um líder, um país (e uma guerra) movidos a metanfetaminas
Em Der Totale Rausch, qualquer coisa como "o êxtase total", Norman Ohler revela Hitler como um toxicodependente e conta, por exemplo, como a invasão de França só foi possível com o recurso a opiáceos.
Quando os líderes do Partido Nacional-Socialista exortaram "Alemanha acorda!”, julgar-se-ia a frase como propaganda destinada a acicatar os ânimos da nação humilhada pelo Tratado de Versalhes, no final da I Guerra Mundial, preparando-a para o novo conflito global que estava a chegar. Mas, e se aquele repto tivesse, na verdade, um significado literal?
Der Totale Rausch ("o êxtase total", quando traduzido à letra para português), primeira obra de não-ficção do escritor alemão Norman Ohler, conta uma história sobre a Alemanha Nazi que se esconde entre as toneladas de informação registadas, investigadas e romanceadas desde então. A de um país liderado por um toxicodependente e de um exército tornado ainda mais temível pelo uso massivo de metanfetaminas: antes da invasão da França, em 1940, foram distribuídas aos soldados 35 milhões de doses de Pervitin, criado na Alemanha em 1937 – conhecemo-la hoje como “crystal meth” e é a droga imortalizada na cultura popular através da série Breaking Bad (Ruptura Total). “Alemanha acorda”? Sim, mas não exactamente como julgávamos.
Tudo começou numa conversa entre Ohler, nascido em 1970, e um amigo DJ de Berlim, Alexander Kramer. Estudioso da música da República de Weimar e da Alemanha nazi, Kramer perguntou-lhe se sabia a história do papel que as drogas haviam tido durante o nacional-socialismo. Ohler não sabia, mas a alegação não lhe pareceu descabida de todo. Propôs-se investigar o tema com o objectivo de escrever um novo romance, mas a realidade impôs-se-lhe nos primeiros passos da investigação, quando se deparou com os arquivos de Theodor Morell, médico pessoal de Hitler. Morell, que ganhara a confiança do Führer depois de conseguir aplacar as dores intestinais agudas de que este padecia, era o responsável pelas espantosas transformações testemunhadas pelo círculo próximo de Hitler.
Em entrevista ao diário britânico The Guardian, o autor do livro editado o ano passado na Alemanha, tornado rapidamente um bestseller e posteriormente traduzido em 18 línguas (vai chegar a Inglaterra a 6 de Outubro, por exemplo), conta como Hitler passava num minuto de uma figura frágil e decadente, com dificuldades em manter-se de pé, a um vendaval de energia impondo-se aos seus subordinados, ao alertas dos seus generais para a derrota inevitável ou a líderes como Mussolini – também ele um paciente do Dr. Morell. Qual o segredo? Inicialmente, injecções de esteróides, depois, a de um opiáceo parente da heroína, o Eukodal, que era combinado com doses duplas diárias de cocaína, prescritas para tratar um problema nos canais auditivos surgido após um falhado atentado à bomba em Julho de 1944. Quando os bombardeamentos aliados destruíram os edifícios onde os medicamentos eram produzidos, Hitler deteriorou-se rapidamente.
“Toda a gente descreve a saúde frágil de Hitler naqueles dias finais [no bunker de Berlim], mas não há uma explicação óbvia para ela”, diz Ohler ao jornal britânico. “Foi sugerido que ela sofreria da doença de Parkinson. Para mim, porém, é bastante óbvio que se tratava, em parte, de ressaca.” Esta é, porém, uma história pessoal. Aquela que envolve milhões de soldados e exige uma participação activa dos estrategas da Wehrmacht é verdadeiramente espantosa. E mais espantosa ainda por ser fundamentada em documentação que lhe dá toda a credibilidade. Ian Kershaw, o historiador britânico que é uma das maiores autoridades mundiais na história do nazismo e da II Guerra Mundial, classificou Der Totale Rausch como “um trabalho académico sério” e elogiou a aturada pesquisa que o originou.
A solução? Não dormir
“O abuso de drogas na Alemanha nazi era verdadeiramente chocante”, conta Norman Ohler ao site da rádio Deutsche Welle. Da investigação dos arquivos federais alemães e dos arquivos nacionais americanos em Washington e Maryland, sobressaiu um quadro surpreendente. Entre 1925 e 1930, a florescente indústria farmacêutica alemã produzia 40% da morfina consumida mundialmente. Depois da ascensão ao poder dos nazis, enquanto o regime liquidava ou enviava para campos de concentração os toxicodependentes, a nação movia-se a Pervitin, a metanfetamina usada tanto por actores e músicos, como por donas de casa ou maquinistas para ganhar energia extra no dia-a-dia. Era vendida sem prescrição médica e sem alerta para a dependência que provocava (a proibição só chegaria em 1941) e o Temmler, o laboratório que a criara, sonhava que se tornaria um dia mais popular que a Coca-Cola. Os seus efeitos não demoraram a ser notados por um exército alemão desejoso de aumentar a eficácia das suas tropas.
No planeamento da invasão de França, através da cadeia montanhosa das Ardenas, o exército deparava-se com um problema. O tempo de descanso necessário aos soldados daria tempo ao reposicionamento das tropas francesas, encurralando os alemães nas montanhas. A solução? Não dormir. “O decreto [para a distribuição dos estimulantes] foi emitido e isso permitiu [aos soldados] ficarem acordados durante três dias e três noites. Rommel [histórico general que liderava então uma das divisões Panzer] e todos os comandantes de tanques estavam drogados – e, sem os tanques, os alemães certamente não teriam ganho.”
Após a proibição do Previtin, os estimulantes continuaram a ser distribuídos ao exército de forma discreta, enquanto os responsáveis pelo exército alemão procuravam novas formas de utilizar drogas químicas como arma de combate. Pensaram, por exemplo, conseguir subjugar a Inglaterra com a ajuda delas. O plano consistia em enviar esquadrões de pequenos submarinos de um único tripulante até ao estuário do Tamisa. Para o conseguirem, porém, era preciso que os seus marinheiros navegassem vários dias sem dormir. A resposta parecia estar numa poderosíssima pastilha à base de cocaína, testada nos prisioneiros do campo de concentração de Sachsenhausen. O resultado foi, porém, catastrófico. Enclausurados num espaço minúsculo, sozinhos, sem comunicação com o exterior, com acessos paranóicos induzidos pela pastilha ingerida, os tripulantes desviavam-se da rota, entravam em pânico, enfim, tornavam-se incapazes de cumprir a missão de que estavam encarregados.
No final da investigação algo se tornou absolutamente claro para Norman Ohler. Um dos mitos do nazismo era a precisão com que regulavam todos os aspectos da vida no país. Ohler saiu de Der Totale Rausch com uma visão bastante diferente. “Pensamos que o nazismo era ordenado e metódico, mas era um caos completo.”