Snowden vai morrer em Moscovo?
O homem mais procurado do mundo, um realizador incendiário, um advogado que queria um milhão de dólares, o primeiro jornalista britânico a ser expulso da Rússia depois da Guerra Fria, Luke Harding. Tudo é hiperbólico e podia ser ficção. Mas, às vezes, a realidade supera a ficção.
“Donald Trump vai assistir ao filme e amar Snowden? Não. Hillary Clinton vai mudar de opinião sobre Snowden? Não. Mas o filme vai ajudar a nova geração de norte-americanos a relacionar-se com o que aconteceu e perceber que o que Edward Snowden fez é do interesse público. Um dia ele será nomeado para o Nobel da Paz e a América não vai prender por 100 anos alguém que ganhe o Nobel”. Assim começa o encontro entre o PÚBLICO e o jornalista britânico Luke Harding, na sua breve passagem por Lisboa, para promover o novo thriller político de Oliver Stone, Snowden, que estreou esta quinta-feira em Portugal, sobre o ex-colaborador da Agência de Segurança Nacional (NSA) que revelou ao mundo o programa secreto de espionagem dos Estados Unidos que permite vigiar qualquer pessoa no mundo.
O jornalista Luke Harding nunca esteve com Edward Snowden. O ex-correspondente do jornal britânico The Guardian em Moscovo foi deportado pelo Governo russo em 2011 e é persona non grata naquele país. Também não conhece Oliver Stone. Cobria a guerra na Ucrânia quando o polémico realizador norte-americano foi a Londres e fez anotações em praticamente todas as páginas do livro escrito por Harding, Os ficheiros Snowden – a história secreta do homem mais procurado do mundo (Porto Editora, 2014), mas reconhece no filme o mesmo fio condutor dramático do livro. "Quando escrevi o livro era muito importante para mim explicar por que Snowden fez o que fez, as suas motivações", conta Luke Harding ao PÚBLICO, acrescentando: "Era essencial explicar a sua viagem intelectual de patriota, a sua passagem pelo exército quando parte as pernas, a desilusão com a CIA e com o NSA até à decisão de se tornar um denunciante. Quando escrevemos livros de não-ficção temos que nos cingir aos factos. Quando vi a cena inicial em que os jornalistas estão com Snowden no hotel em Hong Kong comemorei – 'Uau, eu é que escrevi aquilo' –, mas Snowden é um thriller político clássico, é Hollywood, a história de amor, a relação de Snowden com a namorada isso é tudo do Oliver Stone.”
Oliver Stone pagou 700 mil dólares pelos direitos do livro ao jornal The Guardian. Calcula-se e especula-se que o diário britânico tenha gasto ainda mais no trabalho de investigação dos ficheiros de Snowden que rendeu ao diário britânico o Pulitzer, o Óscar do jornalismo.
A dimensão da fuga de informação é também motivo de polémica. Um documento do Departamento de Defesa norte-americano, que veio a público no ano passado, afirma que foram 900 mil ficheiros só naquele Departamento, mais do que os 50 a 200 mil da Agência de Segurança, NSA.
Mas para chegar a Edward Snowden, Stone teve de ir mais longe. Aliás a história por trás do filme é em si mesma um enredo. O realizador pagou um milhão de dólares pelos direitos do livro Time of the Octopus escrito pelo advogado russo Anatoly Kucherena, outro personagem que parece ter saído da ficção. Defensor de Vladimir Putin e de muitos oligarcas russos foi ele quem orquestrou o asilo político de Snowden na Rússia e tornou-se seu advogado. Graças a ele, Oliver Stone encontrou-se nove vezes com Snowden que reside em Moscovo desde 2013.
O thriller foi filmado em Munique cujos arredores se transformaram em Maryland onde fica a sede da CIA e do NSA. Nem a morte da mãe do realizador o fez sair do set de filmagens. A obsessão pela história levou-o a acreditar que estava a ser vigiado pelos serviços secretos. Porque não? Adiou o lançamento duas vezes e chegou a ser visto com o Presidente russo Vladimir Putin no teatro e numa parada militar. Segundo o jornal The New York Times, quando perguntaram a Stone como tinha sido a experiência de filmar esta história, a resposta foi contundente: “ Foi horrível em todos os sentidos”. Todos os que estavam à sua volta riram, menos Stone.
Herói extraordinário
A campanha de publicidade do filme é articulada em volta da inevitável pergunta: Herói ou traidor? Ao assistirmos ao filme é fácil chegar a conclusão que Oliver Stone considera Snowden um herói. Luke Harding também não tem dúvidas: “Snowden foi contra a sua própria organização, contra a máquina de espionagem dos Estados Unidos, contra o sistema político para revelar a capacidade que os serviços de espionagem têm de juntar dados e armazená-los numa dimensão inimaginável: e-mail, mensagens de texto de telemóvel, os dados do iPhone... Até quando o computador está desligado, a câmara pode ser disparada para espiar qualque pessoa na sua própria casa. O que ele fez foi extraordinariamente heróico. Ele sabia que ia dar cabo da vida dele, que não teria mais perspectiva alguma de uma vida normal com a família. Mas mesmo assim foi em frente e disse: 'Não quero viver num mundo em que tudo o que dizemos e fazemos, toda a expressão de amor, é gravado.' É um manifesto colectivo da nossa era. Cada vez mais as pessoas, e não só os americanos, mas os portugueses, os europeus, as pessoas no meu país, percebem e reconhecem em Snowden um herói."
A campanha pelo perdão presidencial a Edward Snowden, que é acusado de espionagem, roubo e conversão de propriedade do Governo, intensifica-se. É tradição nos Estados Unidos nos últimos meses de mandato, o Presidente conceder perdão em questões mais polémicas. Mas o correspondente de guerra, Luke Harding, acha que a probabilidade de Barack Obama conceder o perdão é nula. “Obama era visto como um progressista, um liberal. Acreditava-se que ele iria diminuir o programa de vigilância, a tortura, tudo o que tinha acontecido na era Bush. Não foi isso que aconteceu, pelo contrário, não só a vigilância continuou como o programa expandiu-se. Snowden embaraçou-o politicamente. Não há nenhuma razão política para o Presidente Obama lhe dar o perdão. Nem Obama, nem Hillary, nem Trump.”
Morte em Moscovo
Quando os créditos finais do filme começam a aparecer no ecrã, ouve-se a voz do ex-director da CIA e do NSA, Michael Hayden, sentenciar: "Ele vai morrer em Moscovo, nunca mais vai voltar para casa”. Algum tempo depois de chegar à Rússia, único país que concedeu asilo temporário a Edward Snowden, que pediu asilo a mais de 20 países, a namorada Lindsay Mills, foi ter com ele.
Luke Harding viveu na Rússia, foi espiado pelos serviços secretos (FSB) e suspira pensativo quando o PÚBLICO pergunta se acredita que Snowden jamais abandonará Moscovo: “Snowden não quer ficar na Rússia. Ele não é um espião russo, diz que não deu nenhum documento ao Kremlin, mas o facto de estar na Rússia não o ajuda. Ele revelou o programa de vigilância norte-americano, mas está a viver sob um regime muito autoritário, uma ditadura, sob Putin onde espiões fazem o mesmo e os cidadãos têm menos protecções legais. Os alvos da inteligência russa são opositores políticos de Putin. Mas mesmo assim Snowden tem denunciado abusos de direitos humanos na Rússia, o que é um acto de bravura. Mesmo que ele não coopere com o Kremlin, o facto de ele morar em Moscovo é um bónus para Vladimir Putin."
E Luke Harding prossegue: "A maneira como Putin pensa é simples: o que é mau para a América, é bom para a Rússia. Ele não está interessado em neutralidade nem em diplomacia internacional. O seu cérebro KGB é antiamericano. Ele sabe que quanto mais tempo Snowden ficar na Rússia mais irritado e incomodado ficará o Governo dos Estados Unidos De um certo modo Snowden está preso a esta conjuntura. Tem 33 anos. Vai morrer lá? Quem sabe? Putin não é eterno. Mas o melhor cenário é se algo for capaz de mudar lentamente o clima político norte-americano."
Como nada nesta história é simples e tudo parece envolver espiões e intrigas, quando Luke Harding insinuou no seu livro que Snowden estava de uma certa forma preso na Rússia, foi duramente criticado por Julian Assange, fundador do Wikileaks, e pelo próprio Glenn Greenwald, o então colunista do The Guardian, e um dos três jornalistas que estiveram com Snowden quando o analista informático decidiu denunciar que os serviços de vigilância norte-americanos podiam espiar qualquer cidadão em qualquer sítio do planeta à la George Orwell em 1984.
Assange acusou-o de ser obcecado pelo serviço secreto russo, de ter tornado a história de Snowden superficial e até de plágio. O livro anterior de Harding foi sobre o Wikileaks e Julian Assange e também foi adaptado para Hollywood. “Não quero criticar nem Glenn [Greenwald] nem Julian [Assange] porque cada vez que o faço Julian destrói-me no twitter. Eu vivi na Rússia, eu falo russo, eu tenho amigos russos, eu conheço a oposição russa, eu conheço os métodos da FSB, de experiências amargas pessoais pois tive o meu apartamento em Moscovo não só sob escuta, como colocaram câmaras de vídeo no meu quarto, prejudicando a minha família, a minha mulher e os meus filhos. É completamente possível ser contra o sistema de vigilância norte-americano e não ser fã de Vladimir Putin, mas Assange não percebe isso. Ele acha que ou se é amigo de Assange ou se está contra ele e que a América é o inimigo e a Rússia é a amiga. Acho que o mundo é muito mais complexo do que isto. Qualquer país hoje pode desrespeitar os direitos humanos, cometer genocídio. Nós temos de estar atentos e, principalmente no jornalismo, seguir as evidências, as provas. Eu escrevo tanto sobre a espionagem norte-americana como sobre a corrupção na Rússia. Quando vivi na Rússia, achavam que eu era um espião do MI-6 [serviço secreto britânico]. O MI-6 odeia-me. A CIA, sei lá. Então, para um jornalista, estou num bom lugar para se estar."
Em todo este enredo, Luke Harding considera que o jornalismo de investigação sai vitorioso. Apesar de vivermos numa era em que as agências nunca tiveram tanta capacidade tecnológica de espiar o cidadão comum, também vivemos na era das fugas de informação. “O modelo de negócio dos jornais pode estar em crise, mas o jornalismo não. Este sai vitorioso de tudo isto. É uma batalha entre governos, ricos e poderosos de um lado e jornalistas do outro. No recente escândalo dos Panama Papers trabalhámos em colaboração com centenas de organizações, jornais, 80 países e 400 jornalistas partilhando informação e investigando em conjunto. Em vez de um jornal ter uma grande reportagem, todos colaboram para a profundidade de tudo o que está a ser investigado.”
Mas o optimismo termina aqui. Quem já cobriu tantas guerras como a do Iraque, Afeganistão, a queda de Trípoli, a Ucrânia e tantos conflitos, não vê com ânimo o mundo lá fora. “É muito perigosa esta maneira de Putin fazer política, que parece ter-se transformado numa tendência. Uma propaganda confusa que diz que tudo é mau e nada é bom. É a velha estratégia de confusão, conspiração e negação do KGB tanto na extrema-esquerda como na extrema-direita. É só pensar na campanha do Brexit, os favoráveis à saída da Grã-Bretanha da União Europeia mentiram, disseram todo o tipo de mentiras, como por exemplo que a Turquia ia entrar para a União Europeia. Não era verdade mas as pessoas acreditaram e votaram pela saída do país da Europa. É o mesmo fenómeno nos Estados Unidos com Donald Trump, que passou anos a mentir dizendo que Barack Obama não nascera nos Estados Unidos. Transformou-se numa espécie de facto zombie".
Para Harding, é mau jornalismo, é a “zombificação” dos media", é uma comunicação ruidosa, confusa, mentirosa, cacofónica. É mentira mas as pessoas acreditam. "É alarmante e neste momento, mais do que nunca, o papel do jornalismo na nossa sociedade é fulcral. Temos que perseguir a verdade em vez destas várias verdades e Snowden é uma grande verdade. O veredicto da História sobre o caso Snowden vai ser positivo”, acredita.