O combate à corrupção pode sobreviver sem premiar envolvidos?

Juiz Carlos Alexandre relançou um debate que há algum tempo divide a justiça portuguesa: deitar ou não mão da delação premiada, como foi feito na Operação Lava-Jato. Deputado socialista reage aconselhando magistrado a “considerar a possibilidade de se afastar do processo” de Sócrates.

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O debate sobre a delação premiada é legal mas sobretudo de ordem ética Adriano Miranda

Foi a primeira vez que o juiz Carlos Alexandre o disse publicamente, mas antes dele várias outras figuras da justiça portuguesa já o tinham referido: o combate à corrupção e ao crime altamente organizado sairia beneficiado se um criminoso pudesse negociar sem restrições com a justiça uma redução ou mesmo isenção de pena em troca da denúncia dos seus cúmplices, como tem acontecido no Brasil, na operação Lava-Jato.

“Seria positivo que se pudesse usar esse mecanismo”, declarou o juiz mais famoso do país em declarações ao semanário Expresso, explicando que a lei portuguesa já permite deitar mão da figura do arrependido em casos especiais, como o tráfico de droga ou o terrorismo. Não tem de ser um perdão judicial: os delatores do Lava-Jato vão ser obrigados a pagar elevadas multas, e podem nem ganhar isenção mas apenas uma redução da pena a que forem condenados por terem confessado os seus crimes. Mesmo assim, disseminar em Portugal esta prática de matriz anglo-saxónica suscita forte controvérsia na comunidade político-jurídica.

Entre aqueles que com mais veemência se opõem à justiça negociada – os especialistas designam-na por justiça premial, numa alusão à recompensa de que beneficia o delator por colaborar com as autoridades – está o deputado socialista Pedro Bacelar Vasconcelos, que preside à Comissão Parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias. O constitucionalista equipara este tipo de práticas às da Inquisição, por equivalerem, na sua opinião, à institucionalização de um sistema de denúncia próprio de uma “menoridade cívica pouco compaginável com uma democracia constitucional europeia”.

“Trata-se de uma ideia extremamente perversa, perigosa. É combater a corrupção com outra corrupção”, avisa. Nas palavras de Carlos Alexandre, o deputado socialista vê ainda uma confissão, por parte do juiz, de que gostaria de aplicar este mecanismo aos casos que lhe passam pelas mãos – motivo pelo qual entende que o magistrado devia, após a entrevista em que aludiu ao assunto, “considerar a possibilidade de se afastar do processo” em que o ex-primeiro-ministro José Sócrates é arguido.

A ideia suscita igualmente repúdio na restante esquerda representada no Parlamento. “Os instintos justiceiros ficaram em grande excitação com a Operação Lava-Jato”, critica o bloquista José Manuel Pureza, “mas se se aumentar a possibilidade de usar a delação premiada na justiça portuguesa corre-se um grande risco de criar uma monstruosidade”. E aduz alguns argumentos: “A isenção de pena é inaceitável, por estimular comportamentos muitíssimo negativos. Por outro lado, a pretexto da luta contra a corrupção põem-se em causa os direitos das pessoas”.

Um dos aspectos que vários juristas têm vindo a debater ao longo dos últimos anos é a fiabilidade das declarações do autor da denúncia: sabendo que fica pelo menos em parte nas suas mãos a punição que irá ser aplicada – ou não  – pela justiça, será a sua confissão fiável? “A delação pode dar origem a uma difamação agravada, com efeitos que poderão nunca conseguir ser corrigidos”, torna José Manuel Pureza. Na sua entrevista, Carlos Alexandre argumentou que cabe aos responsáveis pelas investigações judiciais apurar nestes casos a veracidade da denúncia: “Tanto quanto julgo saber, a delação premiada não pode ocorrer só porque o indivíduo delata o outro. É preciso [haver] elementos que corroborem as declarações da pessoa que se dispõe a colaborar.”

"Incentivos aos corruptores"

A estas pessoas, a justiça portuguesa chama mesmo colaboradores. Há muito que a lei de combate à corrupção já prevê que quem contribua “decisivamente para a descoberta da verdade” com denúncias relativas a este tipo de crime fique dispensado de cumprir pena. Carlos Alexandre não é o único a achar que esta e outras disposições legais vigentes não chegam: o actual director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Amadeu Guerra, a sua antecessora, Cândida Almeida, e a procuradora-geral distrital de Lisboa, Maria José Morgado, também já se pronunciaram nesse sentido.

Avesso à comunicação social, Amadeu Guerra disse-o numa entrevista em 2014 no âmbito de uma dissertação de mestrado: “Atrever-me-ia a sugerir a criação de alguns incentivos aos corruptores activos para que denunciem a corrupção. Devia ser incentivado e regulado com maior rigor aquilo que seriam os prémios atribuídos às pessoas que fossem os corruptores activos, por forma a que contribuíssem para uma melhor investigação da nossa parte.”

Cândida Almeida é das poucas magistradas em Portugal que se podem gabar de ter ajudado conferir a arguidos o estatuto de arrependidos. “Aconteceu no processo das FP-25, em 1984, e essas pessoas ficaram isentas de pena, embora a sua condenação tenha sido colocada no seu registo criminal”, recorda. Permitiu-o o facto de se tratar de um crime excepcional, terrorismo.

Mas em relação à corrupção, a procuradora do Supremo Tribunal de Justiça considera que a actual lei é de tal forma restritiva que “não tem qualquer eficácia prática”: quem a denuncia estando implicado tem obrigatoriamente de o fazer no máximo 30 dias após o acto e sempre antes de as autoridades abrirem uma investigação sobre o caso, sob pena de a denúncia por ser considerada extemporânea. “Não conheço nenhum caso em que isso tenha sucedido”, observa Cândida Almeida, acrescentando que seria fácil fazer desaparecer este requisito legal, se houvesse vontade disso.

“É uma norma absolutamente inoperacional que merecia ser revista”, concorda o professor da Faculdade de Direito do Porto André Lamas Leite, segundo o qual o mecanismo da denúncia premiada irá chegar a Portugal mais cedo ou mais tarde, – como já viu chegarem à justiça alemã, italiana e até à espanhola: “É só uma questão de tempo”. Ao também consultor da Abreu Advogados não repugna a prática, desde que circunscrita a determinado tipo de crimes e à fase em que os processos estão sob investigação, e com articulação entre os diferentes agentes da justiça – sob pena de se poder tornar “um instrumento de perseguição política”, se alguém, para sacudir a água do capote, resolver empurrar culpas para cima de uma figura pública.

Atenuação da pena

“A delação premiada não tem cabimento constitucional”, contrapõe, de forma taxativa o deputado comunista António Filipe, para quem o Estado não pode ilibar quem cometeu um crime. “O que é admissível, e já existe, é a denúncia conduzir a uma especial atenuação da pena.”

Além de legal, o debate é sobretudo de ordem ética. Num trabalho com o sugestivo título Bufos, infiltrados, provocadores e arrependidos, o penalista Germano Marques da Silva alega que uma sociedade organizada com base no respeito pela dignidade humana não pode pactuar com semelhante quebra de solidariedade entre os seus membros, sob pena de fomentar a desconfiança entre os cidadãos, o egoísmo e o isolamento. Nem todos crêem, porém, na imoralidade da delação. “Urge repensar e requalificar, pelo menos socialmente, a figura do arguido arrependido ou colaborador com a justiça”, advoga a assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Inês Ferreira Leite, para quem não há nenhum problema em aproveitar desentendimentos entre os arguidos de determinado processo: “O reconhecimento de um subsistema de valores éticos no âmbito de uma organização criminosa não pode sobrepor-se ao plano dos valores éticos impostos pela lei”. Por outras palavras, a justiça não tem qualquer obrigação moral de proteger a solidariedade entre criminosos.

“Mesmo que não envolva dinheiro (e nalguns países até pode envolver), a delação premiada é sempre um negócio”, objecta o advogado Rui Patrício, para quem introduzir esta figura na lei nacional “é contrário ao nosso quadro constitucional e legal e aos princípios saudáveis do Estado de direito”.

Para punir com autoridade, “um Estado decente quer-se de mãos limpas e com trabalho efectivo, e não alavancado em exercícios de ‘toma-lá-dá-cá’”. Porque “quando é o Estado o actor da libertinagem de valores, então pode estar a abrir a porta ao que se quer combater”. Depois, há a velha questão da credibilidade, diz este penalista: é possível que o delator premiado só saiba ou diga uma metade, a que lhe interessa. “O que está cada um disposto a dizer para lhe ser dado ‘o prémio’?” A delação pode ainda tornar os investigadores preguiçosos: em vez de tentarem descobrir a verdade, ficarão “sentados, à espera de ouvir” o relato do arrependido, diz Rui Patrício.

Ao juiz e antigo director da Polícia Judiciária Fernando Negrão não agrada o termo 'prémio' quando se fala desta temática. Mas a complexidade que alcançou a criminalidade económica justifica, no seu entender, medidas como “a criação da figura do arrependimento activo, para os arguidos que colaboram com a justiça”, seja durante a fase de investigação dos processos seja durante os julgamentos, sem abdicar porém da capacidade de investigação própria do Ministério Público. Algo do género do que o CDS de Paulo Portas tentou em 2009 para os crimes de especial dificuldade de investigação. Acabou por não se ir tão longe quanto os centristas gostariam, mas o líder desta bancada parlamentar, Nuno Magalhães, não perdeu a esperança de isso ainda poder vir a acontecer.

Hoje deputado social-democrata, Fernando Negrão acha que é um isco que tem todas as condições para ser mordido: afinal, trata-se de acenar com uma vantagem a pessoas que se habituaram a “viver da troca de favores”.

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