Novas regras que permitem dádiva de sangue por gays já estão em vigor
Norma publicada esta segunda-feira estará em consulta pública durante 30 dias, mas a Direcção-Geral da Saúde aplica-a de imediato. BE diz que é um “passo claramente insuficiente” e PSD defende a não discriminação
Portugal tem novas regras para triagem de dadores de sangue, as quais dão luz verde a homo e bissexuais, até agora totalmente excluídos da dádiva. A nova norma clínica foi publicada esta segunda-feira à tarde no site da Direcção Geral da Saúde (DGS), depois de o PÚBLICO ter revelado as principais novidades, e mereceu a crítica do Bloco de Esquerda.
A norma “já está em vigor”, segundo o médico José Alexandre Diniz, director do Departamento da Qualidade na Saúde, da DGS – ainda que o período obrigatório de consulta pública tenha tido início na segunda-feira.
“Pela primeira vez, com esta norma, estamos a pensar reduzir o período de consulta pública de três meses para 30 dias, porque a experiência demonstra que ao fim de um mês já não costumam chegar contributos relevantes para as normas clínicas”, explica o mesmo responsável.
“A norma é pública, já vale para os serviços de colheita de sangue e será alterada se recebermos contributos oportunos nos próximos 30 dias”, sublinha José Alexandre Diniz.
Porém, para o deputado do Bloco de Esquerda, Moisés Ferreira, esta norma trata-se de um “passo claramente insuficiente”. “Temos de analisar bem o texto, mas à primeira vista parece que ele traduz as conclusões de um grupo de estudo do ano passado e essas conclusões eram limitadas”, justifica.
O deputado refere-se ao relatório conhecido em Agosto de 2015, elaborado por um grupo de especialistas, a pedido do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST).
“A norma repete o erro de confundir comportamentos de risco com grupos de risco”, sustenta Moisés Ferreira. “Pode-se considerar um passo positivo que a exclusão passe de total a parcial, mas é um passo manifestamente insuficiente”, reforça.
“O Bloco tem as suas opiniões, o Governo, neste caso através da DGS, tem outra visão e nós continuaremos a lutar pela nossa”, diz o deputado.
As reacções políticas têm sido cautelosas. Ângela Guerra, coordenadora dos deputados do PSD na Comissão Parlamentar de Saúde, defende que a “preocupação principal é com a qualidade do sangue” que chega aos doentes. “Espero que esta norma salvaguarde esse princípio e o da não discriminação.” Nesta segunda-feira, o PÚBLICO tentou contactar por várias vezes, sem êxito, as deputadas Antónia Almeida Santos (PS) e Isabel Galriça Neto (CDS).
Suspensão de 12 meses
A norma clínica da DGS estabelece a suspensão por seis meses de candidatos a dadores que tenham iniciado recentemente relações monogâmicas, homo ou heterossexuais. A suspensão é 12 meses para quem tenha tido “contacto sexual” com trabalhadores do sexo, utilizadores de drogas injectáveis ou inaláveis, cidadãos de países africanos e outros com “epidemia generalizada” de VIH e ainda com homo e bissexuais. É um levantamento parcial de uma proibição até agora total.
O texto oficial refere “contactos sexuais” com “indivíduos pertencentes a subpopulações com risco infeccioso acrescido para agentes transmissíveis pelo sangue” e “subpopulações com elevada prevalência de infecção”.
A formulação está a ser interpretada como uma referência apenas a utilizadores de drogas e a trabalhadores do sexo. É também o que se lê na fundamentação da norma: “As subpopulações com elevada prevalência de infecção por VIH incluem, nomeadamente, utilizadores de drogas e trabalhadores do sexo.”
De acordo com os dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, a prevalência de VIH na população homo e bissexual (“Homens que têm Sexo com Homens”, ou HSH) é igualmente elevada.
O fim da referência explícita aos HSH sugere que a DGS foi ao encontro da principal reivindicação da associação ILGA Portugal, que desde o fim da década de 90 contestava os critérios vigentes.
Em comunicado emitido esta segubda-feira, aquela organização congratulou-se com o articulado da norma, justificando que “a ausência de qualquer menção da categoria HSH” significa que “desaparece a generalização abusiva de comportamentos de uma população com uma enorme diversidade de práticas, permitindo um enfoque nos comportamentos de risco”.
“Pretendeu-se pôr a tónica não na orientação sexual, mas nos comportamentos de risco”, justifica também o médico José Alexandre Diniz. “Os utilizadores de drogas e os trabalhadores do sexo estão em destaque porque a prevalência de VIH nestas populações é maior que nos HSH”, justifica.
Outra novidade importante, no entender daquele responsável, é a imposição de “informação e esclarecimento” às pessoas que se apresentam nos serviços de colheita de sangue. “Passa-se a dar informações sobre comportamentos de risco, o que é novo, para não se transformar o acto de doação, que é benévolo, num acto malévolo”, explica.
Activista defende conceito “Homens que Têm Sexo Com Homens”
O presidente do GAT – Grupo de Activistas em Tratamentos, uma organização lisboeta que trabalha na área do VIH/sida, discorda do desaparecimento da expressão “Homens que Têm Sexo com Homens” na nova norma clínica da DGS sobre dadores de sangue.
Falando a título pessoal, Luís Mendão considera que “há uma razão científica e de saúde pública” para a denominação HSH. “Há HSH que não se reconhecem, e têm direito a isso, como homossexuais”, afirma.
Para este activista, há várias décadas ligado à temática do VIH, “uma coisa são as identidades, outra são os comportamentos” e a categoria HSH “descreve melhor” os comportamentos.
Luís Mendão foi ouvido pela Direcção Geral da Saúde durante a elaboração da norma. Outra organização da sociedade civil, a ILGA, também. As audições ocorreram antes de Junho.
Contactado pelo PÚBLICO, o médico hematologista Fernando Leal da Costa, ex-secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde, entende que os 12 meses de suspensão, que passam a ser aplicados a quem tenha “contactos” com populações em risco, é um prazo aceitável “na falta de melhor evidência científica sobre o caminho a seguir”.
Leal da Costa defende o “desaparecimento do estigma que ainda há quem imponha aos que optam por ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo”. Esse estigma “é um convite à dissimulação e à mentira” nos inquéritos de triagem de dadores, pelo que, alerta, “nada nos protege de quem entender mentir, mesmo sendo heterossexual, e tenha relações de elevado risco de transmissão de HIV ou de outras doenças”.