Vamos ouvir os Beatles como eles nunca se ouviram
Num movimento duplo, um filme e um disco levam-nos a olhar mais de perto quem foram os Beatles em concerto. Eight Days a Week, de Ron Howard, e Live at the Hollywood Bowl mostram, entre outras coisas, que o palco foi o presente e o estúdio significou o futuro.
O pé a marcar o ritmo batendo no chão, as ancas a denunciarem o andamento. No auge da popularidade dos Beatles, naquele tempo em que as raparigas ameaçavam arrancar cada cabelo do escalpe e os rapazes prometiam arrancar cada botão da camisa, em que a histeria gritada era tanta que se sobrepunha a qualquer guitarra com o amplificador esmifrado no máximo volume possível, eram esses os sinais (o pé a marcar o ritmo, as ancas em movimento pendular) a que Ringo Starr se agarrava.
Na clássica disposição de palco de uma banda rock’n’roll, o baterista fica atrás, as vozes e as guitarras são atiradas para a frente. Acontece que em meados dos anos 1960, o som de palco dos Beatles limitava-se ao backline (amplificadores Vox, construídos de propósito pela marca para expelir uns insuficientes 100 watts), sem lugar a colunas de monição. No meio dos gritos, confessa Ringo no filme Eight Days a Week – The Touring Years, de Ron Howard, só pelos movimentos de John, Paul e George lhe era permitido perceber em que secção da música se encontravam.
Parece uma anedota, uma história que tem graça para encher um documentário focado na vida de estrada dos fab four. Mas é o exemplo perfeito do desespero em que se tornaram as digressões do grupo, numa ascensão do The Cavern (lotação oficial: 200 pessoas) para o Shea Stadium (esgotado com 56.500 fãs em frenesi). “Era apenas um freak show. As pessoas queriam os Beatles, não queriam a música”, desabafa Lennon numa declaração que o filme recupera.
Há duas ideias que acompanham o filme de Howard – esse tarefeiro de Hollywood que primeiro se notabilizou como actor da série Happy Days, enredo liceal de uma adolescência que nos anos 50 crescia com o nascimento do rock’n’roll. A primeira, mais evidente é a do poder transformador do grupo ao correr desenfreada e incansavelmente os palcos de todo o mundo; a segunda, é a conclusão já bastamente conhecida de como foi preciso os Beatles de palco morrerem para os Beatles de estúdio se cumprirem em todo o seu desmesurado potencial criativo. Os de palco foram a celebração hiperbólica do presente, do agora; os segundos foram a maior investida da música pop na direcção do futuro.
Não destapando propriamente revelações extraordinárias, Eight Days a Week sofre de uma distorção típica de Hollywood, desequilibrando injustificadamente o prato a favor de tudo quanto tenha acontecido em território norte-americano. (O espinhoso episódio nas Filipinas, por exemplo, com o incidente diplomático resultante da recusa dos Beatles em se apresentarem numa cerimónia em sua honra oferecida pela primeira-dama Imelda Marcos, é exposto com demasiada debilidade, tendo em conta a ofensa nacional gerada pela nega dada a Imelda e a consequente retirada de emergência de Manila em modo de guião de filme de espionagem.) Em contrapartida, esse desequilíbrio leva a que um foco apontado nas questões de segregação racial que persistiam nos anos 1960 nos Estados Unidos ganhem um outro relevo, mostrando como os Beatles se opuseram, em Jacksonville, a tocar num concerto em que público branco e negro não se pudesse sentar lado a lado.
A segregação racial
Integrado numa digressão americana que incluía 32 concertos em 33 dias (embora as actuações rondassem a meia hora, o desgaste era óbvio), o espectáculo no estádio Gator Bowl de Jacksonville aconteceria no meio de um turbilhão de eventos que deixaria toda a comitiva e os músicos de nervos em franja. Ron Howard elege compreensivelmente a questão racial como central. As perguntas dos jornalistas que acompanhavam a digressão há muito interrogavam o grupo sobre essa possibilidade de actuar perante um público segredado, apesar de a Lei dos Direitos Civis ter sido promulgada há dois meses, em Julho de 1964, pondo termo às diferentes legislações estaduais. Contudo, o município teria alegadamente forçado a política de segregação racial, recusada de forma liminar pelos Beatles. Mas em Jacksonville houve ainda conflitos com um sindicato e com os operadores de câmara que acompanhavam a digressão, tendo o concerto tido lugar pouco depois da devastadora passagem do Furacão Dora pela região. As condições meteorológicas eram ainda tão pouco favoráveis que Ringo teve de tocar com a bateria pregada ao chão, não fosse fugir-lhe durante a actuação.
Entre vários outros, Howard recolhe o testemunho da actriz Whoopy Goldberg como exemplo de alguém cujo horizonte de vida foi transformado pela música dos quatro. E essa é uma das virtudes de Eight Days a Week. Não sendo também propriamente uma novidade que os Beatles resultaram do encontro iluminado de quatro personalidades que não se eclipsavam e coincidiram sem grandes desfasamentos na sua exaustão dos palcos e no encarar do estúdio como uma ferramenta criativa de possibilidades quase infinitas, o facto de funcionarem em colectivo retirava-lhes a carga messiânica de um Elvis Presley, por exemplo.
Não eram apenas a face mais visível de uma cultura adolescente global que o filme reclama; eram também a ideia de que desfaçatez de usar os cabelos conforme lhes apetecia e a ousadia de responder de pronto aos jornalistas sem se encolherem eram permitidas. Como Golberg diz, os Beatles fizeram-na acreditar que podia ser quem quisesse, sem ter de pedir autorização a qualquer autoridade.
Pouco depois dessa endiabrada digressão de1964, a relação particular com o público americano sofreria um golpe profundo, na sequência da amplificação da célebre comparação entre a popularidade dos Beatles e de Jesus Cristo, proferida por John Lennon – dando como vencedor o grupo de Liverpool. Howard repesca as justificações visivelmente agastadas de Lennon com a importância dada ao caso, e que defendia a emergente posição da cultura pop sobrepondo-se à importância da religião na vida dos adolescentes. E responde: se tivesse dito televisão em vez de Beatles ninguém se ofenderia. Mas o puritanismo norte-americano seria erva seca para declarações tão incendiárias à época e a reacção foi a de estabelecimento de pontos de recolha – 14, só em Birmingham, Alabama – de discos, posters e todo o material dos Beatles, subitamente proscritos por quem já desconfiava que aquelas melenas rebeldes só poderiam esconder uma qualquer forma de vida pecaminosa.
Ao vivo no Hollywood Bowl
Em simultâneo com estreia de Eight Days a Week, a Universal acaba de relançar o álbum ao vivo Live at the Hollywood Bowl (cuja edição original data de 1977), montado por George Martin (o eterno produtor do grupo e alcunhado como “quinto Beatle”) a partir de dois lotes de gravações na mesma sala, respeitantes a Agosto de 1964 e Agosto de 1965. A preciosa remasterização a cargo de Giles Martin (filho de George) consegue o milagre de fazer sobressair os instrumentos e as vozes por entre gritaria constante do público que quase abafa cada um dos temas. É um documento soberbo dos Beatles enquanto banda ao vivo, da crueza rock’n’roll que transportavam para palco, e de como apesar das tenebrosas condições técnicas vingava uma música exímia na construção melódica e nas harmonizações vocais. Espanta, por exemplo, o nível notável da interpretação de Paul McCartney em She’s a woman, a roçar uma possessão soul/gospel.
Mais uma vez, é também um registo cujo enfoque se encontra na sua relação com os Estados Unidos (de resto, a inspiração primária do grupo), com um alinhamento em que interpretam temas de Chuck Berry ou Carl Perkins e se atiram a versões de clássicos como Twist and shout, Dizzy miss Lizzy, Boys ou Long tall Sally. Estamos praticamente na despedida dos palcos e a um curto passo de Rubber Soul começar uma vertiginosa escalada de experimentalismo dentro das canções. Em menos de um ano, com Revolver, estariam a lançar esse epítome de elegância pop que continua a ser Eleanor Rigby ou aqueloutro vislumbre do futuro, da pop a valer-se do cruzamento com a vanguarda plasmado em Tomorrow never knows, cuja modernidade permanece inviolada passados 40 anos (os Radiohead pós-OK Computer podem ser explicados com recurso exclusivo a esta sublime gravação, séria candidata a mais brilhante canção de todos os tempos).
A partir daí, com os quatro a constituírem família e a redefinirem a dinâmica de grupo, os Beatles passaram a ser a banda que a cada novo álbum expandia enormemente as possibilidades do que uma composição pop podia ser, arrumando a trouxa quando já tinham virado as canções do avesso. O filme de Howard termina, como seria de esperar, com a última actuação dos quatro, em 1969, no terraço do edifício onde estava instalada a Apple – nome da sua editora e produtora, muito antes de Steve Jobs lhes imitar o gesto. Os temas incluídos no álbum Let it Be (1970), o último registo dos Beatles a ser publicado mas o penúltimo a ser composto e gravado – Abbey Road havia de chegar primeiro às lojas – mostravam com clareza a pacificação de um colectivo que tinha cumprido a sua existência de forma espectacular, retornando na curva para os anos 70 a uma sonoridade menos agitada pela maneira alucinante e destemida de esticar os limites da música com um amplo apelo popular.
Yoko Ono, macambúzia como sempre a vimos, assiste aos momentos finais da vida pública dos Beatles nesse último concerto e tudo parece caminhar para um fim sereno, sem perda de dignidade. A história que Eight Days a Week conta é, por isso, tanto a da ascensão da Beatlemania até uma dimensão para a qual a polícia não parecia estar preparada, quanto a da sua ordeira retirada de cena. A polícia que antes abria corredores para os músicos não serem desmembrados pelos fãs em delírio, aparecia agora no bairro de escritórios de Londres para pedir aos Beatles que moderassem o volume sonoro que vinha do telhado (agora que finalmente se ouviam uns aos outros). O fenómeno tinha terminado para dar lugar a algo bem mais duradouro – a completa transformação do que podia significar e quão ambiciosa podia ser uma banda pop/rock.