A conquista dos direitos das mulheres nunca é definitiva
É uma história de adaptação e crescimento ao longo de 40 anos, que se fez através da intervenção concreta em áreas como o desemprego e a violência doméstica. De frente partidária a organização feminista, a UMAR permanece hoje na encruzilhada do futuro do feminismo em Portugal.
Quando se assinalam quatro décadas sobre o dia 12 de Setembro de 1976, em que foi constituída a vetusta União das Mulheres Antifascistas e Revolucionárias (UMAR), hoje União de Mulheres Alternativa e Resposta, a fundadora e ainda dirigente desta organização, Manuela Tavares não hesita em afirmar a sua preocupação com o futuro, ainda que tenha sido imenso o caminho percorrido em Portugal na luta pelos direitos das mulheres. E alerta para “o risco de que o conservadorismo pode fazer recuar conquistas alcançadas”.
Nem sempre a UMAR se assumiu como uma associação feminista, mas esteve permanentemente ligada à defesa das causas das mulheres. Por isso, logo um ano depois de constituída, em 1977 tomou assento no Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres.
“Não devemos negar as raízes históricas”, afirma Manuela Tavares, para recordar: “A UMAR surgiu por iniciativa da UDP, era uma frente, como se dizia então, para uma área, a das mulheres. Mas nunca foi um departamento da UDP, sempre teve órgãos eleitos e muitas das pessoas eram da UDP, mas nem todas. Como dizíamos então, não era o partido que precisava de uma organização de mulheres, eram as próprias mulheres.”
Desde então a UMAR percorreu uma estrada. Tal foi possível, garante a fundadora, porque as suas activistas tiveram “a clarividência de manter a autonomia” e de se ir “adaptando à evolução dos tempos”. E frisa que “houve muito querer, mas também houve clareza das situações”.
Assim, em 1989, perante as mudanças na sociedade e com um pensamento interno assumidamente feminista há anos, optaram por mudar de nome, embora mantendo sempre a sigla UMAR e o símbolo, que perdura hoje. Passaram a chamar-se Movimento para a Emancipação Social das Mulheres Portuguesas. Dez anos mais tarde, em 1999, perante as evoluções que as questões de género assumiam a nível mundial, conta Manuel Tavares, mudaram de novo de nome nos estatutos, podendo este agora voltar a coincidir com a sigla: União de Mulheres Alternativa e Resposta.
A importância do aborto
A assunção do feminismo como pensamento e acção estruturante desta organização surge logo no início da década de oitenta, quando se começa a consolidar a luta pela despenalização do aborto. “A UMAR não nasceu como associação feminista, o que nos ajudou a evoluir para assumirmos o feminismo foi a participação na CNAC – Comissão Nacional pelo Aborto e Contracepção”, refere Manuela Tavares lembrando a época em que a persistência e a luta de algumas feministas conseguiram que em 1982, o aborto fosse discutido na Assembleia da República, por proposta do PCP e da UDP.
Isto depois de anos de activismo pelo reconhecimento deste direito, que foi pela primeira vez inscrito num manifesto político de luta feminista em Portugal em 1974, quando foi fundada a associação feminista nascida na sequência do arquivamento do julgamento das três Marias, autoras das “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.
“Apesar de logo em 1977 termos tomado posição sobre o aborto, ainda era numa perspectiva de saúde das mulheres. É quando entramos na CNAC, ao conviver com alguns grupos e algumas feministas, que introduzimos a perspectiva dos direitos individuais e do direito ao corpo”, relata Manuela Tavares.
A legalização parcial da interrupção voluntária da gravidez ocorreria em 1984, pela mão do PS e pela acção de Maria Belo, mas logo em 1982 esta causa esteve na origem do primeiro “happening” político que ocorreu nas galerias do Parlamento português após o 25 de Abril, quando um grupo de doze mulheres, entre elas Manuela Tavares, Manuela Gois, Ester Muznik, Fernanda Marques e Isabel Pereira de Moura, se levantaram, despiram os casacos e, com letras pretas pintadas nas suas camisolas brancas, escreveram a palavra “ABORTO”.
Manuela Tavares não hesita em afirmar: “Apreendemos o caminho das contradições, aprendemos o caminho da autonomia, de pensar por nós, da não dependência financeira do partido. Tínhamos as nossas recolhas de fundos.” E garante: “ Sempre lançamos as questões com autonomia.”
Essa autonomia nasceu também da diversidade interna que a UMAR sempre alimentou. “Temos opiniões diferentes e isso é o que permite evoluir no pensamento, o debate interno”. E sempre avançaram com base nessa condição. “Quando fizemos o Congresso Feminista, em 2008, não estivemos à espera de outros, fizemos”, reconhece, explicando que a UMAR “é uma mistura de mulheres políticas”, com história de militância partidária, como ela própria, que foi da UDP, “com mulheres de cariz feminista desde o início” dando o exemplo de “Maria José Magalhães que sempre foi militante de organizações feministas”. Fazendo questão de acrescentar: “E temos mulheres feministas de sempre, que aderem à UMAR, como Maria Antónia Palla, e que nos dão muita força.”
Relação com o Estado
Além da diversidade interna de pensamento, a UMAR viveu um debate interno relacionado com a sua autonomia. “Também fizemos e fazemos um grande debate interno sobre como ocupamos o nosso espaço ou se vamos desempenhar o papel do Estado”, afirma Manuela Tavares que lembra que este problema está ligado à questão de “apoios e financiamentos”. Por isso a UMAR viveu sempre na fronteira da precariedade resultante do equilíbrio entre donativos e financiamento público. “Nos anos do cavaquismo, tivemos projectos financiados e nunca baixámos as nossas bandeiras, não ficámos condicionadas nem submetidas ao poder por recebermos verbas do Estado”, garante.
Foi esse limiar de precariedade que fez a UMAR andar com a casa às costas, mas “sempre a pagar renda”, sublinha Manuela Tavares, confessando: “Chegámos a reunir em casa da Adélia Pinhão, quando não havia sede.” O primeiro espaço foi nas Escadinhas de São Cristóvão, “era uma sede ocupada e a Mariana Charrua dormia lá”, relata. “Tivemos de entregar a casa e uma dirigente da UMAR, a Agostinha, que era do Sindicato das Carnes, na Rua da Paz, levou-nos para uma sala lá.” Seguiu-se o Seixal, depois a Rua da Madalena, sede que ardeu em 1995. Juntaram o espólio resgatado às chamas numa sala cedida pela Junta de Freguesia. “Depois, o João Soares [presidente da Câmara de Lisboa] arranjou-nos uma sede na Rua de São Lázaro. Mas com os anos começamos a ver que o edifício era pequeno e antigo e não tinha condições e começamos a lutar por outra sede. Apareceu-nos este espaço em Alcântara”.
Proximidade do real
É por isso tudo isto que Manuela Tavares advoga que “as características” que permitiram a UMAR evoluir e crescer foram “a clareza política e o saber como se mover em cada situação, o caminho de autonomia e o trabalho junto das mulheres”. Este último foi evoluindo também ao longo das décadas.
“A primeira aproximação ao real, ao concreto, foi pelo trabalho e emprego, inserida em projectos”, explica Manuela Tavares, frisando: “De uma pequena associação de agitação e propaganda, como passámos a uma associação reconhecida política e socialmente? É que demos o passo de que não bastava denunciar, era preciso agir sobre as situações.”
O primeiro projecto surgiu no Seixal, nos anos noventa, com trinta mulheres desempregadas pelo fecho da fábrica de cortiça Mundet. “Pegámos nas mulheres desempregadas e começámos a fazer formação, ao nível do desenvolvimento pessoal, para que não ficassem em casa, mas que tivessem uma perspectiva de vida.” O passo seguinte foi a criação, “pelo país, dos Gabinetes de Informação às Mulheres no Emprego”.
Ainda nos anos noventa surge o trabalho sobre violência doméstica, uma causa que vinha desde o início, assume Manuela Tavares: “A Anália Torres lançou, na revista ‘Mulheres de Abril’, o primeiro inquérito à violência familiar. Há mulheres que nos ajudaram a percorrer um caminho, a Anália Torres é uma delas.”
Foi no virar do milénio que a UMAR ficou encarregada pelo Estado de “gerir a primeira casa abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica”, lembra, referindo: “Esse percurso de apoio concreto e o acompanhamento dos casos, enquanto procuramos um percurso diferente para as mulheres, foi o que nos deu credibilidade e visibilidade. Temos neste domínio uma acção que nos torna numa associação de referência.”
No domínio da violência, em 2004, a UMAR lança o Observatório das Mulheres Assassinadas (OMA), que inicia então “os relatórios sobre o que a imprensa noticiava acerca da violência sobre as mulheres e o número de mulheres mortas”. Outra causa, esta mais recente, foi a do “assédio sexual no trabalho, que abriu o debate público sobre a questão”.
O risco do retrocesso
“Olhando para o que se avançou e para o que há para avançar, o que me preocupa são os retrocessos que podem surgir”, garante, reconhecendo que “é claro que há muito para resolver, por exemplo nas questões ligadas ao trabalho, à parentalidade, à violência na intimidade, à violação sexual, passando pela discriminação LGBT”, mas sublinhado que o que foi feito pode ter retrocessos em virtude da onda neoconservadora que existe na Europa”.
Lembra que a forma “como o anterior Governo introduziu retrocessos na lei do aborto” é um exemplo, acrescenta ainda o caso das “teses sobre a baixa-natalidade” como outro exemplo do que “é um tipo de discurso neoconservador”, que “penetra na sociedade” e para o qual “não há o contraponto de discurso feminista” em Portugal”.
Manuela Tavares defende que “há jovens despertas para o feminismo” e tem “confiança de que há pessoas a pensarem nas questões do feminismo”, Mas interroga-se: “Não sei como se faz recuar esse neoconservadorismo, nem sei se recuará no meu tempo.” Ao fim de décadas de luta política e de activismo social, Manuela Tavares desabafa: “Às vezes sinto que a UMAR não devia precisar de mim. Na sequência da morte da minha filha formou-se uma associação ambientalista em Aveloso do Sul, em São Pedro do Sul, que se chama FRAGAS. E eu vivo entre estes dois amores. Tenho que vir porque tenho de fazer a ligação histórica, para não se perder o fio. Sou uma ponte entre as mais antigas e as mais modernas.”
Dias depois da morte de Maria Isabel Barreno, autora de obras fundamentais no pensamento feminista como "Novas Cartas Portuguesas" e "A Morte da Mãe", que classifica como "uma das mentes mais brilhantes, capaz de teorizar com sustentabilidade, o que em Portugal há muito pouco", Manuela Tavares assume "a preocupação com a formação de jovens política e ideologicamente no feminismo", para confessar: "Tenho receio de que não haja pensamento consolidado em termos feministas, temos falta de debate sobre feminismo."
E conclui: "A transmissão do património feminista em Portugal é algo que me preocupa. Se não existir debate e reflexão, pode acabar a haver apenas feminismo institucionalizado. A UMAR irá ser completamente institucionalizada?"