Do cinismo de cá

Não sei se é nacional ou geracional, às tantas é dos dois lados, mas ninguém acredita em nada

Foto
Stephan Vance/Unsplash

É o que se arranja, tenha lá paciência, para safado safado e meio, vai pregar para outra freguesia, é por estas e por outras, para esse peditório já dei, é tudo a mesma cambada, farinha do mesmo saco... Usamo-las diariamente, estão debaixo da língua, sempre prontas a sair disparadas, a cortar rentes conversas que não queremos ter, sempre prontas a proteger-nos daquilo com que não queremos ter de lidar.

Não sei se é nacional ou geracional, às tantas é dos dois lados, mas ninguém acredita em nada. Uma geração depois do fim do império e do abortar da revolução somos todos perfeitos cínicos, com sonoros rebolar de olhos e silenciosos sopros (em “bof”, à parisiense) para os degenerados que ainda dão para alguma coisa: tolos ou malandros - cochichamos espertalhões entre nós — se novos românticos, se velhos esclerosados.

Estamos antigos, tristes, moídos da pancada... demasiado vividos para cair em esparrelas, demasiado vivaços para nos deixarmos viver, com corpos e almas demasiado preciosos para embarcar na tormenta dos ainda réus dalguma fé. Senão por nós pelos que vieram antes de nós, pelos papás dum lado e do outro, pelos avós quatrocentas vezes enganados, pelo Antero e o Eça que também queriam coisas e acabaram a engolir a derrota no exílio ou no Campo de São Francisco, mais o Ribeiro Sanches e o Camões e o Damião de Góis e mil outros antes deles... o amor e a esperança guardamo-las a sete chaves como recursos escassos que são. Não é perfeito, nem bom, nem sequer minimamente decente? E eu com isso, filho?! Que queres tu que eu te faça, que pregue aos peixinhos enquanto os vampiros se riem de boca cheia? Tens cada uma... massacre no Burkina-Faso: toma lá um “like” e não digas que vais daqui.

Que interessa que da “apatheia” (independência de espírito) dos velhos gregos tenhamos dado à luz a nossa muito útil e funcional apatia, ainda alguém sabe quem é o Diógenes? Que dos antigos cínicos gregos, que do poder só queriam que não lhes tapasse o sol, nos paríssemos a nós mesmos, que do cinismo fazemos escadote para chegar a um poderzinho qualquer, na mais baixa das hipóteses o de parecer moralmente superior nas “redes sociais”.

E no entanto, debaixo da carapaça protectora há sempre lá no fundo um bichinho afónico a urrar que o Tejo é lilás e os peixes não param de rir, que o que é não tem de ser assim para sempre, que fado e destino são música de pôr a dormir os meninos, que se calhar é agora a vez da vez de ser a minha vez de cantar... é que ser português é duro, mas ser humano é fatal. 

Sugerir correcção
Comentar