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Carla Oliveira, o mundo na palma da mão

Uma medalha de ouro no primeiro Open, uma presença no Campeonato do Mundo e a entrada em cena nos Jogos Paralímpicos. No último ano, a carreira desportiva da atleta de Lourosa acelerou. O Rio de Janeiro será só mais uma oportunidade para testar os limites.

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Demasiado pequeno. Há muito que o pavilhão do Agrupamento de Escolas António Alves Amorim, em Lourosa, se tornou demasiado pequeno para acomodar as ambições de Carla Oliveira. A atleta percorre os corredores interiores do recinto já a adivinhar o calor que se anuncia nos limites do terreno de jogo e as memórias que com ele ressurgirão. “Era aqui que eu costumava treinar-me e, às vezes, ainda cá venho”, expõe. Tal como está hoje, vazio, o espaço choca de frente com o cenário que encontrará quando entrar no Arena Carioca 2, no dia 10. À sua espera, estará uma estrutura com capacidade para 10.000 espectadores, que reunirá no Rio de Janeiro, durante sete dias, a elite mundial do boccia. À sua espera estará, acima de tudo, uma recompensa.

Carla segura a bola branca com subtileza e deixa-a deslizar pelos dedos da mão direita. Balança o braço três ou quatro vezes e mostra-lhe qual o caminho que quer que siga. Ela (que tecnicamente se chama jack ou bola-alvo) obedece-lhe, habituada que estará a reconhecer uma ordem precisa de comando. Poderíamos estar na presença de um dos três treinos semanais que a atleta cumpre habitualmente no Dragão Caixa, ao serviço do FC Porto, mas não. Este é o início de tarde em que a mais jovem representante do boccia português nos Jogos Paralímpicos 2016 está quase por nossa conta.

A história que a une ao desporto, porém, não é propriamente a declinação de um caso de amor à primeira vista. Foi preciso insistir, voltar à casa partida e começar a olhar para o boccia com maior abertura. “A primeira vez que tive contacto com a modalidade foi aos 14 anos e foi aí que percebi que não me dizia muito, até porque só podia entrar em competição aos 16 e não valia a pena treinar só pelo prazer do treino”, justifica. O ritmo mais pausado do jogo também não a convencia e as obrigações escolares não lhe deixavam muitos buracos na agenda. Por isso, quando lhe ligaram do FC Porto para saber se estaria interessada em juntar-se ao projecto de desporto adaptado do clube, acabou por deixar a proposta em stand-by.

O ponto de viragem estava ao dobrar da esquina dos 20 anos. Nessa altura, já com a licenciatura em Educação Social concluída – e atalhada pelo Processo de Bolonha -, tinham-se esgotado os argumentos para não dar uma segunda oportunidade ao boccia: “Decidi, então, ver o que a modalidade teria para me oferecer. E foi quando comecei a treinar e especialmente a competir que as coisas mudaram e comecei a ver o boccia de uma forma diferente, talvez por eu própria ser muito competitiva”.

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Aos poucos, Carla foi-se deixando levar pela componente estratégica do jogo, pela habilidade necessária para conseguir desmontar as paredes almofadadas que os adversários levantam. Uma bola alvo, seis bolas vermelhas para uma equipa (ou para um jogador a título individual) e outras tantas para o adversário. “O jogo pode ser mais defensivo ou mais de ataque e faz diferença o tipo de bolas que temos, porque umas são mais moles e outras mais duras. E consoante o tipo de bolas podemos fazer jogadas diferentes. Eu, tendo uma bola dura e sabendo que a do adversário é mais mole, com alguma força consigo afastá-la para permitir que eu pontue a seguir”.

É apenas um exemplo de uma situação concreta de jogo, mas ajuda a explicar o que está em causa. Neste microcosmos, em que só é possível responder a abordagens mais conservadoras com chapéus e lançamentos que permitem trepar sobre a bola adversária, são fundamentais a visão estratégia, claro, mas também a precisão e a força. E é este atributo que os atletas da classe BC4, que reúne competidores com doenças neuromusculares, têm de gerir com especial precaução.

“No final de um treino eu sinto um desgaste muito grande. É evidente que a prática desportiva é benéfica, mas o esforço tem de ser sempre muito ponderado, temos de conhecer os nossos limites, saber quando começa o cansaço a entrar, porque é mesmo uma questão muscular. Temos de saber parar, às vezes, durante o treino, não lançar tantas bolas… Enquanto um atleta de BC1 ou BC2 consegue controlar muito mais isso, nós chegamos a um ponto em que a rentabilidade já não é a mesma”. Fala quem sabe. Fala quem sente na pele a exigência do treino e os sinais de alerta do corpo.

Carla sabe até onde pode ir, mas também sabe que a doença degenerativa que a acompanha desde o berço não tem necessariamente de significar mais entraves do que oportunidades. A cadeira de rodas eléctrica dá-lhe maior autonomia e a necessidade que sente de rasgar fronteiras ajuda-a a multiplicar desafios. Foi essa ânsia de mundo, de se libertar de Lourosa, que a fez avançar para um mestrado no Porto e para um lugar cativo numa residência universitária. Aos 25 anos, estava mais do que nunca por sua conta e risco, mas também estava mais perto do que nunca do boccia.  

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A relação com o clube intensificou-se – ainda que a fadiga a obrigue muitas vezes a encurtar as sessões de três horas de treino –, a evolução confirmou-se e os resultados, que a nível nacional já eram encorajadores, subiram de patamar. Em Junho de 2015, no World Open realizado em Poznan, na Polónia, a estreia internacional pela selecção foi retumbante: “Foi a primeira competição fora do país e trouxemos a medalha de ouro em pares. Foi muito bom”.

Não foi só o troféu que Carla Oliveira trouxe consigo para Portugal, foi experiência competitiva e bagagem extra para atacar um objectivo mais ambicioso: o Campeonato do Mundo, na China. “Vi-me obrigada a treinar mais. Estava a estudar, a fazer mestrado, a fazer estágio e houve dias em que tive de pedir para não ir ao estágio para poder treinar, até porque um treino não rende tanto ao final do dia, por causa do cansaço acumulado”.

Foi uma decisão tão certeira como os seus lançamentos, ainda que a experiência na Ásia tenha sido agridoce. Quando aterrou em Pequim, já em Março deste ano, sabia que tinha pela frente a possibilidade de se apurar para a prova individual no Rio de Janeiro e de contribuir também para o ranking de pares. Acabaria por perder os três jogos disputados no Grupo D (frente ao coreano Sungkyu Kim, à atleta de Hong Kong Wai Lau e ao compatriota Domingos Vieira), falhando uma das portas da qualificação, mas nunca perdeu a esperança.

“O objectivo, que era ficar à frente da atleta grega [Chrysi Morfi-Metzou] para ir aos Jogos Paralímpicos, não foi atingido, mas foi muito bom, porque consegui deixar um bocadinho a tremer atletas que já competem há muitos anos. Tenho noção de que sou ainda muito verde no boccia, até porque há colegas que têm tantos anos de boccia como eu de vida”, reconhece. A verdade é que, por essa altura, Portugal estava fora das Paralimpíadas em BC4 e, sem mais competições no horizonte para pontuar até aos Jogos, o sonho parecia condenado. Até que… “A rapariga da Hungria foi desclassificada”. “O que é que acontece? A Hungria estava em oitavo lugar no ranking e iam os oito primeiros competir ao Brasil. Como ela foi desclassificada e não havia ninguém para a substituir, entrámos nós, que estávamos em nono. Foi quase um milagre”.

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Milagre é uma palavra que faz todo o sentido no dicionário de Carla. A fé serve-lhe muitas vezes de lanterna e ajuda-a a transpor os bosques mais escuros, naqueles dias virados do avesso. Dias de excepção, ainda assim, porque é luminosa a forma como se apresenta, como comunica, como interage. De resto, a solidez de princípios e a robustez mental – “Nunca tive problemas de auto-estima” são atributos que não passam despercebidos e que se revelam especialmente úteis no contexto desportivo. “Aquilo que os asiáticos têm muito é aquela frieza em jogo. Até podem nem ter feito uma boa jogada, mas não demonstram. E nós somos muito mais transparentes, daí ser necessário trabalhar a parte psicológica”, alerta.

Passamos a pente fino o ranking mundial da classe BC4 e não demoramos a perceber quão rápida tem sido a evolução de Carla Oliveira nos labirintos do boccia. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis – há apenas seis mulheres à sua frente numa hierarquia em que, se não fizermos distinção de género, ocupa a 40.ª posição. E porque, no caso em apreço, a ambição é quase um estado de alma, a atleta de 26 anos assume que quer chegar também a Tóquio, no próximo ciclo paralímpico, para competir na prova individual. Até lá, porém, não esconde a vontade de ir subindo outros degraus, fora do rectângulo de jogo: “Eu ambiciono ter uma carreira, casar, ter filhos e fazer uma vida perfeitamente normal. Eu sei que para muitas pessoas com limitações isto nem sequer é um objectivo, mas eu vejo isto tudo a acontecer”.

Ao rol de batalhas que tem pela frente, Carla junta o combate à discriminação social – e admite que por vezes ainda é abordada na rua pelas piores razões – e ao alheamento que existe na sociedade portuguesa em relação ao boccia. Nesse sentido, vem mesmo a calhar a pergunta que lhe dirigimos de seguida: “O desporto não ajuda a esbater as diferenças?”. A resposta é eloquente: “Dentro da competição, dentro do pavilhão, é muito o nosso mundo e quando saímos pela porta é o mundo de toda a gente”. E o mundo de toda a gente oscila entre o desconhecimento e a indiferença face à modalidade.

Está a chegar ao fim o “treino” improvisado em Lourosa e a mãe de Carla, o cimento que lhe suporta a carreira, repõe o equipamento na mala enquanto nos explica que a falta de uniformidade no enchimento e no revestimento das bolas provoca desigualdade na competição e que o problema ainda não tem solução à vista. Mas esse é apenas um detalhe, um obstáculo “micro” num contexto de soluções “macro”. O retrato perfeito chega-nos pela mão da atleta, uma mão que parece agarrar o mundo de uma vez só: “O boccia é muito isso, é a superação dos nossos limites, porque não há desculpa para não praticar desporto quando existe uma modalidade que se adapta tão bem às nossas dificuldades”.

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