Keziah Jones deu um concerto na minha sala
E se de repente um músico nigeriano tocar em sua casa, isso são as Lisbon Living Room Sessions, um conceito de concerto que dispensa sala de espectáculos – a menos que seja uma sala de estar.
O rapaz da guitarra está sentado numa cadeira junto à parede do fundo. Vira o instrumento ao contrário, deitando-o no colo com o braço a apontar para fora e começa a executar uma manobra estranha: com as duas mãos percute o corpo da guitarra e num dos tempos ataca as cordas em dois sítios, produzindo dois acordes diferentes. Ao mesmo tempo canta e há uma ginga incomum neste processo: por um lado, estamos na dúvida se ele vai conseguir safar-se desta ou não; por outro, o ritmo é irresistível.
Algures alguém, uma rapariga, levanta-se. De seguida vê-se que há mais um par de mulheres a conversar entre si sobre o tema “Podemos ou não levantar-nos e abanar o corpo?”, até que por fim decidem que sim, que dançar é uma actividade socialmente aceite e aqui vai disto, já são três corpos em movimento. Quando se dá por ela, toda a sala - isto é coisa para praí uma centena de pessoas - se entregou à dança. Do lado direito do artista está um tipo de rastas e pólo vermelho que canta em contraponto e a festa está oficialmente instalada.
Ora, isto não é um concerto. Não é uma sala de concertos, não há posters a anunciar, não há ninguém a recolher bilhetes, nem sequer há bilhetes. Por outro lado, isto é um concerto: há gente para ver, há um músico e apesar do tom informal não há uma canção que não seja exemplarmente executada. Na realidade, em certa medida é mais do que um concerto: antes da música propriamente dita uma das organizadoras, Joanna Hecker, faz a introdução de Keziah Jones, o artista – através de streaming, já que ela está em Nova Iorque, a fazer um doutoramento. É praticamente um discurso, que contextualiza a música, o homem, as questões políticas presentes na obra do nigeriano. Não se tem direito a isto, num clube.
Música para a comunidade
Chamam-se Lisbon Living Room Sessions e são, por assim dizer, uma alternativa ao circuito de concertos tradicionais que a cidade oferece. Acontecem uma vez por mês, mais propriamente às 18 horas do último domingo de cada mês, e decorrem sempre na sala de estar de casa de, bom, alguém – os anfitriões vão mudando, as casas vão mudando, de modo a que cada concerto decorra numa casa que faça sentido, tendo em conta a música.
Não há bilhetes nem cachet para os músicos. Há vinho e aperitivos para quem aparece. No fim, Ricardo Lopes, que organiza estas sessões com Joanna, faz rodar uma caixa rectangular, de metal: é ali que é suposto os convidados – os espectadores – depositarem o donativo que quiserem, para ser distribuído entre músicos e organizadores. “Nós costumamos dizer que idealmente as pessoas podem doar dez euros, mas já tivemos quem desse menos e já tivemos quem desse 50 euros. E nunca nenhum artista pediu cachet fixo”, explica Ricardo, na noite da segunda-feira seguinte, enquanto comemos um hambúrguer e bebemos uma imperial.
De certa maneira ele já fez isto, deixou de fazer e agora retornou. Há muitos anos este membro da CoolTrain Crew organizou as Leiria Jazz Sessions que depois evoluíram para o que são hoje as Lx Jazz Sessions no bar Bicaense, todas as quartas-feiras; depois foi passear e um dia, após voltar a Lisboa, deu por si a pensar que esta era a melhor maneira de ver concertos.
“Eu e a Joanna estávamos num bar no Cais do Sodré, tínhamos ido lá para ver um concerto de flamenco. Mas as restantes pessoas no bar, no fundo, não assistiam ao concerto, porque não se calavam – depois percebemos que estas pessoas estavam numa festa de Natal. Mas mesmo depois de lhes pedirmos para fazerem pouco barulho, para respeitarem os músicos, para deixarem ouvir quem ali foi pela música, mesmo assim não se calaram, continuaram a falar. Eu tinha saído de casa de propósito para ouvir música. Achei isto um desrespeito – pelos músicos, pela música, pelos melómanos. E comecei a pensar numa forma alternativa de se ouvir música”.
Isto há mais de 20 meses – sendo que, entretanto, já houve mais de 20 concertos, que incluem “projectos esteticamente diferentes – é um dos nossos pontos de ordem: não ficarmos confinados a um registo”. O grau de exposição não é importante: Danae Estrela, que esteve na sessão de Julho, é mais conhecida que os Forró Mior, mas que importa isso? O que importa é “fazer com que a arte chegue ao maior número de pessoas”, porque, diz Ricardo Lopes, a preocupação central das Lisbon Living Room Session “é a comunidade”.
Pôr um projecto destes em marcha, por mais informal que seja, não se resume a ter uma ideia e aqui vai disto: tudo tem de ser pensado ao limite. E porque é necessário que ”tudo tem de ser uma experiência, desde o momento em que mandas um mail a pedir para estar presente no concerto até quando sais pela porta no final”, é preciso ter jogo de anca para levar a cabo a tarefa da forma mais profissional possível.
E é assim que se explicam as dezenas de garrafas de vinho oferecidas pela Esporão e o material de amplificação, filmagem e gravação emprestados pela Yamaha: “Sem patrocínios isto não seria possível”.
Os patrocínios são conseguidos graças ao passado de Ricardo: “Eu fiz publicidade até 2007, e paralelamente à minha actividade profissional organizava as Lisbon Jazz Sessions. As pessoas das marcas conhecem-me e sabem que levo as coisas até ao fim, que sou consequente. Só assim se consegue isto”. Em 2010 Ricardo deixou a publicidade e foi viajar: “Era para ter sido durante três semanas mas acabou por ser durante dois anos”. Quando voltou não lhe apeteceu mais trabalhar a tempo inteiro em publicidade, mas manteve os contactos e a matriz de pensamento, continuou a saber como organizar um evento, como o comunicar.
Em cima do momento
Mas por mais pensadas que as coisas sejam há em tudo isto um lado de improviso ou, pelo menos, um lado informal. Como, por exemplo, e por mais estranho que pareça, a escolha dos artistas em questão: “A última coisa em que pensamos é no nome da próxima sessão. Só pensamos nisso em cima da hora, achamos que a pressão da aproximação da data nos vai tornar mais imaginativos”.
Tome-se o caso da estrela de domingo, dia 28, Keziah Jones: Ricardo Lopes conheceu-o poucos dias antes do concerto. “Foi numa noite de fados com o Pedro Moutinho, aqui há uns dias. Soube que ia estar cá um par de semanas, expliquei-lhe o que era e ele aceitou”.
No dia seguinte almoçámos com o músico nigeriano, que nos contou que “não era para ter tocado com a guitarra acústica” que tocou. “A minha guitarra ficou no aeroporto, ainda não ma devolveram. Era para tocar com essa guitarra, que é eléctrica e cheia de pedais e ficaria um som demasiado pesado para aquela sala. Foi melhor assim”.
Keziah fez o sound-check à frente de toda a gente e no fim dialogou com os fãs que se deslocaram àquela casa. No dia seguinte telefonou a Ricardo a agradecer ter tido aquela oportunidade. Keziah é um artista internacional que anda em digressão há dois anos. Não são os aplausos de 100 pessoas que o comovem; é, talvez a situação.
“É mais íntimo”, diz ele, sentado numa esplanada de Lisboa, antes de fazer uma confissão: “Sabes aquilo que eu fiz, de batucar na guitarra? Era o que eu fazia quando comecei a tocar nas ruas de Londres [tinha ele 18 anos]. Eu comecei assim, sozinho com a guitarra – se bem que nessa altura tocava na rua e quando tocas na rua tens de chamar rapidamente a atenção das pessoas, tens de criar rapidamente o teu espaço, senão as pessoas não olham para ti.” Foi buscar esse truque, apesar de a situação se diferente: “Estava toda a gente em cima de mim, não há barreira. Mas é ali que se vê se as canções são boas, se tens talento – porque se não consegues tocar uma canção só com voz e guitarra, então alguma coisa falhou”.
Para os músicos “isto são momentos especiais, uma experiência única”, diz o mentor das Lisbon Living Room Session, confessando que naquele domingo uma quinzena de pessoas ficou naquela casa até às cinco da manhã e que os anfitriões desencantaram comida e bebida sabe-se lá de onde, para servir gente que não conheciam. “Não tens ideia dos amigos que já se fizeram ali, das noitadas que aconteceram, da quantidade de pessoas que foram dizer aos músicos que adoraram”.
Dá uma dentada no hambúrguer que demorou meia-hora a chegar: “Porque isto é algo mais pessoal em que não és apenas um consumidor passivo”. No fim fizeram-nos um desconto nos hambúrgueres. Porque a boa vontade é importante.