O meu chocolate será justo?

O comércio justo, nascido nos anos 60 como forma alternativa ao sistema mundial, mudou nas últimas décadas. Hoje atrai grandes empresas – e as críticas dos que acham que se desviou da filosofia original. Como podemos saber se um chocolate é mesmo justo?

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Nos últimos anos surgiram divergências no mundo do comércio justo. Apesar dos números positivos dados pelas grandes instituições de fair trade, há relatórios que indicam fracos resultados junto daqueles que deviam ser os principais beneficiados. Por outro lado, a entrada de novos actores como a grande distribuição e as multinacionais veio alterar os dados da equação, aumentando muito a escala, mas, afirmam os mais críticos, afastando o projecto da sua filosofia inicial. E, no meio de tudo isto, como fica o consumidor que quer comprar produtos “justos”?

O que é o comércio justo?

A consciência dos desequilíbrios no comércio mundial e a preocupação em arranjar uma forma de compensar justamente o trabalho dos produtores de matérias-primas nos países do Sul surgiram nos anos 60. As primeiras iniciativas, que partiram de países como os Estados Unidos, a Holanda ou o Reino Unido, passavam pela importação de artesanato da América Latina e a sensibilização dos consumidores ocidentais para a ideia de pagar um preço justo. Surgiram as Lojas do Mundo, onde os consumidores dispostos a pagar um pouco mais podiam encontrar estes produtos.

Por seu lado, os produtores (sempre de pequena escala e organizados em cooperativas) que beneficiam da certificação têm de cumprir algumas exigências que garantam um desenvolvimento sustentável (visto como uma melhor alternativa às ajudas económicas aos países do Terceiro Mundo): protecção dos direitos dos trabalhadores das respectivas plantações, inclusão de mulheres, adopção de técnicas amigas do ambiente.

Existem mecanismos para verificar o cumprimento dessas exigências e as cooperativas têm de pagar o selo de certificação. Em 1988 surgiu a primeira empresa de comércio justo, a Max Havelaar, que hoje integra a maior instituição de comércio justo, a Fairtrade Internacional, criada em 1997 e detida em 50% por organizações de produtores (e que tem a empresa de certificação Flo-Cert).

O preço dos produtos de comércio justo é geralmente mais alto, porque há um preço mínimo garantido aos produtores (fundamental para quando há um excesso de oferta e o valor do produto cai a pique) e porque há um “prémio” que vai para projectos de desenvolvimento nos países do Sul. Um exemplo: o sal biológico da Quinta da Fornalha, no Algarve, é vendido na Loja Comércio Justo do Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral (CIDAC), em Lisboa a 1,10 euros o quilo, enquanto no convencional um quilo de sal colhido à mão (sem indicação sobre se é ou não biológico) custa 0,92 euros. Mas também pode acontecer os preços serem mais baratos: uma tablette de 90 gramas de chocolate com 75% de cacau custa 2,17 euros na Loja Comércio Justo e outra com 100 gramas, 70% de cacau, sem informação sobre a origem dos ingredientes, custa 2,79 euros no convencional.

Que produtos cabem no comércio justo?

 Os principais produtos abrangidos pelo fair trade são actualmente o cacau, o café, as bananas, o chá, o algodão e o arroz, mas o leque tem vindo a crescer e já inclui também, por exemplo, flores e ouro. Um dos problemas é que, apesar de toda a produção ser certificada, só cerca de um terço consegue ser vendida como fair trade devido à ainda baixa procura desse tipo de produtos. O lucro tem de ser suficiente para permitir aos produtores pagarem a certificação e terem dinheiro para investir no negócio e garantir o cumprimento das exigências.

E funciona?

As opiniões divergem. A Fairtrade International garante que sim e apresenta no seu site números para o provar: existem hoje em dia mais de 1,65 milhões de camponeses e produtores ligados a organizações com certificação Fairtrade; destes, 26% são mulheres; há 1226 organizações de produtores certificadas pela Fairtrade em 74 países; estas investem 31% do seu prémio fair trade em “investimentos que desenvolvem a produtividade ou melhoram a qualidade”; nos anos de 2013-14 foram pagos 106,2 milhões de dólares em prémios Fairtrade; e nas plantações os trabalhadores gastaram mais de 26% desse dinheiro em educação.

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Café, um dos principais produtos abrangidos pelo "fair trade" getty images

Segundo a Fairtrade, tem havido também um crescimento das vendas na Europa, sendo o Reino Unido o melhor mercado para o comércio justo.

Por outro lado, há estudos que indicam que o dinheiro feito com o comércio justo não tem beneficiado os agricultores pobres. Um desses estudos foi realizado em 2014 pela Soas Universidade de Londres e financiado pelo Governo britânico. Centrado nos produtores de flores, café e chá no Uganda e Etiópia, o estudo, citado pelo The Guardian, concluiu, entre outras coisas, que havia crianças a trabalhar em propriedades agrícolas produzindo produtos certificados pela Fairtrade e que mesmo entre os adultos os ordenados eram extremamente baixos.

O que é que mudou entretanto?

O modelo das Lojas do Mundo começou a ser visto como limitado, o comércio justo revelou-se como uma aposta apetecível e na década de 90 começaram a entrar em cena novos actores – a grande distribuição por um lado e, por outro, multinacionais como a Nestlé, a Starbucks ou os gelados Ben & Jerry, atraídos pela oportunidade de oferecer a imagem de empresas com preocupações sociais.

Por seu lado, a certificação Fairtrade sofreu alterações, criando critérios mais flexíveis.

O que dizem os críticos?

Dizem que houve um afastamento da filosofia original do movimento que era a de encontrar, para o comércio justo, canais alternativos que não passassem pela grande distribuição. E que a recente flexibilização de critérios tem efeitos negativos. Hoje, ao contrário do que acontecia anteriormente, para certificar um produto como sendo de comércio justo basta que um dos seus ingredientes cumpra os critérios exigidos – o que significa que num chocolate certificado pode existir cacau de comércio justo e açúcar comprado a uma empresa que explora os seus trabalhadores, não lhes dando condições ou não lhes pagando de forma digna, por exemplo.

Os diferentes níveis de exigência resultaram também em diferentes selos, que tornam a escolha dos consumidores mais complicada. Num artigo sobre o tema, Samuel Poos, do Trade for Development Center, da Agência Belga para o Desenvolvimento, dá um exemplo: uma t-shirt que leve apenas 10% de algodão pode ter o selo Fairtrade desde que esse algodão seja comércio justo e os outros componentes não. Para o consumidor, aquele é um produto de comércio justo, quando na verdade só o é em 10%.

Para os críticos, é também um problema que a certificação seja um negócio, porque, dizem, isso leva as empresas a baixar os critérios e níveis de exigênci, esperando com isso conquistar mais clientes. Há ainda a questão da cadeia de comercialização. Os critérios de exigência aplicados aos produtores – que são o elo mais fraco – já não se aplicam às empresas que compõem o resto da cadeia e que dela retiram benefícios económicos, dos transportadores aos supermercados.

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Na Europa há um crescimento das vendas de produtos abrangidos pelo comércio justo, sendo o Reino Unido o melhor mercado getty images

E como se defende a Faitrade International?

Argumentando que a alteração de critérios constitui um incentivo para cada vez mais e maiores empresas integrarem produtos fair trade no que vendem e que só conquistando esta escala maior se conseguem resultados para os produtores. A decisão é uma tentativa de resposta ao problema de só um terço de toda a produção que é certificada ser efectivamente vendida como tal, porque o mercado do comércio justo não absorve mais – ou seja, é uma forma de conseguir escoar mais.

Há outro problema ligado a essa dificuldade de escoamento: como o produto fair trade tem um preço mínimo garantido, quando há um aumento da procura, o produtor pode optar por pôr a sua produção de maior qualidade à venda no comércio convencional, conseguindo preços mais altos. O resultado é que o produto de menor qualidade vai para o fair trade onde já tem um preço mínimo garantido. Aumentar a quota de comércio justo, nem que seja apenas parcialmente, é, por isso, uma prioridade para a Fairtrade.

Existem alternativas?

Sim, existem algumas organizações de comércio justo mais pequenas, que têm os seus próprios sistemas de certificação, mas sempre numa escala muito menor. Rejeitando o comércio através das grandes superfícies, usam em alternativa as lojas locais de comércio justo.

O comércio justo só funciona do Norte para o Sul?

Sim, essa era a ideia original do movimento – conseguir reequilibrar o comércio mundial, claramente desfavorável para os países do Sul. Mas nos últimos anos, mesmo dentro do movimento, têm surgido vozes que questionam que tenha de se limitar a essa relação norte-sul. E perguntam: por que não incluir também produtores de pequena escala nos países do Norte, que enfrentam igualmente grandes dificuldades no acesso aos mercados?

E em Portugal?

Em Portugal, grande parte do trabalho de divulgação da filosofia do comércio justo (de acordo com o princípio de que a sensibilização dos consumidores é fundamental) tem sido feito pelo CIDAC, que tem uma loja de comércio justo aberta ao público (na Rua Tomás Ribeiro, em Lisboa) desde 2011. (Existem ainda uma loja no Porto gerida pela Associação Reviravolta e uma em Amarante, gerida pelo Aventura Marão Clube.)

O objectivo é resistir à transferência do comércio justo para a esfera dos supermercados. Pertencem a uma rede ibérica de associações que se posicionam de forma crítica em relação ao actual sistema de certificação da Fairtrade International e procuram oferecer vias alternativas.

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Colheita do arroz na Tailândia para a primeira empresa de comércio justo, a Max Havelaar, que hoje integra a Fairtrade Internacional Patrick AVENTURIER/getty images

Por outro lado, como explicou ao PÚBLICO Stéphane Laurent, do CIDAC, defendem o alargamento da ideia de comércio justo aos produtores nacionais. Por isso, na loja de Lisboa (que funciona também como centro de recolha dos cabazes Prove, projecto que junta vários produtores e permite o melhor escoamento de produtos agrícolas locais) é possível encontrar, a par de produtos vindos da América Latina ou de África, alguns produtores portugueses: azeite, sal, ervas aromáticas, compotas, leguminosas e ainda brinquedos tradicionais em madeira, do Algarve, ou roupa da cooperativa de artesãs Capuchinhas da aldeia de Campo Benfeito, perto de Castro Daire.

Rosa Dias, da Quinta da Fornalha, é um dos produtores representados na loja, com o seu sal. Grande defensora do comércio justo, tentou, em nome de uma cooperativa de produtores de sal do Algarve, pedir a certificação Fairtrade. “Levámos um rotundo não, porque pertencemos à Europa e para eles todos os produtores dos países do Norte são ricos.”

E, no entanto, argumenta, faz todo o sentido aplicar a ideia de comércio justo aos pequenos produtores do Norte. “Nós vendemos sal artesanal a empresas alemãs a 8,5 cêntimos o quilo. Eles embalam-no e vendem-no por 6,5 euros o quilo. É um aumento das margens de lucro gigantesco, que enriquece alguns sectores da economia à custa de explorar uns tantos que não têm alternativa.”

Explica que as grandes superfícies esmagam os preços e fazem promoções à custa dos produtores. “São eles que ditam as regras do jogo – e é um jogo de alto risco. Se há alguma falha do produtor em relação ao que foi contratualizado, somos altamente penalizados.” Muitos acabam por não sobreviver, diz, porque entretanto se tornaram totalmente dependentes de uma grande superfície e, quando algo corre mal, não têm alternativa.

Na sua quinta, Rosa compra produtos de comércio justo (açúcar, chocolate) necessários para algumas das suas produções, que incluem também frutos, porque acredita que é a única forma ética de agir. Desiludiu-se já com o comércio de produtos biológicos, porque acha que este se reduziu à questão de ter ou não químicos, quando inicialmente o biológico correspondia também a uma ética, que tinha que ver com o respeito pelo trabalho dos produtores e pela natureza. “Essa filosofia do bio foi-se perdendo e hoje as pessoas querem lá saber quem fez o produto, desde que tenha o selo.” Por isso, acredita que hoje o caminho deve ser pelo comércio justo, que permite uma proximidade entre produtor e consumidor – apesar de reconhecer que é um mercado ainda mínimo em Portugal.

Da parte do CIDAC, este é, diz Stéphane, um trabalho que tem sido feito de forma gradual e cuidadosa, para identificar o tipo de produtores com os quais querem trabalhar – no fundo, dando-lhes uma espécie de certificação informal pelo facto de venderem os produtos deles na sua loja. Aos clientes que querem saber mais sobre determinado projecto, a loja fornece toda a informação, recolhida em entrevistas com os produtores, que permite contar a história por detrás de cada produto.

“Temos de demonstrar pela prática que é possível fazer comércio de outra maneira”, conclui Stéphane. “Houve uma grande campanha da Max Havelaar que dizia algo como ‘Bebe um café de comércio justo e dorme de consciência tranquila’. Nós queremos precisamente o contrário, queremos que as pessoas despertem. Temos uma luta permanente contra a simplificação. É preciso manter o desafio de comunicar a complexidade.”

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Planta do algodão. Uma t-shirt que leve apenas 10% de algodão pode ter o selo Fairtrade desde que esse algodão seja comércio justo e os outros componentes não getty images
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