Enquanto toda a gente continua presa em Gaza (menos 15 animais)

O Hamas ser hoje um poder repressor em Gaza é o resultado da corrupção cega da Autoridade Palestiniana, e da manutenção do estado das coisas por parte dos EUA e da UE, que favorece apenas a ocupação israelita.

1. São seis da tarde num jardim em Ramallah, a casa está tostada como pão de sésamo, o sol bate na cara da plateia e Suad Amiry sugere que usem o seu último livro como pala. Foi para o apresentar nesta quinta-feira, 25 de Agosto, que ela veio de Itália, onde mora, para a Cisjordânia, onde também mora. Escreveu-o em inglês, como os anteriores (começando pelo inesperado best-seller Sharon e a Minha Sogra). Chamou-lhe My Damascus, 200 páginas de memórias familiares desde o século XIX, mas é menos um livro sobre Damasco do que sobre o tempo em que Síria, Líbano, Jordânia e Palestina eram a Grande Síria, e os antepassados de Suad podiam viajar entre Gaza e Damasco em camelos ou cavalos. Quando o avô comprou um Oldsmobile quase antes de toda a gente, a multidão matutou nos animais que estariam escondidos no motor. Cem anos depois, o mundo andou tão para trás em alguns sentidos que já não é possível fazer essa viagem, e há checkpoints onde uma pessoa tem menos hipóteses do que um camelo. Assim é com os sobreviventes do zoológico de Gaza, que neste Verão de 2016 (dois anos depois de a última vaga de bombas israelitas ter feito mais de dois mil mortos) estão enfim a deixar a pior prisão do mundo, depois de dezenas de animais já terem morrido à fome ou nas bombas, e enquanto quase dois milhões de pessoas continuam lá dentro. E assim foi com o cão de Suad, admitido mais facilmente em Jerusalém do que ela mesma, tetraneta de quem governou a Palestina.

2. O doce do jasmim está no auge, as romãs um pouco atrasadas, um gato pula para o muro do jardim, acomoda-se e, por entre os humanos recém-chegados, segue o rasto azul-eléctrico das flores bordadas no colete-túnica de Suad Amiry. A esmagadora maioria das mulheres presentes tem a cabeça descoberta, tal como ela, mas não os braços assim nus aos 65 anos. Não por acaso, um dos livros que Suad escreveu em Ramallah chama-se Menopausal Palestine, fala do que não se fala nesta sociedade, e começa com o seu choque pelo facto de o Hamas ter ganho as eleições em 2006. Suad fechou-se em casa deprimida, até aceitar, ao fim de um mês, que isso era um sinal de como a sua geração na OLP, a dos envolvidos nas negociações pré-Oslo, tinha fracassado contra a ocupação de Israel.

3. Morei aqui nos meses antes e durante essas eleições, há dez anos, vi esse fracasso acontecer, assisti à reacção. E neste longo Verão de 2016 com eixo em Jerusalém, depois de percorrer a Cisjordânia, e de uma correspondência com a Faixa de Gaza que desde o ano passado se tornou dramática de formas inéditas, eu acrescentaria: o facto de o Hamas ser hoje um poder repressor em Gaza, ameaçando e perseguindo palestinianos que já eram reféns de Israel e agora são duplamente reféns, continua a ser um resultado desse naufrágio das elites, da corrupção cega da Autoridade Palestiniana (AP) e da manutenção do estado das coisas por parte dos EUA, da UE e de organizações internacionais, um estado das coisas que favorece apenas a ocupação israelita, com colonatos proliferando como ratos num queijo, imunes e impunes. Encurralar o Hamas em 2006, como fez a AP com apoio EUA-UE, vitimizou-o e deu-lhe força. Em vez de deixar o balão esvaziar, continuaram a soprar nele. Deu e dá imenso jeito ao poder em Israel para bombardear Gaza e enfiar o dente na Cisjordânia, continuando a vender a uma parte do mundo que assim protege os judeus. Uma maioria dos israelitas quer acreditar nisso, pelo menos a suficiente para eleger governos de direita uns atrás dos outros, enquanto a economia estiver aparentemente boa para a classe média, e enquanto não rebentarem as desigualdades e tensões (sociais, étnicas, religiosas) que dividem Israel, um país cada vez mais negacionista, onde muita gente paga para não ver.

4. A casa com jardim onde o lançamento de My Damascus acontece é a sede da Riwaq, fundada por Suad Amary para reabilitar o património palestiniano. Ser uma contadora de histórias é recente, antes disso estão décadas de arquitectura. E, se os políticos da sua geração pouco fizeram pela Palestina, o que a Riwaq faz não se desfaz no ar. Há dez anos, acompanhei o violetista Ramzi Aburedwan (que tocou em Portugal com Daniel Barenboim) no começo da sua escola de música em Ramallah, a Al Kamandjati. Voltei lá agora a ver como estava tudo (muito vivo, notícias em breve), já nem me lembrava de que a Riwaq é que recuperara aquela ruína da Cidade Velha de Ramallah. E, lendo My Damascus, parece apenas natural que Suad não só se tenha tornado arquitecta, mas que lute para que o passado não desapareça do futuro. Reclamar a beleza, a festa, o apetite também é política. No caso da Palestina, talvez de toda esta parte do mundo, uma política que faz muita falta.

5. A casa central em My Damascus, comprada pelo avô de Suad no começo do século XX, era um palácio de 1737 com 24 divisões, várias alas, fontes, pátios, terraços, azulejos, mosaicos, tectos pintados, mármores de Carrara. Isto, no centro da Cidade Velha, junto à Grande Mesquita dos Omíadas. Até à barbárie em curso, creio que poucos lugares no mundo se comparavam ao esplendor da Cidade Velha de Damasco, como poucos países no mundo se comparavam ao património da Síria. Jerusalém parecia pobre perto de Damasco há cem anos, conta Suad, embora Damasco sonhasse ser Istambul, a capital do Império Otomano. Istambul tem certamente uma escala mais monumental, mas as Cidades Velhas de Damasco ou Alepo pareceram-me mais raras, íntimas e misteriosas. O requinte da Síria era algo quase intacto há apenas sete anos, apesar daquela ditadura criminosa, e palácios como o que Suad descreve estavam lá, com as suas discretas paredes escondendo a maravilha interior. No jardim de Ramallah, Suad disse que em criança se sentia a Alice no País das Maravilhas. As sextas-feiras começavam com várias rondas de cafés, depois o banho semanal no hammam, para esfregar corpo e cabeça sete vezes com sabão de mirtilo, seguindo-se um almoço de dezenas de pratos, com dezenas de convidados, até tudo colapsar numa sesta. Um tempo tão doce quanto brutal, em que meninas de dez anos eram entregues como noivas a homens de quarenta já com duas mulheres, meninas negras eram dadas de presente e ficavam como escravas, e o abuso, a violação, o incesto eram segredos mal escondidos. Mundo tribal de várias caras, onde o que contava era ter filhos homens, mas também um mundo em que a vizinha do lado podia ser judia, e vinha fazer os partos das muçulmanas. Suad desenterra tudo isto na sua própria família muçulmana e arredores, mais tios alcoólicos, tias tiranas, e tudo é parte da esfoliação bem-humorada que ela pratica. Várias classes deste mundo atravessam o livro mas os seus primeiros leitores têm pelo menos um pé fora dele. Entre a autora, o marido e co-apresentador (Salim Tamari, sociólogo) e a plateia, neste lançamento, falou-se quase sempre inglês, língua em que Suad escolheu escrever, definindo assim um público que não será o da maioria dos palestinianos, mas talvez o de milhões que pouco leram sobre a Palestina. Só tardiamente ela foi traduzida em árabe, e nem todos os livros. Filha de pai palestiniano e mãe síria, neta de sírio e turco, educada em Damasco, Jerusalém, Amã e Beirute, a viver em Nova Iorque, além de Itália e Ramallah, Suad escreve para um mundo aberto. De resto, o que mais lhe custa na ocupação israelita, disse, é o corte com o mundo árabe, mediterrânico, e este livro também será sobre pertencer a esses vários lugares. O direito de ir e vir entre os demónios e a beleza.

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