Juízes temem não ser possível reabrir 20 tribunais dentro de quatro meses
Cerimónia solene de abertura do ano judicial tem lugar esta quinta-feira, abrilhantada por Marcelo Rebelo de Sousa. Na justiça quase todos se queixam da falta de funcionários judiciais. Móveis de contentores de Loures vão ser usados na comarca de Leiria.
A menos de 24 horas da cerimónia solene de abertura do ano judicial, que tem lugar esta manhã, os funcionários do vetusto Supremo Tribunal de Justiça preparavam-se para a invasão daquela ala do Terreiro do Paço.
“É o efeito Marcelo”, ouve-se dizer, numa referência ao circo mediático que costuma atrair a presença do Presidente da República. Será a sua primeira abertura solene do ano judicial nestas funções, e há estações televisivas que duplicaram o número de pessoas que vão mandar para cobrir um evento que conta com 250 convidados vestidos a preceito – que é como quem diz de toga ou beca.
Todos querem saber o que vai dizer no seu discurso Marcelo, que antecipou para Setembro um evento que habitualmente só acontece em Outubro, e nunca da parte da manhã. A presença do presidente da Assembleia da República, que usará da palavra, também suscita alguma curiosidade, até porque nem todos esqueceram a frase fatal que foi ouvido a dizer ao telefone a António Costa nas escutas do processo Casa Pia, e que mais tarde havia de alegar ter sido tirada do contexto: “Estou-me cagando para o segredo de justiça”.
Mais de uma década passada sobre estas palavras, poucos se atrevem a atirar a primeira pedra: o que lá vai, lá vai. “O que pode ser melindroso não é a presença de Ferro Rodrigues, mas o seu discurso. Tenho curiosidade sobre o que vai dizer, até porque não se trata propriamente de alguém muito subtil”, observa o presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, numa referência aos subentendidos de que estão recheadas as intervenções públicas nestas ocasiões, e em mais um ano judicial a ser marcado por processos como os de José Sócrates, Ricardo Salgado ou a teia de cumplicidades do caso dos vistos Gold, que tem o ex-ministro Miguel Macedo como arguido.
No centro das atenções estará ainda a ministra da Justiça, Francisca van Dunem. Será capaz de cumprir o que prometeu, reabrir daqui a quatro meses os 20 tribunais fechados em 2014 em vários pontos do país? A magistrada continua por enquanto a assegurar que sim, apesar de reconhecer que o caminho ainda por percorrer é moroso e se encontra longe de estar concluído. “Pese embora o processo legislativo estar dependente da Assembleia da República, o Governo está empenhado em efectivar as alterações à lei – designadamente as relativas aos 20 tribunais a reactivar, bem como o ‘alargamento’ da competência material das actuais secções de proximidade, de molde a que ali venham a ser efectuados julgamentos criminais - em Janeiro de 2017”, diz o seu gabinete de imprensa. “Uma vez publicada a legislação, todos os tribunais que se prevê serem reactivados sê-lo-ão. O único processo que se prevê poder vir a ser faseado é o dos desdobramentos [de competências judiciais] na área de Família e Menores”, acrescenta.
"Cosmética política"?
Vários juízes com responsabilidades no terreno temem, porém, que isso se revele uma missão impossível. E há mesmo quem fale numa “medida de cosmética política”: os tribunais reabertos funcionarão apenas com um juiz não residente e um ou dois funcionários.
João Pires da Silva, o magistrado judicial que preside à comarca de Santarém, onde deverão abrir os tribunais de Mação e Ferreira do Zêzere, é um dos que põem o dedo na ferida: “Não existem oficiais de justiça suficientes para os serviços actuais, quanto mais para a abertura de novos serviços”. Quando se estica o cobertor para tapar os pés, fica a cabeça de fora: a transferência obrigatória de funcionários de outros pontos da comarca para Mação e Ferreira do Zêzere criará “constrangimentos” nos serviços que ficam sem eles. O mesmo juiz fala ainda de outro “enorme constrangimento”: a falta de veículos ao serviço da comarca para transportar magistrados e funcionários para os serviços que vão reabrir.
“De momento, a comarca não tem condições para a abertura, em Janeiro, do Tribunal do Bombarral, por faltarem vários recursos”, declara igualmente a juíza que superintende aos tribunais do distrito de Leiria, Patrícia Helena Costa. A seguir apresenta aquilo que se assemelha quase a um caderno de reivindicações: “A comarca conta que a administração central proceda à nomeação de funcionários novos (além de inferior ao quadro previsto, o número de funcionários actualmente em funções já é insuficiente para acorrer a todas as solicitações), fornecimento de equipamentos e mobílias, bem como um orçamento de acordo com o acréscimo das despesas”. De móveis, até agora só chegou parte da mobília necessária à sala de audiências, “vinda de um contentor que deixou de ser necessário no tribunal de Loures, e que terá de ser adaptada” ao seu novo destino.
Carência de funcionários
O cenário assemelha-se ao de Santarém: caso não sejam enviados novos oficiais de justiça, terá de os subtrair a outro tribunal da comarca, “prejudicando os serviços já com carência de quadros”.
“Isto está no limite”, corrobora o presidente da comarca de Aveiro, Paulo Brandão, sobre o problema - que já se tornou crónico na justiça portuguesa, e que a própria ministra classifica como dramático. Reabrir em Janeiro o tribunal de Sever do Vouga é, para este magistrado, mesmo assim exequível – mas vai avisando do prejuízo: “Não vamos ficar com bons serviços nem em Sever, nem em Águeda, nem em Albergaria. A manta não estica”.
Pelo menos nalguns casos, como Francisca van Dunem também já anunciou, a solução passará por pedir emprestados funcionários às autarquias, para desempenharem tarefas menos especializadas
“O Governo faz o que quer. Não nos compete discutir”, resigna-se a presidente da comarca de Viseu, Maria José Monteiro Guerra, a respeito da reorganização prevista, que não vê com bons olhos a criação de instâncias judiciais com competências na área de família e menores em Cinfães e Moimenta da Beira: “Desvirtua o modelo” de reorganização judiciária lançado em 2014.
Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, sediado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, elogia a anunciada descentralização dos tribunais de família e menores, por entender que este é o tipo de justiça que tem de estar, a par da laboral, mais próxima das populações, a quem com frequência faltam recursos para se deslocarem as vezes necessárias a tribunais distantes. A investigadora critica o facto de um dos princípios da reforma feita dos tribunais em 2014, a propalada especialização dos magistrados em diferentes áreas, não ter passado do papel: “Os tribunais podem chamar-se de família e menores ou do trabalho, mas não existe obrigatoriedade de especialização prévia dos magistrados que aí prestam serviço”.
Quanto à falta de funcionários, diz que tem de ser demonstrada, depois de o funcionamento das secretarias dos tribunais e restantes serviços ser submetido a uma reorganização interna que lhe permita ganhar eficiência.
Uma posição em que parece, porém, estar isolada: a bastonária dos advogados e a Associação Sindical dos Juízes Portugueses também clamam por mais oficiais de justiça. “Senão, as mudanças planeadas vão claudicar”, antevê a vice-presidente desta última associação, Manuela Paupério. A juíza alerta para outro facto: ainda existem tribunais sem condições mínimas de funcionamento. Quando chega a altura de falar sobre o que se passar em Janeiro de 2017, baixa a voz: “Creio que não haverá condições para reabrir os 20 tribunais. Será muito difícil”.