Ela não sabe cantar
A surpresa não é que Meryl Streep seja excelente como a pior cantora do mundo, é que Stephen Frears tenha aqui o seu melhor filme em muito tempo.
No espaço de um ano, a história de Florence Foster Jenkins, “a pior cantora do mundo”, socialite nova-iorquina cuja generosidade como patrona das artes compensava a sua falta de talento, deu origem a dois filmes. Um era uma ficção “inspirada por” - Marguerite, de Xavier Giannoli – e vimo-lo no ano passado. O outro chega agora e, pela sua própria natureza, chuta para canto mediático o contudo excelente filme de Giannoli. Não por ser melhor ou pior ou diferente, mas porque é Meryl Streep quem interpreta Florence numa adaptação razoavelmente fiel aos factos da história, e o seu nome chega e sobra para ofuscar tudo à sua volta.
Precisamente por isso, é preciso notar que Meryl Streep está longe de ser o principal, motivo de interesse de Florence, uma Diva Fora de Tom. De modo surpreendentemente próximo do que Giannoli fazia em Marguerite, é muito menos a história da falta de noção do talento que interessa ao argumentista Nicholas Martin e ao realizador Stephen Frears. Acima de tudo, este é um filme sobre o curioso triângulo que se forma entre Florence, o marido e “facilitador” St. Clair Bayfield (Hugh Grant, no seu melhor papel em muitos anos) e o pianista Cosmé McMoon (Simon Helberg, da série televisiva A Teoria do Big Bang), parte elogio da diferença, parte incentivo ao sonho, parte defesa da dignidade. Estaria toda a gente a aproveitar-se da ingenuidade ou do dinheiro de Florence? A própria Florence teria noção disso? Ou estariam todos conscientes e marimbaram-se para o assunto em nome da liberdade, e da verdade, de ser quem queremos ser contra ventos e marés?
Já tínhamos saudades de ver Stephen Frears em boa forma - desde A Rainha (2006) que só Chéri (2009) esteve ao seu melhor nível – e a melhor prova disso é a recusa de reduzir a história de Florence à simples comédia do desastre ou ao simples show de actriz. Não é a busca da felicidade de uma mulher que Frears filma (o que Giannoli fazia), mas sim a teia de relações que a sua personalidade vai criando quase sem o saber. Se Marguerite era no filme de Giannoli uma espécie de “buraco negro” para onde tudo convergia, Florence é no filme de Frears um de vários planetas contíguos que se vão orbitando e cujas decisões, irreflectidas ou genuínas, acabam por se afectar mutuamente. O melhor exemplo disso é que Frears dá, aos seus actores, o espaço e o tempo necessários para que as personagens existam para lá do simples “boneco” para o qual podiam escorregar, tenham uma inteireza tridimensional que não se fica pela rama. Florence não é uma socialite despassarada, St. Clair não é um arrivista cínico. E acreditem que é de Hugh Grant que nos vamos lembrar quando pensarmos neste filme, não só porque tem um papel onde ferrar os dentes mas porque Meryl Streep não tem problemas em dar-lhe o filme de bandeja.
Florence, uma Diva Fora de Tom não é melhor filme que Marguerite: nos seus momentos menos inspirados refugia-se em demasia no escudo da “qualidade inglesa”. Mas não lhe fica muito atrás. É um daqueles casos em que saímos todos a ganhar com duas versões da mesma história.