O fim de um pesadelo: obrigado, BCE

Há dias em que vale mesmo a pena termos instituições supranacionais, que ponham juízo nalgumas cabeças indígenas.

 

Naquele que é considerado o melhor filme de sempre, o Citizen Kane de Orson Welles, passado no longínquo ano de 1941, um jornalista consegue obter uma entrevista com o presidente do conselho de administração duma grande empresa e, preocupado, promete ao interlocutor que lhe tomará o mínimo tempo possível. Ao que o entrevistado responde: “Meu caro, o que eu tenho mais é tempo. Sou o presidente do conselho de administração.” Estávamos na época em que o “politicamente correcto” ainda não tinha nascido.

Vamos acreditar, ou fingir que acreditamos, que os administradores das empresas agora trabalham imenso. Por essa razão certamente, o novo conselho de administração da Caixa Geral de Depósitos iria ter — nunca se percebeu por ideia de quem — 19 administradores, sendo 12 não executivos.

Quem já trabalhou directamente com conselhos de administração de empresas públicas ou privadas, fosse na qualidade de director, assessor, secretário ou simplesmente a servir chá e bolinhos, sabe que um administrador não executivo é, ao fim ao cabo, uma inutilidade que custa dinheiro.

Numa empresa privada que pague os seus impostos, manda a liberdade que os donos da empresa possam remunerar os seus filhos, sobrinhos, compadres e amigos com cargos de administrador não executivo, ao invés de lhes transferirem simplesmente uma mesada. Mas num banco público a necessitar de aumento de capital, com imparidades colossais, em vez de admitir quadros bancários qualificados, projectava-se aumentar o conselho de administração com 12 administradores não executivos. Uma espécie de assembleia geral de administradores. Porque não 24 ou 36, já agora?

Mas o insólito não terminava aqui. Quem eram os presuntivos administradores não executivos? Eram administradores executivos de clientes da própria Caixa (esta condição de cliente estamos a presumir, dada que a dimensão destas empresas e da própria Caixa indiciam que o sejam). Por que razão o accionista Estado escolheria para administradores não executivos da Caixa administradores executivos da Unicer, Peugeot-Citroën, Sonae, Renova, Sogrape, Fundação Champalimaud ou Porto Bay? Porque não da Heineken, da Autoeuropa, da Portucel, da Fundação Gulbenkian ou do Vila Galé? Ou foram sorteados por rifas? Não eram experts bancários e está fora de causa que precisassem de uma simbólica remuneração da Caixa. Então, num mundo cheio de suspeições, muitas infundadas certamente, onde está o bom senso de quem convida e de quem aceita desempenhar cargos nestas condições? Se o sigilo é a “alma do negócio” bancário, em que posição ficariam os restantes clientes, concorrentes daqueles que agora se sentariam na administração de quem empresta dinheiro a ambos? Há coisas que, de facto, é mais saudável nem percebermos.

A segunda questão controversa foram os vencimentos que os administradores executivos irão auferir. Neste caso, se os vencimentos estão em linha com o que se paga nos bancos privados, tudo parece correcto.

Outra coisa é o elevado nível dos vencimentos e prémios para os gestores da banca, nacional e internacional, pública e privada, doente ou completamente falida, que continua a ser praticado e perante o que todos os políticos se põem obedientemente de cócoras.

Para gerir bancos são necessárias algumas qualificações. Um curso de Gestão, uma boa agenda de contactos e saber as “manhas do ofício”. Pertencer a uma família conhecida ajuda. Mas as exigências são modestas, se comparadas com outras actividades. Os bancos não são a NASA, não produzem tecnologia ou inventam medicamentos. Criaram a sua própria importância e o poder político deixou, mas, de facto, apenas continuam a ser a segunda mais antiga profissão do mundo.

Perante mais este “arranjinho”, que a nível nacional iria passar com meia dúzia de protestos regimentais no Parlamento, o Banco Central Europeu simplesmente vetou-o.

Não vai haver 12 gestores não executivos na Caixa. Vão ser 11 administradores e apenas quatro deles serão não executivos.

Há dias em que nos sentimos muito zangados, com a nossa impotência face aos ditames europeus. Mas há outros em que vale mesmo a pena termos instituições supranacionais que ponham juízo nalgumas cabeças indígenas. Fazer Portugal sair do séc. XIX continua a ser muito difícil e o séc. XX já lá vai.

Jurista

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