"Estamos a um passo do golpe de Estado", diz Dilma

Discurso inicial de defesa da Presidente do Brasil recheado de críticas ao Presidente interino, Michel Temer: “Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia".

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A Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, não poupou nas palavras na sua defesa perante o Senado, no julgamento em que deverá ser destituída do cargo, do qual está suspensa desde Maio: “Cassar o meu mandato é como submeter-me a uma pena de morte política”, afirmou, fazendo comparações com o seu julgamento durante a ditadura. Neste momento, disse, o Brasil está “a um passo de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado”.

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A Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, não poupou nas palavras na sua defesa perante o Senado, no julgamento em que deverá ser destituída do cargo, do qual está suspensa desde Maio: “Cassar o meu mandato é como submeter-me a uma pena de morte política”, afirmou, fazendo comparações com o seu julgamento durante a ditadura. Neste momento, disse, o Brasil está “a um passo de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado”.

Como golpistas não hesitou em identificar Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados eleito pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), acusado dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no processo de corrupção da Petrobras investigado pela operação Lava Jato.

Cunha deveria ser um aliado no Governo mas tornou-se  o pior inimigo de Rousseff: “Todos sabem que esse processo de impeachment teve início numa chantagem explícita do ex-presidente da Câmara”, afirmou a política do Partido dos Trabalhadores, que não deve ter quaisquer hipóteses de manter o mandato.

A chantagem teve a ver com as suspeitas de corrupção de que foi alvo, na Lava Jato, como as de que recebera um suborno de cinco milhões de dólares e além tinha contas na Suíça, com “despesas completamente incompatíveis com os seus rendimentos lícitos”. Durante o ano de 2015, Cunha tentou forçar o partido de Dilma a votar para o proteger da investigação, em troca de a manter a salvo do impeachment – que começou a ser falado pouco depois de Rousseff tomar posse para o segundo mandato, no início de 2015.

A sua vitória apertada nas eleições presidenciais de 2014, face a Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), diz Rousseff, foram o verdadeiro gatilho de todo este processo. “A possibilidade de impeachment tornou-se o assunto principal nos media dois meses após minha eleição, apesar da falta da fundamentação evidente”, acusou a ainda Presidente brasileira.

“Arquitectaram a minha destituição, independentemente de quaisquer factos que pudessem justificar a minha destituição”, afirmou. “Não cometam o crime de condenar uma inocente.”

“Pedaladas” em causa

As acusações contra Rousseff, nas quais se baseia o processo de destituição, são de violação da lei da responsabilidade orçamental. Têm a ver com suspeitas de que teria manipulado as contas públicas (as chamadas “pedaladas fiscais”) para mascarar a verdadeira dimensão do défice público no orçamento federal, escondendo assim a crise económica até ao último momento, com vista à reeleição em 2014.

Os senadores confrontaram-na com a acusação de ter usado dinheiro dos bancos estatais para aumentar o investimento público durante o ano eleitoral de 2014. Rousseff respondeu que este dinheiro não teve impacto no défice total e foi pago no ano seguinte.

Em suma, a Presidente defende-se destas acusações – muitos analistas dizem que esta contabilidade criativa não é muito diferente da realizada por outros governos. Foi o que disse o ex-ministro da Economia, Nelson Barbosa, ouvido como testemunha. Mas para os acusadores, como o senador Cássio Cunha Lima (Partido da Social Democracia Brasileira, PSDB), o que está em causa é “a maior fraude orçamental da história do país”.

“Vocês estão criminalizando a política orçamental”, acusa a Presidente. “Desde 2009 nós começámos a enfrentar a maior crise que houve no mundo depois de 1929”, diz Rousseff, respondendo às perguntas dos senadores no plenário, justificando-se com a crise internacional pós-2008 e do seu impacte na economia brasileira.

“As provas produzidas deixam claro que as acusações contra mim são meros pretextos”, sublinhou a Presidente, cuja popularidade ronda os 13%. Se Dilma Rousseff perder o mandato, não poderá ser eleita para cargos públicos durante oito anos.

As previsões actuais, feitas pelo site Atlas Político, apontam para que 55 senadores votem a favor da destituição, e 26 contra.

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Lula da Silva e Chico Buarque assistem ao julgamento de Rousseff no Senado EVARISTO SA/AFP

 “A senhora falseia a história sobre a natureza do processo que estamos vivendo", acusou Aloysio Nunes, senador do PSDB, o partido de Aécio Neves, o rival de Rousseff nas presidenciais de 2014. “Têm a sua assinatura os decretos que quando foram emitidos não estavam em conformidade na época. De caso pensado cometeu os crimes e se apresenta agora como vítima de um golpe”, disse, sem aceitar os argumentos da Presidente para recusar as acusações de “crime de responsabilidade” nas manipulações do Orçamento do Estado.

Mas estas manipulações, e as contestadas eleições que lhe permitiram continuar no Palácio do Planalto, deram-se num contexto de insatisfação alargada na classe média, com grandes protestos nas principais cidades em 2013, e já com o estoirar da verdadeira bomba de fragmentação em que se tornou a investigação Lava-jato, que descobriu como políticos e partidos se aproveitavam da empresa petrolífera estatal Petrobras para financiar as suas campanhas – e também a sua vida privada.

Embora nunca ninguém tenha descoberto nada que visasse concretamente Rousseff – a sua honestidade pessoal nunca foi posta em causa –, a Presidente convivia com esse sistema político que ninguém duvida que seja corrupto. E nem Lula da Silva, o seu antecessor e maior apoio político, escapou às suspeitas.

Temer e democracia

“Peço que façam justiça a uma Presidente honesta. Votem contra o impeachmentVotem a democracia”, pediu Dilma. “Não luto pelo meu mandato, por vaidade ou por apego ao poder. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu país”, declarou.

Os opositores da Presidente ficaram irritados porque a Presidente não reconheceu erros no confronto no Senado.

O seu discurso foi cheio de críticas ao Presidente interino, Michel Temer, que de seu apoiante se tornou um inimigo durante o processo de destituição. “Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a cobardia. Aos quase 70 anos de idade, não seria agora, sendo mãe e avó, que abriria mão dos meus princípios”.

Mencionou o facto de o Governo Temer ser composto maioritariamente por homens brancos, e ter um programa mais interessado em acomodar os interesses dos mercados do que nas medidas sociais. “É um Governo que dispensa negros na sua governação, que revela desprezo pelo programa escolhido pelos eleitores em 2014. O que está em jogo no processo de impeachment não é só o meu mandato. O que está em jogo é o respeito pelos eleitores, a Constituição, os ganhos do últimos 13 anos, conquistas da classe média, jovens, valorização do salário mínimo, os médicos atendendo a população, o sonho de casa própria”, afirmou Dilma Rousseff.

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Manifestação de apoio a Rousseff frente ao Congresso dos Deputados, em Brasília Bruno Kelly/REUTERS

Nas redes sociais, reproduz-se a batalha que se joga no interior do Senado: os partidários de Dilma promovem a hashtag #PelaDemocracia no Twitter e os opositores dizem #TchauQuerida no Facebook, relata o site Broadcast Político.

Destituição e depois?

Se Rousseff for mesmo destituída, o que virá a seguir? Miguel Rossetto, ex-ministro trabalhista do Governo Dilma, sugeriu na Folha de São Paulo que o partido pode ir à luta pela realização de eleições directas, para escolher uma nova maioria parlamentar e um novo Governo.

O PT não apoiou a iniciativa de Rousseff na semana passada, quando apelou a um referendo para consultar a população sobre a possibilidade de realizar novas eleições presidenciais. Mas legislativas poderá ser diferente, sobretudo se houver uma reacção forte contra as políticas de Temer, disse Rossetto.

A coligação que agora apoia o Governo Temer também dá alguns sinais de ruptura. O PSBD de Aécio Neves está já a pensar nas presidenciais de 2018, diz o El País Brasil, e procura diferenciar-se do seu aliado de circunstância. Se Temer, do PMDB, for confirmado na presidência, os tucanos (o animal símbolo do social-democratas brasileiras) podem sair do Governo. Neste momento, o PSDB tem dois ministros: José Serra, das Relações Exteriores, e Bruno Araújo, das Cidades.