O perigo
O desfecho das eleições presidenciais americanas de 2016 pode significar um aumento significativo da enorme incerteza em que todos vivemos dentro e fora dos Estados Unidos.
O desfecho das eleições presidenciais americanas de 2016 pode significar um aumento significativo da enorme incerteza em que todos vivemos dentro e fora dos Estados Unidos. Donald Trump, após uma sequência de eventos que surpreendeu muita gente, é hoje o candidato oficial do Partido Republicano à presidência dos EUA. Trump, desde sempre um iconoclasta arrogante e imprevisível, é certamente, mesmo em termos históricos, o candidato mais perigoso ao cargo mais importante da política mundial. A sua longa carreira evidenciou sempre características opostas às necessárias para um exercício adequado de tais funções: instabilidade emocional—muitas vezes patente, ainda que real ou ficcionada--, desprezo pelos mais elementares princípios éticos, aparente—ou, como julgo, real—ignorância sobre temas cruciais da área de defesa e segurança internacionais, misoginia social e enunciação de princípios de política económica anacrónicos e contraditórios. Já para não falar da evolução errática das suas posições ao longo do tempo.
Assim sendo, resulta ainda mais enigmático o papel crucial que Trump hoje tem na cena política americana e que, vade retro, poderá vir a ter na cena internacional. Porém, não é preciso enveredar por profundas reflexões sociológicas ou políticas para perceber a ascensão meteórica na cena política de alguém como o actual candidato republicano. Trump é fruto de dois fenómenos infelizmente bem conhecidos: a popularidade crescente de demagogos populistas nas nações do chamado mundo ocidental desenvolvido e as singularidades ideológicas do partido que oficialmente o apoia.
Os grandes partidos americanos não têm historicamente a unidade ideológica dos partidos europeus. Porém, os últimos 30 anos têm ajudado a transformar o Partido Republicano num albergue espanhol de vários tipos de conservadorismo, alguns verdadeiramente esotéricos e inesperados para um não-americano. Embora também os houvesse (e ainda existem) no Partido Democrático, foi entre os republicanos que se acolheram diferentes tipos de fundamentalistas cristãos, inicialmente geograficamente concentrados no chamado "Bible Belt" e que trouxeram ao partido uma agenda muito conservadora, nomeadamente em matéria de costumes. Posteriormente, a emergência do Tea Party, com a sua interpretação literal da Constituição, fazendo tábua rasa de duzentos anos de jurisprudência do Supremo Tribunal e da evolução entretanto processada no que foi sendo o pensamento do partido (que apenas surgiu várias dezenas de anos após a constituição), levou parte importante do partido ainda mais no sentido do que poderemos chamar uma direita libertária, conservadora e acérrima defensora de um papel minimalista para o governo federal.
A esta radicalização do Grand Old Party—ou, mais rigorosamente, de uma boa parte dele—juntaram-se os efeitos da globalização, da continuada pressão imigratória, sobretudo na fronteira sul, o empobrecimento de parte relevante da antiga classe média branca e a insegurança crescente do ambiente internacional. Se a radicalização do Partido Republicano explica, em parte, a aceitação de alguém como Trump, é este cadinho de problemas e frustrações que garante o seu sucesso, pelo menos numa primeira fase. É um fenómeno, aliás, semelhante ao do crescimento de forças extremistas, à esquerda e à direita, na Europa e ao sucesso que teve um candidato tão anti-sistema como o radical liberal (sentido americano) Bernie Sanders. Ou seja, as dificuldades de adaptação de boa parte da população ao Mundo Global em que vamos vivendo fez emergir poderosas alternativas de ruptura, quase sempre perigosas e pouco amigas da democracia tal como a temos conhecido. Trump é apenas uma dessas figuras. O problema é que não se candidata a presidente da Áustria, ou a Primeiro Ministro da Grécia, mas sim ao posto mais poderoso do Globo. Ter alguém assim em tal posição, deixa de ser um problema nacional ou regional e torna-se numa questão de relevância mundial.
Mesmo que não seja eleito, como gostaria que acontecesse, o "fenómeno Trump" é um sério aviso à América e ao Mundo. À América pois só surge neste momento alguém com estas características na medida em que os sucessivos presidentes foram-se revelando incapazes de manter generalizadamente os padrões de vida do passado, de assegurar um contexto razoavelmente previsível na cena internacional e de resolver ou, pelo menos, minimizar toda uma outra série de problemas sociais que se foram acumulando. Os Estados Unidos têm hoje uma larga faixa de população insatisfeita e sem perspectivas como nunca tiveram no passado. Assim sendo, Trump pode deixar de ser um fenómeno isolado. É um aviso ao Mundo, não só porque este tipo de candidatos são hoje muito mais numerosos em muitos mais países, mas também porque a experiência do passado pouco nos ensina sobre como lidar com uma América em que os valores da democracia, da liberdade e da solidariedade com a Europa tenham desaparecido.
Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, viveu no estado do Illinois entre Agosto de 1984 e Agosto de 1988