Proibição do burkini divide Governo francês
Tribunal administrativo decide hoje se suspende ou interdição do polémico fato-de-banho. ONU e Amnistia Internacional sublinham que é preciso respeitar a dignidade das pessoas.
Perante a profunda divisão que a polémica do burkini criou no Governo francês, o Conselho de Estado – que funciona como tribunal administrativo e como instituição de aconselhamento do executivo nas decisões administrativas – optou por adiar desta quinta-feira para amanhã o seu veredicto sobre o assunto.
O Conselho reuniu a pedido da Liga dos Direitos Humanos francesa, que considera ilegal a proibições do burkini, imposta por alguns presidentes de câmara de zonas costeiras, sobretudo na Côte d'Azur. O burkini é um fato de banho de corpo inteiro usado sobretudo por mulheres muçulmanas, o seu nome junta biquini com burqa.
O Conselho de Estado não pode determinar se as proibições são ou não ilegais. O que vai decidir sexta-feira é se há fundamentos para suspender essas regras aprovadas pelos municípios, até que um julgamento sobre a legalidade das mesmas possa ser organizado, o que pode levar meses.
A decisão deveria ter sido tomada esta quinta-feira, mas o debate político sobre o tema foi tão aceso ao longo do dia entre os membros do Governo socialista do Presidente François Hollande – onde há posições contraditórias –, que o veredicto foi adiado.
“Sou contra o burkini. Sonho com uma sociedade em que as mulheres sejam livres e se orgulhem dos seus corpos”, disse esta quarta-feira a ministra da Educação, Najat Vallaud-Belkacem, à rádio Europe 1. Mas Vallaud-Belkacem é contra as proibições: “Estas proibições não são bem-vindas. É uma questão de liberdades individuais".
A posição da ministra chocou com a do primeiro-ministro, Manuel Valls, que já demonstrara o seu apoio às ordens de proibição do burkini na passada semana, e que esta quinta-feira reforçou a sua posição, afirmando que a França está presa numa “batalha de culturas” e que o burkini simboliza a “escravização da mulher”.
Valls rejeitou que as proibições sejam "uma deriva". "Isso é uma má interpretação dos factos", disse à televisão BFMTV. As proibições, explicou, foram feitas para evitar conflitos nas praias, mas considerou que peças como o burkini são "sinais de reivindicação de um islamismo político" cujo objectivo é "fazer retroceder a República no espaço público".
O uso de burkini é um tema sensível em França, devido aos mais recentes ataques terroristas reivindicados pelo Estado Islâmico em Nice – uma das localidades que proibiu este modelo de fato de banho e onde a 14 de Julho, feriado, dia da Bastilha, 84 pessoas morreram e 200 ficaram feridas – e numa igreja na Normandia. A ministra da Educação disse que o terrorismo não deve ser relacionado com a proibição do burkini: “Não há nada que estabeleça uma relação entre o terrorismo do Estado Islâmico e aquilo que uma mulher veste na praia".
Polícias armados andam pelas praias francesas a fazer aplicar as proibições, o que tem gerado reacções diversas. Na terça-feira, na praia do Passeio dos Ingleses de Nice (onde aconteceu o massacre do Dia da Bastilha), uma mulher foi obrigada a tirar as peças de roupa que os polícias consideraram não respeitarem “os bons costumes e o secularismo”. "Vai para o teu país”, gritaram-lhes outras pessoas na praia e aplaudiram a polícia. Siam, a protagonista desta história, nem sequer estava a usar um burkini, apenas uma túnica de manga comprida e um lenço amarrado na cabeça.
Estas ordens de proibição, que começaram em Cannes, pelas mãos do autarca David Lisnard, não contemplam, no entanto, qualquer outro traje ou sinal de religião além do burkini – o kipá judaico e o crucifixo católico são permitidos.
As imagens do que aconteceu na praia do Passeio dos Ingleses rapidamente provocaram uma onda de contestação que reclama pelo respeito dos direitos fundamentais. David Thomson, jornalista francês que acompanha a actividade jihadista, referiu à Radio France que as “fotografias de Nice vão alimentar anos de propaganda jihadista".
As críticas às proibições surgiram também da Organização das Nações Unidas, através de declarações de Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral Ban Ki-moon, que afirmou ser “importante que a dignidade dos indivíduos seja respeitada”. A Aministia Internacional também reagiu à polémica. “O caso que foi agora submetido [ao Conselho de Estado] oferece uma oportunidade à Justiça francesa para anular uma proibição que é discriminatória e que está a alimentar e é alimentada por preconceitos e intolerância”, disse em comunicado divulgado esta quinta-feira o diretor da Amnistia Internacional para a Europa, John Dalhuisen.
Além destas ordens instituídas municipalmente, a França aprovou em 2010 a lei da burqa, que proíbe qualquer mulher, em qualquer espaço público, de ter a cara coberta – Valls votou a favor. Proíbe também o uso de "símbolos religiosos ostensivos", tais como o véu islâmico, a kipá judaica ou cruzes cristãs nas escolas públicas.
Depois do caso de Siam, a polémica cresceu e parece alastrar-se além do burkini, tornando-se numa questão fracturante no debate político. Na quarta-feira, o ministro do Interior Bernard Cazeneuve reuniu de urgência com membros do Conselho Francês da Fé Muçulmana e referiu que as medidas não podem “estigmatizar” as pessoas nem “colocá-las umas contra as outras”.
Nicolas Sarkozy, o candidato à presidência nas eleições de 2017 pelo partido Os Republicanos (direita) também já se pronunciou dizendo que os burkinis são uma “provocação”, de acordo com o The Guardian.
Por outro lado, Aheda Zanetti, designer responsável pelos burkinis, diz que criou a peça para as mulheres obedecerem aos mandamentos do islão e poderem praticar desporto ou ir à praia. “Acredito que os franceses não compreenderam e nem sabem como é um burkini e aquilo que representa”, referiu a criadora.
Texto editado por Ana Gomes Ferreira