Na rua, nos cafés, nos jornais, nas televisões ou nas redes sociais, multiplicam-se insultos e ofensas de forma aberta e orgulhosamente assumidos. Dos mais abertamente repudiados aos tido como mais inocentes, sucedem-se as afirmações bacocas de que tais termos insultuosos e ofensivos são proferidos à luz de um auto-assumido direito ao politicamente incorrecto. Lá nisso têm razão: são incorrectos; mas devem ser denominados pelo que verdadeiramente são: politicamente estúpidos.
Gostava de poder referir um episódio, um daqueles momentos inspiradores, tipo epifania, que fosse suficientemente clarividente sobre uma qualquer descoberta ou percepção da importância do politicamente correcto (PC). Não foi assim. Julgo que raramente o será. O PC surge sempre através de confrontação, de um choque interno, que nos põe em rota de colisão interna com estereótipos e preconceitos que resultam de um perpetuar normativo derivado da imposição de valores e conceitos das forças predominantes na sociedade. E sim, o facto é que, espanto, a maioria avassaladora das sociedades é heteronormativa e patriarcal. A portuguesa e as restantes sociedades europeias são, também, predominantemente brancas e classistas. É assim há mais de 2000 anos no velho continente e não, não mudou assim tão profundamente ainda hoje.
Da mesma forma que as sociedades sofrem transformações, fruto do confronto ou do compromisso entre diferentes realidades, evolui também a língua. Querer uma língua estanque, presa a valores e conceitos que sofrem eles próprios transformações pela natural procura de adequação à realidade quotidiana, é tão bacoco quanto pretender que a sociedade permaneça permanentemente assente nas mesmas dinâmicas relacionais, quando elas naturalmente se alteram. Os exemplos multiplicam-se e são fáceis de compreender se se fizer um esforço simples de olhar em retrospetiva para a forma como as palavras sempre foram instrumentos utilizados em prol da manutenção de estigmas sociais e a separação absoluta entre os que detinham o poder para discriminar aqueles que não o possuíam. A segregação racial oferece, historicamente, o exemplo recente mais elucidativo da força vocabular da discriminação: “pretos”, “escarumba”, “escurinhos”, “de cor”, “macacos”, entre tantos outros termos, foram – e são – sempre utilizados como forma de assegurar a diferenciação entre dominantes e dominados, na lógica de impedir a alteração desse "status quo".
Quando se observa a contestação actual ao vocabulário vulgarmente utilizado nas referências a pessoas do sexo feminino ou a pessoas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros e Intersexuais), não raras vezes se fazem ouvir as vozes que contestam, normalmente de forma inconsistente e indistinta, o denominado politicamente correcto. No topo da cadeia social de onde escrevo — homem, branco, heterossexual e de classe média —, discriminação foi coisa que nunca senti. Entendo-a, mas como factor externo, identifico-a nas suas formas, mas sempre como algo imposto a outrem; e sei que para compreender as suas totais implicações, faço-o com recurso à tentativa de vestir uma pele que nunca será a minha. O que também me parece evidente é que, actualmente, a negação da sua existência física e linguística, é tão absurda quanto hoje nos é claro que absurda também foi no passado. Sim, “puta”, “rameira”, “vulgar”, “oferecida”, “mal-fodida”, “maricas”, “paneleiro”, “rabeta”, “indefinido/a”, “dar para os dois lados” ou, mais simplesmente, a total, consciente e voluntária ausência de procura do conhecimento é sempre insultuoso. Sempre. Não diminui, discrimina ou ofende só às vezes. Quem com estes termos é discriminado e diminuído na sua essência, no seu direito natural à existência e à igualdade, é-o sempre que estes ou outros termos são utilizados. E este repúdio assumido, a recusa activa de modificação de comportamentos e linguagem não é, nem nunca será, a defesa de qualquer tradição, cultura, idiossincrasia ou língua. Não é a última barreira de defesa contra os e as maluquinhos e maluquinhas do politicamente correcto. É aquilo que sempre foi – errado. Errado na sua essência moral, na sua consciência social, na sua afirmação política e na perpetuação de uma desigualdade que o é por construção e imposição heteronormativa. Não é engraçado nem são só gracejos; que o percebam aqueles que a eles recorrem. É, por oposição ao politicamente correcto, percebam-no, única e exclusivamente, politicamente estúpido (PE).