Magnífico cowboy zen
Produziu muitas obras-primas que o mundo não ouviu. Um documentário e várias reedições dos seus discos parecem mudar o cenário, mesmo que ele permaneça um enigma. Trinta anos depois da morte de Robbie Basho, estamos prontos para ele?
Poucos deram conta, naquele dia 28 de Fevereiro de 1986, que Robbie Basho morrera. Um raro e absurdo acidente numa sessão de quiropraxia matou o guitarrista extraordinário, admirado por John Fahey e Pete Townshend. Quando desapareceu fisicamente do mundo, o norte-americano já tinha sumido dos poucos olhares que o seguiam em vida. Acabou a carreira com duas cassetes de aspecto genérico, lançadas em obscuras editoras de new age. A música continuava belíssima, mesmo que poucos a ouvissem.
Basho, que morreu aos 45 anos, merecia outro fim. Com Fahey, abriu todas as possibilidades para a guitarra de cordas de aço. Não tinha limites para o seu apetite. Como na de Fahey, na música de Basho cabiam a folk americana, as ragas indianas e a música clássica, mas havia mais: tradições japonesas (o apelido artístico que Daniel Robinson, Jr. escolheu foi pedido emprestado ao poeta japonês do século XVII Matsuo Basho, de quem, segundo alguns relatos, dizia ser uma reencarnação), iranianas e dos nativos americanos, entre outras. Basho tocava guitarra – como poucos são capazes de o fazer –, mas também cantava, lançando-se em belos ou desconcertantes voos operáticos. “Simplesmente não há precedente para Robbie Basho”, diz ao Ípsilon Glenn Jones, porventura o mais importante guitarrista da actualidade a continuar o que Fahey e Basho começaram nos anos 1960.
Trinta anos depois da morte do guitarrista nascido em Baltimore, o mundo parece querer reparar a injustiça com que Basho foi tratado. A primeira grande obra biográfica sobre o músico, o documentário Voice of the Eagle: The Enigma of Robbie Basho, do inglês Liam Barker, estreado no final de 2015, poderá ter edição em DVD ainda este ano. Editoras como a Gnome Life, a Tompkins Square e a Grass-Top Recordings (agora Topa-Topa Recording Co.) reeditaram álbuns saídos de circulação ou puseram-se a mexer nos até aqui inexplorados arquivos de Basho. Acaba de ser editado Basket Full of Dragons, o segundo tributo à sua música, com músicos como Glenn Jones, Steffen Basho-Junghans e Buck Curran (Arborea).
“Espero que o filme ajude a pô-lo no panteão da história musical”, afirma Liam Barker ao Ípsilon. “De todas as minhas descobertas musicais, ele foi das que teve um efeito mais profundo em mim.”
“Na altura em que morreu, eu acreditava que em poucos anos ele seria completamente desconhecido, esquecido. Estou tão contente por me ter enganado. Há hoje mais álbuns de Robbie Basho em circulação do que houve alguma vez na sua vida”, constata Glenn Jones, que conheceu o guitarrista e demorou anos a conseguir completar a sua discografia.
Se hoje é mais fácil ouvir a música de Basho, boa parte da culpa é de Kyle Fosburgh, guitarrista e mentor da Grass-Top Recordings. Não tinha nascido quando Basho morreu. Tem 25 anos, parte deles dedicados a fazer justiça ao legado de Basho. “Sou relativamente jovem, mas trabalhei demasiado nos últimos anos – algo que não recomendo a ninguém – à procura das suas gravações perdidas. Consegui encontrar muitas gravações já esgotadas e cassetes nunca lançadas”, conta. Graças a entusiastas como Kyle, na internet é possível encontrar gravações de concertos e outro material – sonoro, mas também entrevistas e fotografias.
Um Dom Quixote
O puzzle Robbie Basho ganha peças, mas é ainda um puzzle. Como declarou o próprio Basho, numa entrevista, em 1974, “há tanto num homem; há tantas camadas num homem”.
Richard Osborn, que conheceu Basho (teve aulas de guitarra com ele em 1968-69 e partilharam palcos), fala de uma personagem de “natureza enigmática e solitária”, que falava pouco sobre si, a sua família e o que lhe ia na cabeça. Alguém com poucos amigos ou cujas amizades pertenciam, como ele, ao Sufismo Reorientado, uma ordem espiritual americana “extremamente hermética”, criada em 1952.
Os ensinamentos de Meher Baba, fundador do Sufismo Reorientado, proibiam o uso de drogas na busca espiritual – algo que contrariava o espírito da época nos Estados Unidos. Richard Osborn conta que teve que dizer a Basho que não usava drogas (uma mentira) para poder ter aulas de guitarra com ele. “O que devo a Basho vai além da técnica de guitarra: devido à sua inspiração, deixei de usar drogas e retomei o meu caminho espiritual.”
Osborn recorda “um tipo bonito com uma aura incrível de gravitas à sua volta”. “Havia um respeito muito educado e gentil à sua volta, como se estivéssemos a encontrar um Dom Quixote vivo: alguém a viver uma fantasia de amor de outra era.”
Descreve uma pessoa “excêntrica, quase fechada dentro da sua vida interior extremamente activa”; alguém hipersensível, focado num ideal de “pureza” que o afastava dos prazeres da vida. “Em público, ele nunca falava da sua história pessoal, da família, da sua infância”, diz. Outros relatam episódios em que Basho comunicava com pessoas ausentes ou tinha visões.
Depois de incursões pelo desporto, canto coral e trompete na escola, Robbie Basho descobriu a guitarra, que seria a sua companheira para o resto da vida, inspirado pelos colegas de universidade John Fahey, ED Denson e Max Ochs. Mergulhou na história da folk e dos blues com a ajuda de Ochs. Em 1962, Basho conhece a música de Ravi Shankar e tudo muda. Deitava-se num quarto às escuras e ficava horas a ouvir aquelas ragas com desejo de infinito. Aprendeu mais sobre essa música com o tocador de sarod (cordofone muito usado na música clássica indiana) Ali Akbar Khan, que lhe deu aulas.
Basho nasceu com sinestesia (uma condição neurológica que faz com que um estímulo num sentido provoque reacções noutro) e desenvolveu a sua Doutrina Esotérica de Cor e Estado de Espírito para Guitarras de 12 e Seis Cordas – a cada acorde, Basho associava uma cor, um estado de espírito e “propriedades concomitantes”.
Era como um “mestre perfumista que misturava várias fragâncias”, a nível “cultural, espiritual e emocional”, defende Richard Osborn. “Soa como mais ninguém”, comenta Glenn Jones. “O seu estilo livre foi um farol para a minha voz interior e para o que queria verdadeiramente comunicar com a minha música”, diz Kyle Fosburgh, o mentor da Grass-Top Recordings que tem também uma carreira enquanto músico. Na música de Robbie Basho atrai-lhe, sobretudo, a “liberdade dentro da forma” – palavras de Robbie.
O artista ignorado
O primeiro álbum de Basho data de 1965. Fahey lançou-o na sua Takoma Records. The Seal of the Blue Lotus abria com uma chuva de harmónicos de onde se desenhava uma raga, que denunciava as audições de música indiana. “Não tento seguir os mestres. Tento fazer as mesmas perguntas que eles”, diria.
“Foi a música clássica indiana que deu a Robbie uma visão, que lhe mudou a vida, das mais altas funções da música”, afirma Richard Osborn, ele próprio um especialista em ragas (no Outono, a Tompkins Square lançará o seu novo disco, Endless). “A música clássica indiana prestou sempre atenção aos aspectos do sentimento e da alma na música, vendo-os como um caminho vibratório para a alma ascender ao seu criador, ao coração do universo.”
Os tempos pareciam acertados para aquela música inspirada pelo Oriente. Mas, apesar do estatuto de culto, Basho nunca saiu dos círculos mais especializados. No terceiro álbum, Basho Sings (Takoma, 1967), ouvimo-lo cantar, talvez porque a guitarra não chegava para o que queria dizer (mais tarde, tocaria piano pelas mesmas razões). Na compilação de 1967 Contemporary Guitar, onde estavam também Fahey, Ochs e Bukka White, outra conquista artística: The Thousand Incarnations of the Rose, uma obra-prima de quase 14 minutos inspirada por um jardim de Berkeley, a cidade onde vivia.
Disco após disco, Basho abria-se a novas músicas – da Escócia às acrobacias vocais da peruana Yma Sumac. A dita world music ainda não era a realidade incontornável da indústria que viria a ser na década de 80. “De certa forma, Basho escolhia a dedo as tradições musicais, à medida que elas lhe ocorriam e ele conseguia incorporá-las na sua viagem musical e espiritual. Nesta atitude, vemos um génio criativo, não um académico ou um musicólogo”, comenta Richard Osborn. “Se a world music fosse mais apreciada na altura, Basho poderia ter tido mais reconhecimento pelas suas fusões e pelo seu estilo inovador.”
Kyle Fosburgh resume: “Era um artista muito à frente do seu tempo.” E diz mesmo: “Ninguém na história da música gravada tentou fazer algo sequer próximo ao que ele fez com a sua arte. Um génio como Basho, por vezes, precisa de décadas para ser aceite e apreciado.”
Tudo podia ter mudado a partir de 1978, ano em que a Windham Hill Records lança o sublime Visions of the Country, dono de um lamento de guitarra introvertida e uma voz grave que carrega todas as dores (Blue Crystal Fire) e de tristes incursões ao piano (“All my life I've been forced to roam/ Never had a place to call my own/ Will you wait, will you wait for me?”, cantava em Orphan’s Lament).
A editora de William Ackerman – que tinha em Basho a sua maior influência – tornar-se-ia uma referência na música new age. Mas o guitarrista não apanhou o comboio do sucesso. “Os fãs dos vários guitarristas new age, centrados sobretudo à volta da Windham Hill, que conseguiram tanto sucesso nos anos 70 e 80, pareciam ser o público-alvo de Basho. Mas esta acabou por ser a audiência mais difícil de conquistar. A sua música era demasiado individual, demasiado estranha e demasiado exigente para ser um mero tom de um determinado estilo de vida”, teoriza Glenn Jones.
O mundo de Basho não era o mundo da new age da Windham Hill. “Quando entravas na música de Robbie, entravas num mundo que era desconhecido, onde o ar era rarefeito e perfumado, onde a paisagem era estranha e, para muitos, desconfortável. Havia poucas coisas familiares e tranquilizadoras. E para muitos ouvintes isso era e é assustador. Tinhas que desistir, que te render, tinhas de aceitar Robbie nos seus termos e ir com ele, ou deixá-lo sozinho.”
Glenn Jones acolheu-o em Boston naquela que seria a última passagem de Basho pela costa leste americana. Encontrou um homem “cuja criatividade era uma torneira que não podia fechar” – “supostamente, ele tocava oito horas por dia” –, mas cujos últimos dois discos foram lançados em cassete em irrelevantes editoras dedicadas à new age e ao relaxamento. O mundo parecia fazer questão de o ignorar, mas Basho terá morrido com muitas ideias na cabeça. Voice of the Eagle: The Enigma of Robbie Basho revela que acalentava mesmo o projecto de compor uma sinfonia.
“Parecia que ele nunca batia na parede, nem sofria de bloqueio criativo. Aliás, ele tinha mais ideias do que aquelas que conseguia executar”, aponta Glenn Jones. “Estava simplesmente a enfrentar um mundo que parecia massivamente indiferente ao que ele fazia.”
O documentário confirma o que já muitos suspeitavam: há muita música de Robbie Basho que ainda não viu a luz do dia. Boa parte dela estará nas mãos da secção de Berkeley do Sufismo Reorientado, que ainda não a revelou. É possível que a situação mude agora: Liam Barker, que conseguiu entrevistar membros desse movimento espiritual, juntou-se ao grupo de gente que quer revelar a música inédita de Basho.
O enigma por resolver
As dificuldades em chegar a um público maior e em fazer dinheiro com a sua arte atormentavam um homem que vivia já com os seus problemas privados. “Ele estava profundamente incomodado com a falta de reconhecimento”, confirma Richard Osborn.
Depois de meia centena de entrevistas a pessoas que se cruzaram com ele, Liam Barker ficou com um retrato aproximado de Basho: alguém que “podia ser social, amigável, querido", mas que era também “muito excêntrico” e “tinha problemas de solidão”. “O facto de ser órfão e de ter sido adoptado provavelmente teve efeitos negativos nele. Sentia ter nascido fora de tempo, não tinha uma ideia rígida do seu eu, estava isolado. De certa forma, procurava uma identidade. Por isso, mergulhava em todas estas formas de world music e explorava todas aquelas eras. Sentia que estava perdido, de certa maneira. Queria descobrir quem era através desse processo.”
Richard Osborn acrescenta: “Robbie sabia que estava desligado do mundo normal dos seus dias. Via o mundo moderno através da lente espiritual do Oriente, que vê esta era como a Kali Yuga, uma era de escuridão e primitivismo, a última etapa antes do regresso a uma era de iluminação.”
A ligação ao Sufismo Reorientado terá tido efeitos contraditórios, acredita o guitarrista: o movimento deu alguma “estrutura” à sua vida, mas o seu hermetismo isolou-o ainda mais. “Pelo menos, fico satisfeito por ele ter encontrado um sítio que não o etiquetou como louco só por causa das suas diferenças e natureza sensível”, concede Osborn.
Conseguir falar com membros do Sufismo Reorientado foi uma das tarefas mais difíceis de Liam Barker durante a produção de Voice of the Eagle: The Enigma of Robbie Basho. “Isso elevou o nível das entrevistas porque alguns deles conheciam-no muito melhor do que outras pessoas”, revela.
Liam passou três anos a fazer entrevistas, a percorrer os sítios dos Estados Unidos palmilhados por Basho, a investigar a vida pouco documentada do guitarrista. “Estranhamente, quanto mais informação reunia, mais profundo se tornava o enigma porque há tantos paradoxos, tanta informação conflituante. Uma pessoa dizia uma coisa, outra dizia o contrário. Estou ainda perplexo com alguns aspectos deste personagem. Mas sinto que através deste processo consegui uma compreensão profunda de Basho, que era um personagem muito complexo, difícil de classificar”, afirma. “O filme não tenta resolver o enigma de Robbie Basho. Não seria possível fazê-lo.”